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*DEEP ECOLOGY - NOTE-BOOK OF HOPE - HIGH TIME *ECOLOGIA EM DIÁLOGO - DOSSIÊS DO SILÊNCIO - ALTERNATIVAS DE VIDA - ECOLOGIA HUMANA - ECO-ENERGIAS - NOTÍCIAS DA FRENTE ECOLÓGICA - DOCUMENTOS DO MEP

2006-05-15

ARTIGO 66

1-6- 92-05-15-EH-IE> merge de files com a mesma data e assunto idêntico - indemniz - >geral>manifest> - os silêncios - manifesto político pelos ecodireitos do cidadão

DELITOS CONTRA O AMBIENTE E A PESSOA HUMANA - O DIREITO ESQUECIDO ÀS INDEMNIZAÇÕES

«É conferido a todos o direito de promover, nos termos da lei, a prevenção ou a cessação dos factores de degradação do ambiente, bem como, em caso de lesão directa, o direito à correspondente indemnização.»
(Nº 3 do Artigo 66º da Constituição da República Portuguesa, subordinado à epígrafe «Ambiente e Qualidade de Vida», inserto no capítulo II - Direitos e Deveres Sociais)

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15/5/1992 - Segundo o artigo número 66 da Constituição da República Portuguesa, «toda a gente tem o direito para provocar acção de acordo com a lei, na prevenção ou cessação dos factores que degradam o meio ambiente, como nos casos de dano directo, dando direito à correspondente compensação»
O actual eurodeputado Carlos Pimenta, quando foi Secretário de Estado do Ambiente, punha grandes esperanças neste artigo da Constituição, esperando que ele fosse em breve uma realidade na vida quotidiana dos portugueses. Até hoje, também neste capítulo dos ecodireitos fundamentais, o silêncio e os silenciamentos foram moeda corrente. Hoje, não sabemos se ainda existe o artigo 66, se ainda existe Constituição, ou mesmo se ainda existe República Portuguesa.
Até hoje e como já nesse ano (??) Carlos Pimenta se queixava, «a legislação não implementou ainda este princípio consagrado no artigo 66.» Porque, evidentemente, para este direito consignado na Constituição ter efectividade, é preciso, na prática, que o juiz e o advogado possam instruir um processo com base na queixa objectiva de um cidadão A contra um cidadão B, mesmo que o cidadão B seja uma instituição, e mesmo que essa instituição seja o Estado.»
«De acordo com a lei fundamental da Nação, o juiz e o advogado devem «poder declarar o cidadão A como tendo direito a determinada indemnização e compensação.»
Vigente continua a pergunta que Carlos Pimenta fazia nessa altura em que não tinha ainda entrado nessa acrópole de silêncios, silenciamentos e assuntos-tabu que é o Parlamento Europeu:
« Porque é que no direito de Responsabilidade Civil, se eu o prejudicar a si em qualquer dos seus direitos, você tem o direito de instruir um processo de responsabilidade civil contra mim e no caso de eu, exactamente com as mesmas consequências, lhe provocar um dano que tem pelo meio o Ambiente, você já não tem o direito de agir contra mim?».
Boa pergunta, sim senhor, a do ex-Carlos Pimenta.
Mas não será exactamente por ser tão lógico este raciocínio, que sobre ele tem recaído o maior e mais sepulcral dos silêncios, quer dos governos quer de jornais, deputados, partidos, amigos do ambiente, amigos da farra, sindicatos, associações, etc?
2
[inédito] Os delitos do ambiente têm gravidade relativa. Há grandes e pequenos. Há os que lesam direitos fundamentais do homem e os que, digamos, se limitam a causar incómodos ou a provocar pequenos desconfortos e prejuízos menores. A táctica, pouco honesta, de serviços e responsáveis, porém, tem sido baralhar esta hierarquia de valores, esta ordem de prioridades. Enquanto as fraudes de alto gabarito continuarem impunes a rir-se nas nossas barbas, não há hipótese nem moral para atacar os pequenos e médios delitos, os pequenos e médios infractores.
Por mais e melhor legislação que haja, a política de ambiente depende fundamentalmente da ética ou «filosofia» que a inspira. Cumprir a lei já seria bom e respeitar a Constituição (no seu artigo 66, entre outros) ainda melhor. Mas cumpri-la sem critério nem hierarquia de culpas e culpados, será pior que não haver lei. Punir indiscriminadamente os pequenos delitos, continuando os grandes na impunidade, é pior que nada. Se os maiores culpados devem ser chamados a responder em primeiro lugar, é por aí que se deve começar. Se os maiores poluidores, em Portugal, são empresas públicas, é por aí que a justiça deve começar por se exercer. A contingência de serem empresas públicas, no entanto, tem paradoxalmente aumentado a sua impunidade. Face ao artigo 66 da Constituição Portuguesa, as empresas públicas são duplamente culpadas: pela impunidade com que poluem e exploram o utente; pela gravidade dos próprios poluentes e dimensão das empresas.
[publicado] A julgar pela severidade com que são perseguidos e punidos alguns profissionais de comércio, por exemplo, obrigados a possuir boletim de sanidade por se encontrarem, na sua ocupação diária, em contacto com géneros alimentícios, a qualidade de vida neste País vai de vento em popa. O caso foi-nos narrado por um comerciante de artigos alimentares da Baixa de Lisboa, mas a julgar pelo que também aconteceu em estabelecimentos vizinhos, é prática frequente pela cidade fóra. A menos que se trate de um caso especial de perseguição selectiva, visando determinadas casas com as quais as autoridades não simpatizam, tudo leva a crer que se quer com a punição de pequenos delitos fazer esquecer os grandes crimes contra a saúde pública.
A lei é para se cumprir, sem dúvida, mas há formas justas e formas injustas de a cumprir. No caso que nos foi narrado, trata-se claramente de um abuso e de uma prepotência da autoridade mas que se esconde atrás de um alegado propósito de fazer cumprir a lei. [O prazo para renovação do já citado boletim de sanidade terminava a 9 de Fevereiro passado (???).
Logo nesse dia a autoridade (Polícia Municipal) apresentou-se no referido estabelecimento requerendo os documentos de sanidade. O comerciante alegou que estavam atrasados porque os serviços de Microradiografia não tinham despachado a tempo esse requisito necessário. Nesse dia 9 , o polícia parece ter-se dado por convencido, considerando a situação legal. No dia seguinte, 10 de Fevereiro, outro polícia exigindo o Boletim.
Novamente o comerciante explicou a situação já conhecida: dia 5 de Fevereiro dirigira-se ao Serviço de Luta Anti-Tuberculosa (Chile), único existente em Lisboa para o efeito, parecendo-lhe tempo mais que suficiente para ter pronta a 9 a microradiografia. Não contou o comerciante com o imponderável. O referido SLAT, assoberbado com tantos boletins de sanidade, só teria a radiografia pronta no dia 13, quatro dias depois de terminado o impreterível e rigoroso prazo tão severamente e rigorosamente respeitado pela Polícia Municipal. E, não atendendo à prova que o comerciante apresentava (a senha do SALT) levantou auto de multa.
Procedimento tão insólito como arrogante da autoridade leva a formular algumas perguntas sobre a sua verdadeira causa: gosto gratuito de multar? Excesso de zelo de um funcionário zeloso? Necessidade de apresentar serviço? Forma cómoda de encher os cofres camarários? Ordens da Municipalidade para «atirar a matar»? Ou ilustração lisboeta da velha e repetida fábula «a catar formigas se vão deixando escapulir os elefantes»?
A técnica, de tão usada nos últimos anos em Portugal, acaba por ser conhecida de toda a gente, que já percebe onde a autoridade, a pretexto de fazer cumprir a lei, procura «bodes expiatórios» ou toma o todo pela parte, ou reprime pequenos delitos e delinquentes e prevaricadores para esquecer os grandes.
Pelos vistos e enquanto as altas autoridades nunca mais conseguem reprimir a Alta Corrupção, contentam-se as baixas em andar pela Baixa de Lisboa à caça da multa, punindo comerciantes que não têm culpa nenhuma das histerias e diarreias camarárias.
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Como provam alguns processos célebres - Kawasaki e Minamata no Japão, Ohio nos Estados Unidos - mais importante do que haver ou não haver um texto legislativo que se aplique a cada situação, é a iniciativa dos cidadãos na sus própria autodefesa e o apoio que a classe dos juristas queira prestar à luta dos cidadãos.
Mais famosos ainda ficaram os casos em que o feitiço se volta contra o feiticeiro e em que a empresa delinquente, num caso evidente de crime contra o ambiente ou contra o integridade das pessoas, pode inverter a situação e incriminar o grupo ecologista ou de autodefesa cidadã por estar a prejudicar o circuito económico, a invadir terreno privado, ou qualquer outro argumento singular.
Quando o petroleiro «Amoco-Cadiz» despejou toneladas de crude nas costas da Bretanha, a Shell mandou processar de imediato a revista «11 milhões de consumidores» que alimentara uma campanha de boicote à grande empresa petrolífera.
Igualmente o grupo «Green-Peace» foi notificado em tribunal pelo Centro Holandês de Investigações Nucleares que o príbe de perturbar, atrasar ou impedir o lançamento de lixos radioactivos na fossa atlântica da Galiza.
[Outro exemplo: um médico português acusado por um cidadão de ter concorrido para o aborto da mulher com um estranho medicamento que lhe receitara, disse-me a mim, jornalista que o entrevistava a propósito, ser ele, médico, quem iria processar o doente queixoso, já que este nada podia provar daquilo que o doente o acusava.
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OS TECNODELINQUENTES E O CHARCO DO PLATONISMO
[1982, publicado]
Com certa razão os juristas reprovam a políticos e ecologistas a sua falta de realismo, o idealismo das suas propostas, o platonismo das suas dissidências, o simbolismo dos seus protestos. O campo dos juristas, segundo eles próprios entendem, não seria o das promessas balofas dos políticos, nem os horizontes utópicos dos «hippies» e ecologistas. Daí que os juristas fiquem em maus lençóis quando, no campo dos delitos do ambiente, eles sentem que afinal também os homens de leis trabalham com um material abstracto e vago, fantasista ou irreal. É o que desencoraja muitos jovens advogados bem intencionados de seguir a carreira «heróica» de Ralph Nader...
Este «platonismo» em áreas indefinidas da tecnodelinquência moderna é ironicamente aceite e assumido em casos como o tribunal Internacional Bertrand Russell, de sanções simbólicas, ou o tribunal que EcoRopa promove para julgar crimes como, por exemplo, a poluição do Rio Reno.
Casos como o «genocídio» dos índios brasileiros Yanomani - um dos 45 dossiês apresentados ao Tribunal Russell em 1980 - colocam a jurisprudência em situação embaraçosa. O «etnocídio» está também fora de qualquer controle legal, como aliás todo o biocídio ou delito contra a vida. Ainda espera, aliás, que os teóricos do Direito o classifiquem e incluam na sua nomenclatura. O atraso da jurisprudência em relação à realidade não deixa de conferir a esta ciência - também esta - um certo halo fantasmagórico irreal e um certo odor a mofo.
Neste contexto, é caso para os «hippies» e ecologistas devolverem a bola do «romantismo» de que são acusados aos juristas que lha atiraram, perante o puro carácter simbólico de «comités de defesa de prisioneiros por delito de opinião» e a irrelevância de instituições como a Liga Internacional dos Direitos do Homem e a Amnistia Internacional, a inoperância das acções de resistência passiva, tipo greve da fome, etc. Com manifestações e manifestos, protestos e marchas, bandeiras e autocolantes, mesmo com greves da fome, se poderá dizer que pode bem o sistema. O sistema só acorda quando lhe põem bombas nos centros vitais.
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O SOFISMA DAS DOSES MÍNIMAS
A propósito de delitos contra o ambiente, leis que não existem ou leis que existem mas não se cumprem, é de assinalar a antiguidade em Portugal da legislação em defesa da água... Ela confirma, por um lado, que o problema existe e que é antigo, mas mostra também que não foi a legislação a contribuir em nada para evitar que o problema da água chegasse à situação a que chegou e é de todos conhecida.
Um técnico, Vítor Manuel Alves de Figueiredo, classificou de «radicalismo» medidas legais de 1892 (Dezembro) quanto à poluição das águas por efluentes industriais, «data em que foram promulgados os primeiros regulamentos que, pura e simplesmente, proibem o lançamento nas águas de substâncias nocivas».
«Radicalismo» diz o autor deste trabalho publicado pelo Instituto Nacional de Investigação Industrial e intitulado « Intervenção administrativa no problema da poluição das águas por efluentes industriais e tentativa de avaliação dos custos desta poluição em Portugal».
De facto, em 1892 ainda se estava longe de chegar ao refinamento de 1982, em que o sofisma das «doses admitidas» não tinha sido descoberto pela OMS, pelo PNUD, pelo PNUMA, pela OMM, por todos esses organismos internacionais que recomendam aos povos as «doses mínimas» de poluição que não matam mas moem, adoecem ou adaptam.
Matar, sim, mas devagar - porque ainda é preciso alguma mão de obra para a engrenagem continuar.
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RUÍDO 1974

1-12 - 74-03-15-ie-et>sexta-feira, 29 de Novembro de 2002-scan

A INDÚSTRIA DO RUÍDO (*)

(*) Estes dois textos de Afonso Cautela foram publicados, com o mesmo título, no livro «A Indústria do Ruído», nº 3 da colecção Dossier Zero, por ele dirigida, na editora Arcádia (Lisboa), Março de 1974 , data da tipografia

«O silêncio é uma das principais necessidades do homem, assim como o recolhimento, porque não podemos criar nada de válido quando estamos constantemente cercados de ruídos de toda a espécie. Espero que o direito ao silêncio seja reconhecido tão importante como odireito à água e ao ar puro.»
Yehudi Menuhin, violinista americano de renome internacional

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[Março de 1974] - Falar em direitos humanos, a propósito de Ruído, é um contra-senso.

O Ruído industrializou-se e as indústrias fizeram-se para produzir, cada vez mais e melhor, não se fizeram para respeitar direitos humanos, nem para se ocupar ou preocupar com saúde, bem-estar, sono ou paz do cidadão, nem para lhe suavizar a existência, para diminuir tensões sociais, para facilitar relações e comunicação, para civilizar, enfim, para humanizar.

As indústrias não se fizeram para servir os homens mas para se servir deles.

Bem longe das armas convencionais - varapau, pistola, fisga, florete, sílex, bazuca, faca, adaga, forca, tesoura ou sovelão - que normalmente e ao abrigo dos códigos ainda levam a tribunal quem delas se sirva para agredir ou simplesmente liquidar, e ombreando com as armas mais modernas para as quais os códigos ainda não criaram recompensas - o automóvel, as radiações, a talidomida, o napalm, o antibiótico, o fósforo e outros desfolhantes, a transplantologia, o aditivo cancerígeno, o DDT, o medicamento tóxico, o ar poluído, a ignorância ecológica, etc etc (armas perigosíssimas estes etc ) - o Ruído está para lá do Bem e do Mal, goza de perfeita impunidade, fica acima de toda a suspeita. É adorado em vez de temido. Manejado pela própria vítima em vez de odiado. Crime perfeito, sem resíduos, sem impressões digitais, o Ruído reina soberano e encontra-se actualmente na fase de expansionismo imperialista.

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A indústria do Ruído é um tipo de poluição invulnerável à demagogia dos que falam de poluição para não falar de ecocídio. Não se conhece antipoluente para o Ruído, logo não interessa sequer falar dele como poluente. Se toda a indústria poluente cria e implica outra indústria antipoluente, tão poluente como a primeira, o Ruído é absoluto, não tem contra-ofensiva, nem vacina, nem penso, nem reforma do Mal. A não ser uns ridículos auscultadores que filtram frequências (e deixam entrar o ruído), a não ser umas bolas de cauchu que facilmente podem rebentar a membrana do tímpano e que para isso foram feitas, fornecendo um belo contingente de acidentados à pequena cirurgia, a não ser umas bolas pegajosas de cera que se amoldam e que, permitindo uma certa defesa durante o sono, são impraticáveis na vida corrente, no trabalho, etc - o Ruído não tem anti-poluente que mereça o nome e o gabarito de indústria válida.

Daí que seja, portanto, a indústria absoluta porque absolutamente poluente.

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WOODSTOCK

Woodstock convenceu o Mundo de que era concentração de fraternidade juvenil a 70 por cento. E talvez fosse. Os milionários que o promoveram talvez não tivessem interesse imediato, directo em promover o Ruído, o disco, o estereofónico, a coluna de alta fidelidade, o auscultador especial, a percussão dita «musical» como as mais belas formas de corromper o sistema nervoso da juventude e, portanto, o melhor da melhor juventude. Se o aparelho auditivo fosse o único a corromper-se, do mal ao menos: surdo é menos pior do que atrasado mental e a juventude intoxicada na orgia do Ruído é fatalmente uma juventude de atrasados mentais.

Mas a verdade é que dezenas de outros festivais - esses, sim, única e exclusivamente festivais do Ruído - se multiplicaram por todos os recantos do mundo «livre» (livre de imbecilizar a humanidade até aos limites do ilimitado) e a indústria, já sem boa fé a cobri-la, apareceu próspera aos olhos de todos. E ouvidos. Menos os das vítimas, que continuaram ingorgitando roks, pops e outras vogas, convencidos de que consomem «progressismo».

A isca foi mordida. Sabido que a juventude já não consome reacção, porque lê nas entrelinhas dos jornais e nas horas vagas que lhe ficam do consumo até raciocina, à média vertiginosa de um raciocínio por mês, - a indústria do Ruído a três dimensões recuperou sem remorsos Bob Dylan, sem custo recuperou José Afonso e sem esforço recuperou Paco Ibañez, fornecendo depois, com posters do Che, o melhor Ruído que se fabricava no mercado em títulos e subtítulos do mais variegado e pintalgado «inconformismo».

Levado pela onda pútrida do Ruído, o jovem passou a consumir «progressismo», «inconformismo», «esquerdismo», como consome cinturões, peúgas, gadgets, automóveis, motorizadas.

De caminho, porém, e principalmente o que ele consome é Ruído. Porque se o «gadget» tem apenas reflexos na «saúde» da bolsa paternal (o que sendo lucro para a indústria não é assim por aí além para a classe), o Ruído tem uma acção corrosiva, permanente, autocontrolada sobre a saúde mental, nervosa, afectiva, erótica e neurótica e física do jovem, «homem de amanhã».

O que caracteriza as novas indústrias como a do Ruído, como as indústrias da Distracção (hipódromos, autódromos, exposições caninas, desportos motorizados, etc.), como a indústria Nuclear, como a indústria Química( cosméticos, antibióticos, tranquilizantes, pesticidas, aditivos), como as indústrias alimentares, como as indústrias farmacêutica e cirúrgica, é que são indústrias maternalmente protectoras, amigas, e ao serviço do público. Não bélicas. Tratam da saúde ao cidadão, ao consumidor, atingem-no não já e não só no estatuto sócio-económico mas no seu edifício biológico e genético, no mais profundo da vida e da morte - a célula.
O que além de aprofundar a influência manipulatória sobre o consumidor (com direito então ao título de «homem unidimensional»), torna a indústria invulnerável à crítica de esquerda, toda ela, sem excepção, única e exclusivamente preocupada com o estatuto sócio-económico, incapaz de compreender portanto, onde e como as indústrias maternalistas corrompem a vida e a qualidade da vida.

Para os que o industrializaram, é evidente a função política do Ruído. Só a esquerda clássica, que nenhum ruído consegue de facto acordar da sua ancestral letargia, só essa feliz e alegre comadre ignora a função política do Ruído, porque o industrializaram, e porque se industrializou igualmente a alimentação, a medicina, a educação, a cirurgia, etc, etc.

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O Ruído é, por excelência, o terror anónimo, irresponsável, difuso. Não se sabe quem o produz, não se pode apelar para lei, árbitro, polícia, regulamento, tribunal.

Acima de tudo, o Ruído resolve o grande problema da indústria que é um problema de (má) consciência. Que é o de evitar «sujar as mãos». Colocando nas mãos das próprias vítimas o instrumento agressor, a indústria do Ruído nem de guarda-costas precisa.

No caso dos transistores e das motorizadas, esse instrumento ainda por cima vem disfarçado de instrumento útil e de factor de diversão. Um transistor é um utensílio de «prazer» para o consumidor, assim como a motorizada, o cão, o automóvel.

O ruído de um jacto, de um comboio, de uma cadeia de montagem numa fábrica, já são mais obviamente odiosos e já se podem imputar, mais clara e perigosamente, a uma empresa ou companhia. Pelo contrário, o «inocente» transistor, a «inocente» motorizada, a «inocente» cadelinha de luxo (conforto da dona viúva) são manejados pelo próprio consumidor.

(Facto que dá ao Ruído, além do mais, um poder de infiltração praticamente infinito e permanente. Até aos mais remotos interstícios do espaço e do tempo de cada um.)

Em decibéis, o ruído do jacto ou do comboio ou da máquina pesada podem parecer agressões mais violentas. Em quantidade, em valor absoluto, talvez; não em valor relativo: porque no ruído há que considerar principalmente, com a assiduidade, a frequência com que acorre ao limiar auditivo, e a qualidade desse Ruído. O jacto passa em local e em hora determinados, mas a motoreta passa em todos os lugares e a qualquer hora das 24 do dia, da noite, da madrugada; a cadela berra não importa onde, como, quando e provam os factos que pode ladrar as 24 horas do dia, ininterruptamente, e que de facto o faz.

Entre um jacto que passou uma vez sobrevoando a cabeça do utente, durante vinte e quatro horas, e a cadela de luxo que ladrou as vinte e quatro horas por baixo da mesma cabeça, quem não achará esta última a mais estupenda forma de alienação moderna?

Com tal instrumento de tortura a domicílio, como irá prescindir dele quem dele tanto proveito aufere em degradação da «pessoa humana»? É evidente que nada se fará para neutralizar, sequer apaziguar um factor tão útil de aviltamento.

Sabendo-se que a eliminação do Ruído nem sequer põe problemas técnicos, porque é apenas questão de se querer ou não querer eliminar, salta à vista de que o Ruído existe onde, quando, enquanto e até quando se queira que ele exista.

Se houvesse algum interesse em eliminá-lo (o que não é o caso) custaria muito menos do que um viaduto para automóveis.

Voltando ao odioso.

Como toda a poluição deixa na opinião pública (?) um rastro de odioso contra o foco poluente, o ruído a domicílio inventou, entre outros veículos dele, a motoreta, para que o odioso recaia sobre o operário que normalmente a utiliza.
Ë evidente que o padeiro, o empregado da mercearia, o distribuidor de gás butano, o operário que vai para a fábrica, etc não podem comprar automóvel e é evidente que os automóveis, embora pela lógica da maior dimensão devessem ser mais ruidosos, são no que monta a ruídos umas plumas, uma perfeita alcatifa de quatro rodas.
Excepto, claro, nos casos em que o dono se arma em Fangio de bairro e retira o escape para maior prazer sexual no ronco produzido pelos gases de combustão, o automóvel é poluidor de ar mas não ganharia nenhuma medalha entre os poluidores acústicos.

Já o claxon é, por excelência, o ruído para consumo da média e grande burguesia. Dá classe, tom, charme. O claxon espevita, anuncia que vai ali alguém, chama a dama à janela, permite mostrar o peito. Pelo contrário, o escape, o ronco do motor avilta, esmurra, esgota a paciência, irrita, em vez de espevitar mete a dama dentro de casa, é portanto o ruído próprio da classe operária, para que sobre ela recaia o odioso.

5

Ainda quanto à motorizada, já foi explicado a raiz profundamente sexual do interesse que por ela nutre o jovem.

Fellini dedicou o clímax final do seu filme Roma a estes «anjos do Apocalipse» que todas as noites acordam milhares de cidadãos e para os quais, evidentemente, nenhuma lei ou repressão se exerce. Seria assaz contraditório que a indústria do Ruído consentisse em adoptar medidas que viessem limitar ou coarctar a máxima produtividade, que estimulasse a sua própria repressão.

Seria tão contraditório como pedir à Medicina que curasse, se a indústria terapêutica está feita, evidentemente, para produzir doentes e não para os evitar.

Seria tão contraditório haver medidas legais limitando o ruído, reprimindo ou castigando, como uma lei proibindo o DDT, os antibióticos, as vacinas, as drogas.

Para lá de tudo o mais que no quotidiano da «civilização» industrial deteriora o sistema nervoso do cidadão (ponto de passagem para todas as outras doenças que alimentam por sua vez outras tantas indústrias) o Ruído é agente privilegiado de corrosão e aviltamento, o produtor por excelência de stress e de irritabilidade, de desequilíbrio e de vazio mental: como iria a indústria abdicar de com ele fornecer matéria-prima a tantas outras indústrias?

Sem ruído consumir-se-iam menos ou nenhumas bebidas alcoólicas, menos ou nenhuns estupefacientes, menos ou nenhuns tranquilizantes, menos ou nenhuns hospitais psiquiátricos; menos ou nenhuns desportos evasores; menos ou nenhuns programas de televisão, filmes de espionagem, etc haveria menos alcoólicos, menos drogados, menos intoxicados, menos anormais e destrambelhados. Mas como iriam então viver as indústrias que de tudo isso vivem?

Além de que, sem Ruído, o homem teria mais tempo para pensar, para reagir criticamente ao meio ambiente, para se mentalizar e politizar, eventualmente para se desalienar e revoltar.

Sem Ruído, aumentaria a lucidez, a inteligência, a imaginação, o afecto no Mundo, porque aumentaria o equilíbrio nervoso e erótico dos indivíduos.

Sem Ruído, o homem seria feliz.

Sem Ruído, seria respeitado o direito ao silêncio e com ele os outros direitos fundamentais do homem.

Ora não consta que uma indústria exista para respeitar direitos humanos. Aí está a ONU, a FAO, o tribunal de Haia, o BIT encarregados da respectiva retórica e da respectiva demagogia.

Pedir ao Ruído que não provoque doenças (que vão produzir novas indústrias que vão provocar novas doenças que vão produzir novas indústrias que vão provocar novas doenças) é o mesmo que pedir aos municípios que protejam o munícipe, ao automóvel que não atropele e mate, ao comboio que não trucide, é o mesmo que pedir ao quadrado que seja redondo ou ao Rossio que caiba na Betesga, pedir à Medicina que cure, à cirurgia que não use de violência, ao terror que respeite os direitos dos indivíduos e os valores humanos, à Escola que acabe com os exames.

O indivíduo encontra-se totalmente exposto e seria contraditório pedir aos organismos encarregados de o mastigar que o libertem.

Pilriteiro que dá pilritos a mais não se deve obrigar, diria António Sérgio.

6

À primeira vista a proliferação de cães domésticos não corresponde a um intuito industrial. Mas não nos fiemos das aparências, caríssimos paroquianos. Na realidade o «negócio» de cães é hoje um dos mais florescentes e tem várias ramificações: para os que produzem (dão à luz) é negócio de 500%; depois as taxas pagas à fiscalização são outro florescente ramo da indústria tributária; o contingente fornecido às clínicas veterinárias não tem rival em qualquer outro tipo de animal, a não ser no homem; nas exposições de luxo, na caça, nas diversas quão úteis funções de cão-polícia e cão-de-guarda (à pequena e média propriedade), a espécie tornou-se um bem de consumo altamente cotado e que a indústria, portanto, não tem dúvidas em acarinhar. Mais: que a indústria fomenta.

Como fornecedor de ruído ao natural, o cão é de todos os poluentes o mais económico, o mais frequente, o mais incansável, com a suprema vantagem de sobre ele pairar o consenso da ternura e da zoofilia, com a atenuante de servir para conforto erótico ou sentimental de pessoas sós, facto que imediatamente não só o põe a salvo de toda a repressão como faz dele o instrumento privilegiado de toda e qualquer repressão.

O amor ao cão anda, regra geral, em razão inversa do amor dos homens. E de um abastado proprietário ouvi estas ameaças contra o vizinho:

«Sou capaz de matar aquele que me tocar no cão. Não sabem com quem se metem, metem-se com um verdadeiro português das sete quinas. Dão com um homem que tem 1,87 de altura. Vou pôr uma coisa eléctrica no muro que ficam aí agarrados.»

Isto porque o abastado proprietário suspeitava vagamente de que o vizinho não nutria pelos rafeiros em geral e por aqueles em particular uma absoluta e indefectível simpatia. Naquelas palavras de um «verdadeiro português» perpassam não só os sentimentos do maior fervor patriótico como a maior ternura zoófila.

7

O Ruído não é apenas o cretinizador n.º1, facto que aliás a indústria não esquece. Além de cretinizar - acção a longo prazo mesmo quando o foco deixa de vibrar - o Ruído suspende qualquer actividade inteligente e de raciocínio enquanto dura.

Não nos admiremos se ao entrar num táxi o respectivo rádio estiver a vomitar os costumados chinfrins da chamada «música ligeira» a um volume de som que nos pode parecer intolerável para qualquer ser humano e que, no entanto, parece não afectar o motorista: antes pelo contrário. Intolerável para ele não é o banzé mas que não haja um ruído qualquer a ocupar-lhe o cérebro e o tédio.

O Ruído em particular e os «mass media» em geral desempenham assim uma função política nada despicienda. Conseguem «pacificamente» o que outrora requeria violentas formas de lavagem ao cérebro, funcionários especializados e longamente treinados, profissionais bem pagos e armados, meticulosos horários profissionais e livros de ponto, burocracia dispendiosa.

Além de cretinizar por excelência, o Ruído é o alienador mais económico porque rápido, actuando sem intermitências nem interrupção, a domicílio, mecanizado e robotizado, mesmo automatizado, prático, eficiente.

Sabido que a produção de ideias (imaginação criadora e liberdade crítica) são os mais perigosos antídotos contra a alienação e sabido que o trabalho de imaginação mental necessita de silêncio como os pulmões de oxigénio, não devemos estranhar que a indústria o cultive com tanto esmero e carinho, tendo nas próprias vítimas o melhor aliado. De contrário, não seria alienação.

O Ruído funciona ainda como eliminador de grande eficácia, função esta das mais esquecidas pelos críticos da sociedade industrial e portanto aproveitada pela industriocracia.

Luís Buñuel em «O Encanto Discreto da Burguesia» serve-se do Ruído (na emergência um avião a jacto) para suprimir (censurar) as palavras com que a autoridade justificava ao telefone aquilo que seria escandaloso justificar. O Ruído, portanto, abafa o escândalo, esbate, desbota vestígios comprometedores. Melhor do que a borracha de apagar, o Ruído guarda e resguarda aparências.

8

Angústia, stress, irritabilidade, insónia, surménage, alcoolismo, neurose, toxicidade, vazio existencial, desespero, delinquência ( juvenil), crime, suicídio, eis apenas alguns aspectos do sindroma Ruído.

Perante um quadro clínico tão aprazível e para o qual o Ruído contribui com tão valiosa quota parte, quem pode acreditar que alguma coisa se faria alguma vez para evitar um e outro (o ruído e o quadro)?

Se o Ruído dá origem a tantas e tão florescentes indústrias ( as que aquele quadro clínico, fora o que falta, localiza e indica), quem acredita que alguém vá renunciar a elas e a quantos dela se edificam a bem da civilização ocidental?

O síndroma do Ruído é um dos mais ricos da Sintomatologia, um dos que melhor comprovam a cloaca em que vivemos e a tese axiomática (posta em causa por psiquiatras eminentes) de que 99 % das doenças são doenças de ambiente. Mas por isso mesmo não deve ser apontada a causa que tantas e tão belas indústrias faz florescer.

Evidentemente que nem só de Ruído vive a doença mental, o atraso de vida e de raciocínio, a idiotia generalizada, a alienação maciça, o esvaziamento e a lavagem de cérebros. Nem só ao Ruído se deve tanta coisa boa para o progresso e nem o Ruído, coitado, pode tudo. Se ele é um dos pilares da civilização, há que fazer justiça também a outras factores do congestionamento urbano: tráfego, tensões sociais entre classes, frenesim arrivista, a febre competitiva (no desporto, na vida profissional, na escala escolar), a família e o supermercado, o trabalho servo e o ambiente cultural das várias academias em vigor contribuem em boa parte para o sindroma da microcefalia crónica.

O seu a seu dono, a glória a quem a merece. Mas não deixemos de dar ao Ruído prioridade e lugar destacado a que tem direito na origem das mais belas maleitas nervosas, mentais, psíquicas, afectivas, eróticas e neuróticas, maleitas que depois de devidamente industrializadas irão ocupar o imenso exército de zelosos «protectores da saúde pública» que são também os zelosos cavaleiros sempre infatigáveis no combate, no ataque à doença. Doença, evidentemente, que cultivam com cuidados laboratoriais, nessa fábrica imensa de patologias e neoplasias chamada Ambiente ou Habitat.

O DIREITO AO SILÊNCIO (*)

Como chamar a todo aquele que, armado de claxon, escape roto ou motor roufenho, torna todos os dias e a toda a hora a vida dos outros insuportável e a via pública uma cloaca?

Como chamar ao compatriota que decide agredir, minuto a minuto, hora a hora, dia a dia, o vizinho que não lhe fez mal nenhum?

Parece não haver dúvidas: de autêntica agressão se trata e de agressão «armada» um veículo que se nos atira para cima, seja com as rodas, seja com o claxon, seja com o escape, seja com o motor. Habituemo-nos a chamar às coisas pelos seus nomes, se nos queremos entender nisto de Ambiente. O problema não permite eufemismos nem sentimentalismos. É um caso de vida ou de morte. O ruído é um caso de vida ou de morte.

2

Com os tempos e as indústrias, evoluiu muito o conceito de criminalidade. Certas formas de poluição (para não dizer «toda e qualquer forma de poluição») são pura e simplesmente crime contra a humanidade; bem mais grave, por exemplo, do que outros já inseridos nos códigos.
À luz de uma ética prospectiva e à luz das ameaças que pesam sobre a segurança colectiva e o futuro da espécie humana, passam a ser crime (mesmo que ainda não esteja explícito nos códigos, porque o tempo anda aceleradamente e os códigos não) as agressões à identidade e à personalidade individual. Quer dizer: à qualidade de vida dos cidadãos.

Atentar pelo ruído contra a saúde psíquica de alguém, violar o direito ao silêncio do vizinho, há-de ser considerado em breve pelos códigos um crime tão grave e punido com tanta severidade como atentar contra a vida ou a liberdade de alguém. O direito das gentes terá de evoluir em função dos factos, de acordo com a história e a vertiginosa aceleração dos acontecimentos.

Feliz ou infelizmente, o facto determinante da moral de amanhã é o crime ecológico - o ecocídio - . Ainda antes do fim da década de 70, destruir o ambiente será crime a punir com pena de morte. E poucos meses faltam para todos verificarem porquê. São os factos que o dizem, são as forças da história que o determinam, mais cedo e mais depressa do que muitos julgam.

Cada época tem os seu tabus. Estabelece o que é autorizado e o que é proibido. As comunidades «primitivas» (assim designadas pela porcaria que se autoconsidera «civilização») também têm o seu código do que é proibido e do que é obrigatório, do que é legal e ilegal - duas formas, afinal, de violentação dos direitos do homem.
Daí que a conquista dos direitos fundamentais tenha sido, através das épocas, o sinal efectivo de progresso sobre a barbárie. Proibir ou obrigar são duas formas ou faces da mesma violência, da mesma agressão à liberdade - direito este que é fonte e fundamento de todos os direitos.

Alega-se que as sociedades têm de estabelecer esses códigos para a sua própria coerência e textura internas. Não é isso que se pretende discutir aqui mas apenas a oportunidade e a actualidade das proibições ou das obrigações, quer dizer: o conceito de crime, pecado, delinquência, erro.

Pior do que existirem (ainda) essas noções, e sinal de maior retrocesso, é que elas não acompanhem sequer as exigências de tempo e de espaço, as condições do lugar.

O problema do Ruído em particular e os da Poluição em geral, é um nítido exemplo dessa desactualização da Moral, porque o Ruído só começa a sentir-se como infracção, como crime, como suprema proibição num determinado grau de crescimento industrial das cidades, das sociedades. Não faria sentido, numa comunidade rural onde a industrialização ainda não tivesse chegado, que se criassem regras drásticas para punir crimes contra o ambiente. Possivelmente a violação da propriedade privada, numa economia de subsistência, constituirá aí, nessa comunidade pré-industrial, não-urbana, crime ou infracção mais grave e para o qual há, portanto, códigos, rigorosas leis e regras que rigorosamente se aplicam.

O que caracteriza os sistemas de valor em vigor nas sociedades industrializadas é a sua completa inadequação à realidade industrial, aos factos em aceleração permanente por impulso dela: quer dizer, às relações múltiplas estabelecidas entre comportamento e ambiente.

Lamentável, pois, é que verdadeiros crimes como são todos os que hoje se relacionam com a destruição da Natureza (que a todos pertence) e a deterioração do ambiente (única propriedade até agora absolutamente colectivizada) - não sejam ainda considerados e punidos em função da sua gravidade real. É que os códigos não acompanham o andamento e a aceleração dos acontecimentos, da realidade em função da qual deveriam existir porque para a servir existem.

O sinal mais chocante de retrocesso, de incivilização de uma «civilização» é essa inadequação dos códigos (e sistemas de valores em que se fundam) à realidade humana, social, económica, ambiente, ao movimento histórico em devir constantemente acelerado e a uma estratégia prospectiva da acção prática.

3

Ainda nesta linha de inadequação entre os factos e os valores, chocante é também o que sucede com uma obrigatoriedade, uma das violentações exercidas pelo «sistema de valores» vigente sobre a liberdade fundamental e o respeito da pessoa humana pela pessoa humana. Uma visão sintomatológica da doença criou o mito - hoje completamente destruído por uma visão ecológica - da vacina.

Diagnosticada a doença como o ataque movido por um vírus ao corpo - vírus que «cai» do céu aos trambolhões, visão fatalista, metafísica, anti-científica e anti-ecológica da realidade e dos factos - impõe-se a vacina como imunização obrigatória. Impõe-se, não em sentido moral, mas legal. O que se deveria deixar ao alvedrio de cada um e à escolha, é legalmente imposto.

Como nada ainda conseguiu erradicar, afinal, a pior de todas as epidemias - que é a casmurrice e cegueira de certos sectores ditos intelectuais - é a visão teológica que ainda permanece numa sociedade que se pretende adulta e des-sacralizada. Desmitificada. Daí que a vacina se imponha por Lei. Daí que se desconheça o verdadeiro «inimigo» e, portanto, a verdadeira imunização, que é ecológica e não sintomatológica.

No caso do vírus - o da gripe, por exemplo, um dos mais vulgares - não se prepara e modifica o meio ambiente, ou antes, não se promove todo um sistema defensivo do organismo e os anticorpos ao germe ofensivo.
A respeito da verdadeira imunização - que para ser cientifica tem que ser causal, ecológica, fundamental - a ciência permanece muda e queda, a pretexto de que ainda nada sabe de seguro na matéria (ainda não conseguiu reduzir a números, a milhões de factos amontoados o que até cegos veriam mas que só a ciência não vê): dos vírus em geral e do vírus da gripe em especial, pois aparece um novo em cada ano.
Também era melhor que o vírus se repetisse. Que graça, que utilidade tinha um vírus vitalício, já repararam? Tal como a moda que muda todas as estações (para que a indústria dos costureiros prospere em função do consumo sempre renovado, das necessidades sempre artificialmente provocadas), o vírus - um vírus útil numa sociedade de consumo que se preza -deve mudar todos os invernos. Por um lado facilita o alibi de «ainda pouco sabemos deste novo e misterioso vírus»; por outro, deita-se fora o stock de vacinas do ano anterior e industrializa-se outra.

É que a ciência - eterna dúvida sistemática - duvida sempre e nunca sabe nada de seguro. Quando o afirma, aliás, ela está a ser mais verdadeira do que supõe. É que efectivamente a ciência nunca sabe nada (de seguro): e anda nisto há não sei quantos séculos. Alibi sempre salvador: «O progresso, meus senhores, não se fez num dia; um futuro mais brilhante nos aguarda; fazem favor de não se impacientar; vamos devagar mas lá iremos; etc etc.» A ciência nunca está, pois, segura de nada.

Mas segura ou insegura - isso é lá com ela - o que temos nós outros, out-siders, como seguro e certíssimo é a inoperância real da terapêutica sintomatológica. E o estado carencial em que sistemática e propositadamente se deixa cair o cidadão através de todo um meio ambiente sacador de resistências, de defesas, de guarnecimentos, de imunização «natural».

É afinal toda a história de um ambiente alimentar desmineralizante e desvitaminante, e de um meio em geral cada vez mais criminoso, agressivo.

Quer dizer, ignorando a Ecologia da Doença, a Ciência Instituída inverte totalmente o sentido dos valores: da Saúde e da Doença, do Bem e do Mal, do Crime e da Inocência, do Pecado e do não-pecado.

Ignorando a Ecologia - essa ignorância, sim, o único crime - como se deverá considerar a obrigatoriedade das vacinas?

E como se deverá classificar a sua inoperância?

E como se deverá considerar a inadaptação à realidade - patenteada pelos insucessos consecutivos das consecutivas terapêuticas?

Em suma: será infracção vacinar ou não-vacinar, à luz de uma filosofia, de um direito e de uma política de ambiente?

4

A abordagem da axiologia tem vindo a variar conforme os tempos: o ponto de partida tem sido teológico (fase ainda hoje predominante no que respeita aos assuntos de natureza humana); crítico; psicologístico, económico; político.
Já muito perto, veio a dialéctica a querer salvar o disparate de todas as outras juntas: mas dialéctica sem ecologia tem-se visto também a que lindas aberrações conduz.
Dominante em muitas partes do Mundo é hoje a visão economicista-política. Quer dizer: uma endemia será interpretada em função da luta de classes (os pobres estarão mais sujeitos à gripe porque não podem comprar vitamina C - será, a exemplo, uma visão economicista da realidade «epidemia»); não há muito, a visão psicanalística era ainda corrente, vigente: uma psicose, por exemplo, interpretar-se-ia com base numa genética da personalidade, em função dos recalcamentos infantis: falar-se-ia, segundo uma visão psicanalítica e psicologística, de tudo menos de meio ambiente, menos de Ruído, entre outros factores, como factor determinante da neurose, que radica, evidentemente, em todo o habitat: desde a alimentação ao alojamento, desde o ar às águas, desde o clima ao ambiente acústico, desde os ritmos cósmicos aos congestionamentos de tráfego, desde o ambiente familiar ao escolar, desde a TV à Imprensa, desde os livros escolares aos livros proibidos, desde os valores morais estabelecidos aos sinais de resistência de minorias activamente revolucionárias.

Enfim: uma visão ecológica apenas é total e englobante, anti-especialização e antitecnicismo, apenas é mais exigente, inteligente, difícil, complexa. De resto, é a única verdadeira.

Digamos que Ecologia não é para a burrice dos técnicos. Visão ecológica implica uma tal interpenetração de realidades - de «termos em sustentação recíproca» - uma atenção e uma sensibilidade a tantos factores simultâneos, que só uma inteligência viva (não mumificada por uma técnica qualquer), uma imaginação desperta, uma, lucidez radiográfica incansável é capaz dessa dialéctica. Que não é, evidentemente, o caso da ciência constituída e instituída, nem pouco mais ou menos.

Não ha visão dialéctica sem visão ecológica. E daí que os economistas sejam apenas um remanescente bastante podre de antigos tempos teológicos!


Quando o Ruído entra na rotina e se institucionaliza, o Sistema descansa. Já não perturba as consciências, já não incomoda os críticos.

Se, por exemplo, a cidade continua a ser sobrevoada, regularmente, a todas as horas do dia, e todos os dias da semana, e todas as semanas do mês, pelo ruído dos jactos, a Imprensa deixa de criticar o facto. É, com efeito, impraticável noticiar o que acontece todos os dias de maneira igual e não produz (imediatamente) mortos.

Mas se, por exemplo, experiências no próprio aeroporto produzem idêntica chinfrineira numa zona (até) mais restrita, o facto já é notícia e digno de a Imprensa lhe dedicar título a uma coluna.

Sobre cães e ruído produzido por cães, não existe na Câmara Municipal de Lisboa nenhuma postura. Quer dizer, é terreno sem lei e cada um pode atropelar o vizinho como quiser, produzindo o banzé que lhe apetecer.

Mas a postura municipal que existe, por exemplo, em Oeiras, não deixa de fazer a especiosa distinção entre ruído diurno e ruído nocturno. E as autoridades que garantem a segurança e a ordem, quando se apresenta uma queixa contra o cão do vizinho, pretendem saber se a situação do queixoso é normal ou anormal. Quer dizer, se tem alguém em casa à morte ou em coma, pois de contrário não considera o caso digno de ser observado.
Só se atende à excepção, ao folclore, ao que acontece uma vez. Se um munícipe é atentado pelo ruído do cão do vizinho todas as horas do dia, todos os dias da semana e, graças a Deus, todas as semanas do mês, que importância pode isso ter? O caso só passa a ser digno de alguma, pouca atenção, se o cão perturba o sono, ou se estiver alguém à morte em casa. Quem está de saúde (relativa) e quem apenas pretende estar, trabalhar, ouvir música ou repousar o espírito, não tem direito a nenhum silêncio.

Julgo explicar esta monomania pela excepção, da seguinte maneira: um morto é objecto de estatística. Dá para contar, para quantificar. Portanto, entra no capítulo do considerável. O resto, como respeita apenas à qualidade, não interessa. A existência e a qualidade da existência de cada um não interessam.

Se eu estiver meses a ser desgastado pelo ruído dos jactos da Portela ou pelo cão do vizinho, isso não interessa à Imprensa porque não é quantificável, nem estatístico, nem atinge expressão numérica.

Este princípio de ocultar a rotina com a excepção, o sistemático com o esporádico, constitui a espinha dorsal da estratégia demagógica.

É o truque: com os pequenos problemas encontrar maneira de escamotear os grandes.

A uma perspectiva inteligente (ecológica) é evidente que a regra interessa muito mais do que a excepção. Os mortos enterram-se. É com os vivos que os vivos devem ter cuidados de manutenção e ambiente. É a vida e não a morte que tem de se qualificar. Um morto não precisa de cuidados. Morreu. O que dura e perdura, o que existe, o que permanece não merece as atenções do Sistema e seus chamados órgãos de opinião, porque também só a excepção puxa ao sentimento e o melodrama é indesligável do Sistema. Da demagogia e doenças do Sistema.
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(*) Estes dois textos de Afonso Cautela foram publicados, com o mesmo título, no livro «A Indústria do Ruído», nº 3 da colecção Dossier Zero, por ele dirigida, na editora Arcádia (Lisboa), Março de 1974 , data da tipografia
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TRABALHO 1992

emprego> manifest> - para um manifesto político em defesa da ecologia humana

QUANTO MENOS HORAS DE TRABALHO MENOS DESEMPREGO

15/5/1992 - Semana de trabalho de trinta horas e reforma antecipada não só como direito fundamental do homem mas até e principalmente como forma de combater o (famigerado) desemprego, é uma medida tecnicamente possível, desde já, e que pode ser «implementada» (e que deveria ser implementada), concorrendo para neutralizar a exaltada demagogia dos partidos que falam em desemprego e em «dar oportunidade aos jovens». A melhor forma de dar lugar aos jovens, é dar a reforma, o mais cedo possível, aos velhos e não retardá-la até aos limites do inverosímil e do ridículo. Acabando com o canibalismo dos actuais horários - ainda em vigor em países de vocação canibalesca como Portugal - acabar-se-ia com a demagogia do desemprego, e particularmente do desemprego juvenil. que o poder tem interesse em manter, evidentemente, mas que tecnicamente se pode resolver e de uma penada[: trata-se muito simplesmente de reduzir a «pena maior» do trabalho forçado por penas menores e mais aliviada]
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O desemprego - tal como a poluição, a guerra, a fome, o cancro, a inflação, o bairro da lata, a desabitação - não é um acidente de percurso mas uma componente estrutural do sistema que vive matando os ecossistemas. Tendo visto isto, o realismo ecológico preconiza, desde o princípio dos anos 70, que o número de horas de trabalho diminua para que possa também diminuir o desemprego. Nos anos 70 e 80, os sindicatos de alguns países europeus adoptaram essa palavra de ordem ecologista, mas foram logo recebidos à pedrada pelos representantes do patronato, que defendiam, como continuam defendendo, que o desemprego alastre. Invocando embora razões de concorrência, para negar a redução das horas de trabalho, o que estava latente na vontade do patronato era a intenção política de não acabar com o desemprego: é muito mais fácil dominar e explorar os trabalhadores se o espectro do desemprego e consequente clima de instabilidade, estiver sempre pendente, como um cutelo, sobre a cabeça das populações.
Esta é a verdadeira razão(política) que tem levado os representantes do patronato a negar a redução das horas de trabalho.
A redução de horas de trabalho, que esteve na ordem do dia em alguns países da Europa, em certos anos da década de 80, foi assim um dos temas que passaram para a zona de silêncio e silenciamento a que se viram votados tantos outros que se relacionavam com uma libertação e melhoria da qualidade de vida dos cidadãos.
Foi mais uma batalha perdida dos ecologistas, porque era mais uma medida que podia ter feito esconjurar a crise agora desembocada numa guerra. O que não se fez pela autosuficiência e pelas alternativas ecológicas, somou-se à lista de factores responsáveis pela presente crise deflagrada em guerra.
A reforma antecipada, conforme se pratica na Alemanha Federal, com o objectivo de fazer reintegrar no processo produtivo os trabalhadores no desemprego, é uma medida demasiado inteligente para que tenhamos esperança de alguma vez a ver adoptada em Portugal, onde não vemos ninguém - nem sindicatos, nem governos, nem representantes do patronato - inclinados para as medidas políticas verdadeiramente civilizadas. A Europa só serve de padrão naquilo em que não significa qualquer progresso. A demagogia europeia funciona unilateralmente, para os tecnocratas portugueses, só naquilo em que se revela atrasada e provinciana. Sendo a reforma antecipada uma medida de verdadeiro progresso, é de esperar que nunca a veremos aplicada por aqui. Nem sequer, talvez, como promessa demagógica de socialistas que querem ser governo.
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emprego1>trabalho>manifest> - os silêncios

PARA UM MANIFESTO POLÍTICO EM DEFESA DA ECOLOGIA HUMANA

15/5/1992 - Para romper, no futuro, o ciclo vicioso Desemprego-Inflação-Custo de vida, é preciso ouvir o aviso que o realismo ecológico faz há quase duas décadas, quando em 1973/74 tudo se tornou mais claro com o chamado «primeiro choque petrolífero»: o desemprego, foi dito desde então mas ignorado pela economia oficial, é um mecanismo indispensável ao sistema industrial para continuar a funcionar como sistema opressor dos indivíduos, povos e ecossistemas.
[Também O Sindicato dos Desempregados como força alternativa que recoloque, em funções criativas, o trabalhador desocupado das cadeias de montagem, é outro ponto prospectivo de uma visão ecológica do trabalho.]
Redução de horários e antecipação da reforma já são reivindicações pré-históricas dos ecologistas que o sistema teima em ignorar, porque não lhe convém admitir e pôr em prática.
Todas as «tecnologias apropriadas» - reivindicação número 1 do realismo ecologista - multiplicam empregos. Uma sociedade ecológica é sinónimo de pleno emprego e de pleno aproveitamento dos recursos não só humanos mas de todos os recursos autóctones naturais. É sinónimo de não desperdício em todos os azimutes e sectores. Afinal e como a ciência afirma, «a Natureza não desperdiça nunca - recicla, reaproveita, reincorpora.»
Nessa perspectiva, o desemprego é o mais grave de todos os desperdícios, o de energia humana. De facto e dito de outra maneira: o desperdício maior, na engrenagem tecnoburocrática e industrial, é o de recursos humanos, em que o desprezo pela pessoa humana atinge máximo requinte.
Ao desemprego endémico inerente[estrutural] ao imperialismo industrial, a Leste e a Oeste, sindicatos e trabalhadores vão com certeza dizer, repetindo os ecologistas do antinuclear: «Não, Obrigado».
A Natureza, além de não desperdiçar, cria empregos.
De acordo com este postulado, é lógico que o futuro irá estimular as profissões mais ligadas à defesa dos recursos naturais e criar - em profissões alheias à Natureza - uma espécie de dupla actividade optativa, um «biscate» agradável
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empreg-2> trabalho -manifest>-1269 caracteres – os dossiês do silêncio

CURSOS PARA DESEMPREGADOS

15/5/1992 - [Um estudo de 1976, sobre despesas com medidas de protecção ao ambiente, verificadas pelo Instituto Battelle, em Frankfurt, conclui que estas despesas asseguraram ou criaram no ano em questão cerca de 370 mil postos de trabalho
De um inquérito realizado pelo Instituto Battelle, em 1977, sobre as repercussões da política do ambiente no domínio do emprego, depreende-se que os investimentos efectuados em 1975 em medidas de protecção do ambiente criaram ou conservaram 150 mil postos de trabalho, cabendo à indústria de construções 73.500, à construção de máquinas 28.200 postos de trabalho.
Em uma análise de 1977, chegou-se à conclusão de que anualmente se poderia assegurar trabalho a 23 mil indivíduos na indústria de construção, edificando as instalações de tratamento de águas.]

Um projecto-piloto para integrar desempregados foi iniciado na República Federal da Alemanha, em Maio de 1983, no Estado de Schleswig-Holtstein, financiado conjuntamente pelo Governo Federal, pelo Departamento Federal do Trabalho e pela Academia de Economia. O projecto-piloto - cursos intensivos por correspondência - destina-se a professores desempregados, procurando prepará-los para uma «actividade dirigente de escalão médio na empresa».
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emprego2> trabalho> manifest> - os silêncios

PARA UM MANIFESTO POLÍTICO EM DEFESA DA ECOLOGIA HUMANA-II

15/5/1992 - Em 1986, uma alegada Fundação europeia para o melhoramento das condições de vida e de trabalho (organismo dependente da CEE), apresentou um relatório sobre «Actividades destinadas aos desempregados». No relatório, examinava-se o êxito obtido pelos programas que vinham preparando desempregados para um emprego a tempo inteiro ou para estágios de formação profissional.
Segundo esse relatório, os beneficiários dos referidos programas não eram apenas os desempregados. Os idosos, os deficientes e a colectividade no seu conjunto, tinham também oportunidade de utilizar serviços que dantes não existiam.
Um exemplo citado no relatório mostrava como jovens desempregados holandeses adquiriram experiência no mundo do trabalho reorganizando ficheiros médicos. Um centro de tarefas de utilidade colectiva no Norte de Inglaterra organizava actividades para ajudar pessoas idosas e cegos, fornecer infraestruturas à colectiviadde e melhorar o ambiente. Em França, diplomados por institutos e universidades ajudavam jovens a adaptar-se à evolução da novas tecnologias informáticas. Na Dinamarca, estudantes sem trabalho criaram um grupo de teatro e dança, ao mesmo tempo que recebiam uma formação profissional. No Reino Unido, incentivaram-se as mulheres sem trabalho a participar nas actividades de centros de trabalho e a escrever sobre a experiência assim adquirida.
Deste relatório ressaltam duas coisas: a iniciativa e a imaginação é indispensável a uma política ecológica ( humanista) de pleno emprego; mas o apoio do Estado aos cidadãos, também, na linha do velho provérbio chinês «se vires alguém com fome, dá-lhe de comer mas ensina-o a pescar». Se vires alguém desempregado, dá-lhe emprego mas as possibilidades de conquistar a sua autosuficiência em caso de desemprego.
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empreg-1> trabalho - manifest>1440 caracteres – os dossiês do silêncio

[DIMINUIR HORAS DE ALIENAÇÃO E AUMENTAR AS DE TRABALHO CRIADOR]

15/5/1992 - Do artesanato às tarefas de carpintaria e culinária doméstica, é preciso reafirmar o maior empenho em recriar as mais profundas tradições de raiz popular que se liguem à criatividade de artes e ofícios, de jardinagem e pequena exploração agro-pecuária, artesanato, culinária, medicina caseira, etc., na certeza de que a «revolução cultural» passa pela recriação e retoma da tradição científica e tecnológica popular, da qual o trabalhador foi violentamente desapossado e desapropriado ao ser proletarizado. Poder e cultura popular serão, nesta perspectiva, a mesma coisa.
Considerando que o problema do ambiente de trabalho e das condições de segurança do trabalhador tem sido mais ou menos escamoteado em todos os programas políticos, mesmo os que se dizem de esquerda, é preciso evidenciar a profunda contradição que esse condicionalismo implica e, para lá das medidas reformistas que a Medicina do Trabalho ou os gabinetes de segurança preconizem, reconhecer que há uma alienação intrínseca à maior parte do trabalho mecanizado e em cadeia, alienação que só pode ser minorada por uma diminuição de horas a que o trabalhador ficar submetido e à sua ocupação do tempo restante em tarefas efectivamente criadoras, de livre escolha e carácter produtivo directo, no sentido de aplicação e empenho da personalidade, temperamento e carácter pessoal.
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MACROSCÓPIO 1999

brown1> bio-net - informação em ciências da vida - sebenta nova naturologia

DA ECOLOGIA ESTRITA À ECOLOGIA ALARGADA

15/5/1999 - A interacção e/ ou interdependência do ser vivo com todo o meio ambiente que o rodeia e com o qual constitui uma unidade indissociável, é uma descoberta recente da ciência biológica. Apesar de óbvia, é uma descoberta recente.
A pouco e pouco, outra ciência teve que ser reconhecida e deu-se-lhe o nome de Ecologia, em que o ser vivo é estudado em relação com os outros seres vivos e com o meio ambiente.
A visão macroscópica e holística levou tempo a impor-se mas acabou por ser reconhecida, pelo menos teoricamente.
Mas a ecologia, mesmo a que reconhece teoricamente a interacção e interdependência de todos os factores, continuou truncada.
O conceito de meio ambiente ficou circunscrito ao ambiente físico, como se o ser vivo estivesse desligado de outros níveis de realidade.
Aquilo que algumas tradições culturais sabiam desde há milénios - a inter-relação entre Macro e Microcosmos - a ciência moderna tarda em conhecer e teima em não reconhecer.
A Ecologia só terá sentido, porém, quando for uma Ecologia alargada, que inclua não só o meio atmosférico, o meio calórico, o meio bioquímico, o meio geoquímico, o meio geográfico-telúrico, o meio psicosocial mas o meio cósmico de que todos os outros dependem.
Note-se que a Cronobiologia moderna( uma forma de ecologia alargada) deve-se ao estudo do comportamento animal, quando a Etologia descobriu que uma ampla gama de espécies, animais e plantas, eram capazes de «saber» os períodos do dia, as marés, os meses e inclusive os anos.
Admitir que o organismo continha em si um sistema cronométrico independente - que lhe dava informações sobre o tempo - era, apesar de tudo, menos «perigoso» do que admitir, como diz o professor de Biologia Franz Z. Brown, que «os organismos recebiam informação oculta sobre o tempo.»
Segundo Franz Z. Brown, professor de Biologia da Northwestern University , Evaston, Illinois, seria abrir uma «caixa de Pandora» e lançar sobre a biologia problemas insolúveis.
O medo aos «problemas insolúveis» suscitados por uma visão macroscópica da vida explicará, sem dúvida, que se tivesse chegado aos extremos absurdos da visão microscópica actual e que só no final do século XX tivéssemos uma ciência chamada ecologia, embora a Ecologia Humana continue a ser tabu e a Ecologia Alargada (Cosmobiologia) continue no limbo da total e imensa ignorância.
A investigação holística do (cada vez mais) global é retardada, enquanto a hiperanálise continua a ser levada a extremos patológicos e perversos, afogando com a quantidade de dados (e com a inflação das nomenclaturas técnicas) a qualidade do conhecimento científico.
No mínimo, a Nova Naturologia exige tanta atenção à síntese como à análise.
A inter-relação , a interacção e a interdependência que fazem a trama da vida têm que ser respeitadas, se é da vida e das ciências da vida que se trata.
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(*) Franz Z. Brown, professor de Biologia da Northwestern University (Evanston, Illinois) é autor do prólogo ao livro «Los Relojes Cosmicos», de Michel Gauquelin, Ed. Plaza & Janes, Barcelona, 1970. O livro foi publicado originalmente em inglês com o título «The Cosmic Clocks».
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ORDENADORES 1970

1-2 - 70-05-15-di> = diário de ideias terça-feira, 10 de Dezembro de 2002-scan

A ESPERANÇA DOS COMPUTADORES

15-5-1970 - Ganhar tempo é hoje questão de sobrevivência. Tudo se acelera e se a sociedade não estiver preparada (organizada) para aproveitar todos os recursos da tecnologia, esse desfazamento, além do mal-estar inevitável que suscita, atirará irremediavelmente para o suicídio (ou atraso) o país em questão.
Os mais avisados chamam a atenção para o que a Europa deverá fazer, de forma a não ficar na cauda e no subdesenvolvimento. A colonização tecnológica não pode continuar e, para isso, há que descobrir a via de saída.
Os computadores são, de facto, uma esperança posta aos que, verificando um estado de opressão e "encombrement" sobre os indivíduos, tomam consciência, cada vez mais aguda, dessa impotência e dessa paralisia.
O aluno - a todos os níveis que se considere - já não pode, não consegue digerir a massa de conhecimentos que as ciências acumulam e lhe distribuem. A escola tornou-se um ponto de passagem demasiado efémero e, no entanto, demasiado dilatado em tempo, também. Nela se perde muito tempo e, no entanto, o tempo que nela se ocupa é cada vez mais insuficiente em relação às necessidades de aprendizagem, - técnica e geral.

REVOLUÇÃO CULTURAL

Ao falar-se de revolução cultural, é na revolução de métodos de aprendizagem que se pensa e naquilo em que os computadores poderão vir a socorrer o aprendiz. Mas nem só ao nível aquisitivo; o da escolha é outro grande problema ainda sem solução.
Perante um acervo de teorias, todas elas com um quinhão de verdade e todas elas contraditórias entre si, como optar e como extrair a verdade de cada uma que é a verdade de todas?
Como enfrentar a polémica dos ismos, se eles, dentro de cada matéria, e até de cada corrente filosófica, proliferam?
A crítica ou análise é um instrumento já insuficiente para permitir uma selecção e uma escolha conscientes.
Que poderá fazer o computador, neste campo da crítica?
Talvez sem exagero, diríamos que a Escola hoje deveria preparar os alunos para a utilização dos computadores. Na impossibilidade de lhe transmitir conhecimentos ainda válidos para os próximos anos, importa transmitir-lhes a técnica de utilização da nova. tecnologia. Ontem ensinava-se a ler e a contar, hoje deve ensinar-se a programar computadores.
Problema que logo a seguir se impõe - a democratização dos computadores - dele depende a orientação pedagógica das escolas de amanhã, do próximo, muito próximo amanhã.
A Informação não pode separar-se da Educação e do Ensino. Tudo se funde e interdepende. A verificada aceleração da História não permite desperdícios humanos, nem que o homem continue a ser ocupado naquilo que a máquina já pode e deve resolver com maior, muito maior rapidez. Há que aproveitar em full-time a máquina humana no seu especifico. Para isso a deverá preparar a Escola, que não pode ficar cingida a processos de ontem e de anteontem: quer nos métodos de aprendizagem, quer nas matérias programadas.

ACELERAR A EVOLUÇÃO-IMPEDIR A REVOLUÇÃO

Com os computadores pretende-se, talvez, a revolução cultural que evite a revolução política e social.
Com os computadores, espera-se acelerar a tal ponto a evolução, que venha a prescindir-se da revolução.
Com os computadores, procura-se imprimir à Educação Permanente uma tal intensidade que, formando a nova mentalidade de novas gerações, permita pela social-democracia o que só seria possível pela revolução violenta e pela ditadura do proletariado.
Será isto o que se chama o ideal tecnocrático?
Estará a tecnocracia vinculada à social-democracia e esta a uma esperança na técnica (especialmente na técnica dos computadores) para resolver os problemas que "artesanalmente" têm vindo a resolver-se pela força e luta de classes?
Não é por acaso que o social-democrata põe o acento tónico na Educação e faz da Educação Permanente o leit-motiv da sua doutrinação política.
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ÁGUA 1974

1-4 - 74-05-15-ie> = ideia ecológica - sábado, 4 de Janeiro de 2003-scan

ÁGUA:UM PROBLEMA DE SEMPRE (*)

(*) Este texto de Afonso Cautela, pouco cuidadoso quanto a datas, deverá ter ficado inédito, apesar do muito que publiquei sobre o tema da água. Valha ao menos a data (precoce) em que foi escrito, um dia incerto do ano de 1974, já depois do 25 de Abril com certeza.

 ANTOLOGIA DO SOFISMA
 A SOFÍSTICA AMBIENTOCRATA
 ESTRATÉGIA ECOLÓGICA E TÁCTICAS ANTIPOLUENTES

O ARGUMENTO DA ANTIGUIDADE TEM DOIS GUMES

[15-5-1974]

É costume esgrimir com o argumento histórico, quando se pretende diminuir a gravidade da crise ambiental. E afirma se então de que "poluição sempre houve".

Já tive ocasião de provar que este argumento tem dois gumes e corta para os dois lados.

Se se procura com esse argumento de antiguidade dizer que as aflições modernas sobre ambiente são apenas moda e que afinal se o homem sobreviveu sempre (apesar das poluições) aos seus próprios disparates, também agora sobreviverá, eis que o argumento pode virar-se contra os que assim palreiam: se a crise ambiental vem de longe e se o homem da caverna ao construir o buraco onde se alojar já tinha problemas de ambiente, já vivia em hostilidade dialéctica com o meio, tudo isso vem provar que a constante ecológica acompanha a história humana e que é dela indispensável complemento.

"A crise da água não é de hoje" - afirma-se, no propósito de tirar gravidade à falta de água hoje verificada em todo o Mundo e em Portugal também.
De facto, a crise da água foi, especialmente nos aglomerados urbanos, de sempre e, com ela, com a ausência de esgotos, com a promiscuidade da habitação, com a miséria e a ignorância e a exploração se devem relacionar as famosas epidemias da Idade Média - sempre invocadas no propósito vil de escamotear as epidemias modernas.

Se acrescentarmos, ainda como factor ambiental, o ódio ao corpo e consequentemente à higiene que a moral católica ensinava, se juntarmos, ainda como factores de ambiente, a superstição e o curandeirismo (mitologias que hoje apenas se substituíram por outras mitologias), se juntarmos factores de ordem económica, política, religiosa, haveremos de ver que os factos de ordem ecológica surgem, mais nítidos, na sua autonomia e especificidade...

Quando se aponta a gravidade da crise ambiental, aqui e agora, dá-se à palavra ambiente todo o seu vasto sentido de meio humano. E, neste interim, há quem prefira a palavra mesologia à de ecologia. Devo dizer porém que a extensão ganha pela palavra Ecologia, até ser sinónima de Mesologia, já nos ultrapassou a todos. É património de um Movimento mundial imparável. Estulto seria agora restringir de novo o sentido e conceito historicamente atribuídos à palavra “ecológico".

Quedo se aponta a gravidade da crise ambiental, aqui e agora, não se está a dizer que no passado tudo foram rosas: está-se a dizer, só, que chegámos hoje ao paroxismo e ao acumular de erros, carências, crimes, traumatismos que se foram estratificando através dos séculos e constituindo eles, precisamente, o que se designa por uma cultura, ordem cultural ou padrão.

Mas, São Tomaz de Aquino nos proteja, o que a consciência ecológica clama e põe em causa não é outra coisa, nem mais nem menos, é o caldo cultural que nos sustenta desde os afonsinos e a isso chama Ambiente.

Saber que o abastecimento de água à cidade de Lisboa já era problema no tempo do D. Afonso Henriques, não deve servir para aceitar sorridente o que em matéria de desabastecimento faz a Companhia das Águas.

Deve, outrossim, esse conspecto histórico em que alguns se açudam para mostrar e demonstrar à evidência que, embora em 1974, em matéria de Ambiente e de preocupações ecológicas, a Companhia das Águas e nós os seus utentos nos encontramos todos a nadar em plena Idade Média. Isto quando o senhor Philippon, do Ministério Francês do Ambiente, afirma que a humanidade está entrando na Era Ecológica...

SECURAS MEDIEVAIS

Pelo seu interesse não apenas arqueológico nem folclórico, transcrevo do jornal «A Capital» (16/Maio/1973), um quadro descritivo dessas securas medievais, que devidamente enquadrado na ideologia anterior me parece exemplar:

«Desde sempre Lisboa sofreu sede, em certas épocas. A falta do precioso líquido contribuiu em grande parte para a conquista da Ulis-Ubo aos mouros. Com tremendas sedes lutaram os exércitos castelhanos quando sitiaram a cidade. O abastecimento fazia-se por cisternas ou poços. Precariamente, claro. Depois, pouco a pouco, foram surgindo as bicas, aqui e ali, nos sítios mais populosos. Mas, assim mesmo, forçando os consumidores a andanças e a carregos custosos.
«Vieram mais tarde os aguadeiros, negros e negras forros, que agenciavam a vida transportando em cântaros a água ao domicílio dos que lhes podiam pagar o serviço. Os mais pobres tinham de a ir buscar pessoalmente. Nos meses ardentes, em muitas dessas bicas escasseava o líquido e junto delas havia constantes tez bulhas entre mouros, judeus e cristãos, cada qual querendo ter a primazia para o enchimento, quase gota a gota, das suas vasilhas.
«Não que as autoridades descurassem o grave problema. Simplesmente, por essas alturas as águas eram escassas, não chegando para dessedentar a população. Pelos tempos fora e à medida que o número de habitantes ia engrossando, novos chafarizes se foram cons-truindo, juntando-se aos de Andaluz e de Arroios, dos mais antigos, e a outros já existentes.
«Crises houve espantosas. Uma delas, no alvorecer do século XVI, foi calamitosa. Esta cidade que morre de sede - exclama Francisco de Holanda, exponde o seu imaginoso projecto para a fonte do Rossio onde se debuxavam quatro elefantes sustentando uma taça em que a água repuxava! Eram horríveis as secas e ordenavam-se procissões para implorar de Nossa Senhora «que acudisse ao povo». Chegavam a secar por completo os chafarizes. Assim aconteceu algumas vezes nos de El-Rei, da Rua Nova, da fonte de Santa Maria de Oliveira, do Frol. Levantavam-se demandas, que dificultavam a vida do senado.
«O desespero apoderava-se da população. Os aguadeiros especulavam com o preço do líquido.Havia sangrentas brigas junto das bicas. Quebravam-se cântaros e quebravam-se cabeças, e o senado viu-se obrigado a publicar a postura de 1551, metendo em ordem o encher das vasilhas, os preços e as precedências. Não se resolveu a questão! Os aguadeiros, mancomuna-dos com os oleiros, reduziram de tamanho os cântaros. De tal modo que as autoridades tiveram de reprimir os abusos, taxando o pote, de 6 a 15 réis, e a carga de 16 e 24 réis.
«Entretanto, pretendia-se solucionar a questão, projectando-se canalizar o líquido da ponte de Carenque para a capital. Para tanto, tributa-se a povo com um real na carne e dois reais no vinho, a fim de a trazer ao Rossio. Eram as primeiras tentativas de «Águas livres». Juntou-se importante soma para o efeito, mas Filipe I, reservou-a para outros fins.
«As crises, contudo, subsistiram ciclicamente. As lutas nos chafarizes continuavam, e os preços torna-vam-se exorbitantes. Beber água, nessas alturas, principiava a ser um luxo. Faziam-se prisões. Certos proprietários roubavam a água ao povo, desviando-a para as suas propriedades. O senado via-se a desejava-se, assoberbado com as questões que se levantavam. Até que D. João V meteu ombros à difícil e onerosa ta-refa, construindo essa maravilha da construção que é o Aqueduto das Águas livres, obra que causou o assombro dos estrangeiros pelo gigantismo e por ser ao tempo julgada de impossível edificação.
Em 3 de Outubro de 1744, corre a água livre nas Amoreiras. «Em galerias e reservatórios, fontes chafari-zes e neptunos, apolos e tritões, gastaram-se nada menos de seis mil contos da época.» A população da capital - 150 mil almas - respirou fundo. Era e fim do seu tormento. Novas fontes foram construídas. Só os aguadeiros - mais de dois mil galegos de barril -, não ficaram satisfeitos com o importante melhoramento que, pela abundância do líquido, lhes cerceava substancialmente os réditos.
«Na entanto, ainda após isso, várias estiagens alvo-roçaram os lisboetas. Esboçaram-se organizações empresariais para abastecimento de água ao domicílio, por meio de carros de bois e dos respectivos aguadeiros. Todavia só com a fundação da Companhia das Águas o assunto foi definitivamente concluído. Aproveitou-se o caudal do Alviela, foi-se aperfeiçoando o sistema, em todo o seu complexo estrutural, e Lisboa pôde, enfim, libertar-se da falta de água, que tão calamitosa se patenteou em determinadas datas.
«Muitos estudos posteriores, muito trabalho e muito dinheiro se tem gasto nesse indispensável serviço público, mas tudo é abençoado, dados os magníficos resultados que se atingiram nos nossos dias. O espectro da sede desapareceu e o abastecimento de água a Lisboa - pode afirmar-se sem receio de desmentido – é hoje modelar. Disso nos podemos orgulhar!»
«Pelo seu pendor humorístico, este final de crónica parece-me de sublinhar a escarlate. É do conhecimento público o belíssimo abastecimento de água que nesse mesmo ano de 1973, a Companhia realizou para as sedentas populações. »

CRESCENTE DEMANDA DOS CONSUMOS

Destes retrospectos históricos só uma conclusão não é contraditória nem sofistica: se a escassez de água se verifica através dos séculos, não prova tal que a situação hodierna seja brilhante ou, por contraste, preferível: se a escassez já era grande e a crise grave, quando as solicitações do consumo se diriam moderadas comparativamente às de hoje, o que dizer hoje face a essa escassez crónica, o que dizer das palavras de ordem desenvolvimentistas, gritadas a Norte e a Sul, a Este e a Oeste, reclamando mais, sempre mais água para ocorrer, como soe dizer-se, "à crescente demanda dos consumos".

É nestas fronteiras críticas que se definem, cara a cara, o reformismo da antipoluição e a estratégia ecológica, é aqui que se define o abismo que as separa e de que maneira se opõem: perante o absurdo desse "mais, mais, mais água" - quando os factos nos dizem haver cada vez menos, menos, menos água, - a estratégia ecológica pura e simplesmente preconiza o que a lógica aconselha: alto aos consumos desenfreados; enquanto isto, o reformismo antipoluição, sem pôr em causa os mesmos consumos desaustinados, vai arquitectar - dentro da pura paranóia - soluções ditas tecnológicas, industriais, que não só não atacam a crise na raiz como simplesmente a agravam,

O reformista afirma:

«Nos Estados Unidos, onde o consumo de água era já da ordem de 1200 metros cúbicos por habitante e por ano, há cerca de dez anos, calculando-se que venha a atingir o dobro antes do final deste século, preparam-se as providências requeridas pelas circunstâncias.
Em Portugal, por múltiplas razões, as médias de consumo têm sido bastante menores. Mas a procura está a dilatar-se rapidamente , nas cidades e nos campos, os problemas locais nesse capítulo multiplicam-se - e já se fazem ouvir as primeiras advertências sobre os riscos futuros que cumpre encarar no sector.» («Jornal do Comércio»)

É isto o discurso reformista e não se espere que cante de outra solfa. É ao discurso ecológico que compete cantar em outra clave, queiram ou não os paladinos da antipoluição.

Aqueles que não se coíbem, no entanto, de lançar o alarme e de conhecer, afinal, melhor do que nós a extensão da tragédia, como em 1973 um boletim da Direcção-Geral dos Serviços de Urbanização escrevia:

«Inconscientemente umas vezes, criminosamente noutras, está-se a destruir em ritmo acelerado a capacidade de armazenamento em muitas regiões e a conspurcar, envenenar até, quase toda a rede de distribuição, de tal forma que já se fala na necessidade de substituir aquele sistema natural por gigantescas destilarias e dispendiosíssimos sistemas artificiais de armazenamento e distribuição, como se isso fosse preferível a adoptar as medidas drásticas que se impõem para salvaguardar a eficiência do sistema natural.» («Jornal do Comércio»)

Assinalam-se no mesmo estudo as destruições que vão sendo praticadas por motivo de certas culturas agrícolas e silvícolas, pelos desperdícios em áreas urbanas e rurais, pela poluição dos rios, etc.
Sem que a Administração tenha manifestado ainda a intenção de intervir, diz-se no estudo referido, assiste-se a uma sangria esgotadora e até destruidora de reservas naturais constituídas ao longo de milhares de anos.
É mais uma advertência fundamentada que se deixa em suspenso. Merece, sem dúvida, todas as atenções, a justificar uma política nacional da água em tempo e em escala apropriados.»
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(*) Este texto de Afonso Cautela, pouco cuidadoso quanto a datas, deverá ter ficado inédito, apesar do muito que publiquei sobre o tema da água. Valha ao menos a data (precoce) em que foi escrito, um dia incerto do ano de 1974, já depois do 25 de Abril com certeza.
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CATÁSTROFE 1980

1-4 - 80-05-15-ie-em > quinta-feira, 2 de janeiro de 2003-scan

CEE RECONHECE A DÉCADA DA CATÁSTROFE(*)

[15/MAIO/1980]

Os acidentes "máximos" com indústrias perigosas (principalmente químicas) vão ser em breve matéria de legislação específica no âmbito da C.E.E., conforme revelou o sr.Claude Pleinevaux, técnico do Serviço do Ambiente e Protecção dos Consumidores da CEE, durante o importante colóquio sobre Poluição Industrial realizado na FIL-80

A CEE mostra assim que está em cima dos acontecimentos, ao enfrentar e reconhecer, pela via legislativa, um fenómeno relativamente recente que é a "catástrofe ecológica".

Mas embora a noção de "acidente maior" ou situação de pré-catástofre seja relativamente recente e para ela tenham contribuído, fundamentalmente, os acontecimentos acumulados na segunda metade da década de 70, ela já se encontrava implícita, como os movimentos ecologistas sempre o afirmaram, no próprio dimensionamento (o chamado "gigantismo") das actividades industriais em acumulação concentracionária crescente e na célebre escalada de manipulação de substâncias cada vez mais perigosas.

Substâncias que os países do centro têm tendência em ir exportando para os da periferia, como Portugal, Itália ou Grécia.

UM ANO FELIZ

1979 foi um ano particularmente feliz neste aspecto: os técnicos puderam comprovar, ao vivo, como se dá um acidente "máximo" na indústria e a que horas deverão chamar os bombeiros.

Em Los Alfaques, perto de Tarragona (área que Sines vai tentar imitar e superar) um camião-cisterna carregado de propileno calcinou mais de 350 turistas e automóveis num parque de campismo entre estrada e mar.
Estava testado o acidente "maior" no campo da chamada poluição itinerante, quer dizer, a que pode atacar em qualquer parte e a qualquer momento, conceito também muito recente e de que a CEE já se começou a fazer eco.

Em 28 de Março desse mesmo ano, o Mundo acordava à beira da maior catástrofe nuclear da história do átomo pacifico: Three Mile Island continua área contaminada e o acidente, classificado de "impossível", esteve por um cabelo.
Portugal sente-se particularmente avançado nesta eventualidade, já que vai ter centrais nucleares iguais à de Harrisburg nos seus principais rios fronteiriços, três hipóteses, portanto, de catástrofe máxima, impossível de acontecer excepto quando acontece.

O petroleiro "Tanio" já este ano e o "Amoco Cadíz" de 230 toneladas em 1978, arrojando às costas bretãs duas das maiores marés negras da história, puderam informar os técnicos do que acontece no “acidente maior" com hidrocarbonetos, outro caso interessante de "poluição itinerante".
Ixtoc-Um, poço de petróleo no Golfo do México que há meses derrama no mar das Caraíbas, é outro exemplo de acidente capaz de condenar à morte todo o Oceano.

Portugal candidata-se a uma idêntica eventualidade, se tiver a sorte de encontrar petróleo na sua plataforma continental, conforme as pesquisas diligentemente procuram neste momento. Uma legislação preventiva de catástrofes como a do Golfo do México poderá, portanto, ser particularmente útil.

Falando ainda de plataforma submarina, os contentores com resíduos radioactivos depositados muito perto das costas portuguesas em profundidades abissais, podem igualmente
ocasionar um desastre maior quando rebentarem num prazo dos próximos dez anos.
Neste campo dos resíduos nucleares, no entanto, a CEE reserva-se para melhor altura e, por agora, a respectiva legislação é assunto adiado.
Neste campo do nuclear, aliás, o sr. Pleinevaux foi bastante omisso e a nosso pedido esclareceu que as "centrais nucleares estão fora dessa legislação agora em estudo".
Pobres centrais nucleares, que ninguém quer, e nem as companhias de seguros ...seguram. Quanto aos hidrocarbonetos, são eles também matéria de legislação específica.

Ainda no campo da pré-catástrofe, o desastre de Seveso, em que uma nuvem de dioxina transformou esta pequena aldeia da Lombardia numa área contaminada ainda hoje interdita "à vida", é um caso também que interessa particularmente ao povo português, nomeadamente o de Estarreja, onde uma firma multinacional, em colaboração com uma empresa nacionalizada portuguesa, vai instalar uma fábrica que utiliza exactamente esse produto - dioxina - que interditou para sempre Seveso.
Isto para não falar da FISIPE, na margem esquerda do Tejo, que utiliza "cianeto de vinilo", matéria também considerada na lista "negra" da CEE, largamente explicada na valiosa exposição do sr. Pleinevaux.

Já, pelo contrário, foi bastante omisso quanto ao desastre climático, que se pode considerar hoje no âmbito dos "máximos" e (como agora se diz) "transfronteiriços".
Muito antes de se falar em chuvas ácidas e no papel que as chaminés cada vez mais altas têm na "internacionalização" das poluições pontuais, a catástrofe de Sahel, nos meados da década de 60, bem provou o que era uma catástrofe ecológica transcontinental.
Isto sem falar das chuvas diluvianas que, no continente sul americano, também não conhecem fronteiras, e que são derivadas à colossal destruição da floresta amazónica.
Parecendo que não, mas todas estas calamidades climáticas interessam os portugueses, já que "as experiências com o clima, a decorrer na área de Valladolid, na bacia do Douro, por iniciativa e cobertura da OMM, são susceptíveis de vir a ocasionar também situações de "desastre maior", como foi o caso das nossas inundações em Fevereiro de 1979, ou dos ventos de Agosto do mesmo ano que ajudaram o fogo (posto) a destruir "a maior mancha florestal da Europa" que Deus haja, que nós tínhamos na Lousã. Paz à sua alma.

VIGILÂNCIA E SEGURANÇA

Como disse ainda o senhor Pleinevaux, na sua missão de "protector dos consumidores", a legislação em estudo na CEE prevê "dispositivos de vigilância e segurança" para evitar que o acidente se transforme em catástrofe.
Portugal já prepara, há tempo, o seu Serviço de Protecção Civil, posto à prova, com êxito, nas inundações de Fevereiro 79 e que mostrou como, nesse campo, estamos perfeitamente aptos a entrar no Mercado Comum. Basta que tenhamos um corpo de bombeiros que é o mais corajoso e valente do Mundo.

Como disse o conferencista, a legislação sobre acidentes "maiores" - "que espantaram a opinião pública, os parceiros sociais e as autoridades" - vem na sequência de acidentes como os de Flixborough (1974), Beak (1975), Manfredonia (1976), apenas "alguns exemplos entre outros de consequência dramáticas para o homem e o ambiente".

"Todos estes exemplos - disse - sublinham a necessidade de reforçar e tornar mais específico o controle que as próprias indústrias , por um lado, e os poderes públicos por outro, devem exercer sobre as actividades industriais potencialmente perigosas.”

Os debates sobre este assunto no seio do Parlamento europeu e do Conselho após o acidente de Seveso (1976), levaram a Comissão a preparar uma proposta de directivas que cobririam os riscos excepcionais e condições anormais de exploração industrial, riscos de acidente tais como: explosões, incêndios, emissões maciças de substâncias perigosas após um desenvolvimento incontrolado da actividade.

A proposta de directrizes que deverá ser submetida aos ministros do ambiente numa próxima reunião visa prevenir, na medida do possível, os acidentes maiores e a limitar-lhes as consequências no caso em que apesar de tudo eles tenham que produzir-se.

"Como não é realista" - disse o técnico francês - "falar de risco zero, o primeiro objectivo é reduzir , na fase da própria concepção da instalação assim como durante a exploração, a probabiidade de tais acidentes, estudando as causas possíveis, controlando os pontos críticos, prevendo o encadeamento de acontecimentos que poderão conduzir lá."

"O objectivo seguinte é impedir que um tal acidente, se ele se verificar, se transforme em catástrofe e portanto limitar-lhe ao máximo as consequências. Trata-se de colocar dispositivos de vigilância e segurança e prever os planos da urgência."

Esta legislação da CEE aplica-se às actividades industriais que manipulam substâncias perigosas definidas pela directriz de 1967, quer dizer, substâncias explosivas, carburantes facilmente inflamáveis, tóxicas, nocivas, corrosivas, irritantes e perigosas para o ambiente.

O processo escolhido para controlar mais sistematicamente a segurança destas actividades industriais é o de "notificação pelo fabricante junto das autoridades competentes, de um relatório de segurança mais elaborado relativo às substâncias, às instalações e às situações eventuais de acidentes máximos.''

O processo de notificação tem a vantagem de permitir um diálogo contínuo entre as diversas partes interessadas.

A proposta prevê o estabelecimento pela Comissão de um Banco de Dados sobre os ris cos de acidente e os acidentes maiores efectivamente verificados, a fim de melhorar a -„ Os debates sobre este assunto no seio do Parlamento europeu e do Conselho após o

acidente de Seveso (1976) levaram a Comissão a preparar uma proposta de directivas que cobririam os riscos excepcionais # condições anormais de exploração industrial, riscos de acidente tais como: expio $ explosões, incêndios, emissões maciças de substâncias perigosas após um desenvolvimento incontrolado da actividade.

A proposta de directrizes que deverá ser submetida aos ministros do ambiente numa próxima reunião visa prevenir, na medida do possível, os acidentes maiores e a limitar-lhes as consequências no caso em que apesar de tudo eles tenham que produzir-se.

"Como não é realista" - disse o técnico francês - "falar de risco zero, o primeiro objectivo é reduzi , na fase da própria concepção da instalação assim como durante a exploração, a probidade de tais acidentes, estudando as causas possíveis, controlando os pontos críticos, prevendo o encadeamento de acontecimentos que poderão conduzir lã'."

"0 objectivo seguinte é impedir que um tal acidente, se ele se verificar, se transforme em catástrofe e portanto limitar-lhe ao máximo as consequências. Trata-se de colocar dispositivos de vigilância e segurança e prever os planos da urgência."

Esta legislação da CEE aplica-se as actividades industriais que manipulam substâncias perigosas definidas pela directriz de 1967, quer dizer, substâncias explosivas, carburantes facilmente inflamáveis, tóxicas, nocivas, corrosivas, irritantes e perigosas para o ambiente.

0 processo escolhido para controlar mais sistematicamente a segurança destas actividades industriais é o de "notificação pelo fabricante junto das autoridades competentes, de um relatório de segurança mais elaborado relativo ás substâncias, ás instalações e às situações eventuais de acidentes máximos.''

O processo de notificação tem a vantagem de permitir um diálogo contínuo entre as diversas partes interessadas.
A proposta prevê o estabelecimento pela Comissão de um Banco de Dados sobre os riscos de acidente e os acidentes maiores efectivamente verificados, a fim de melhorar a prevenção.

De toda esta actividade legislativa, retira-se a consoladora certeza de que a CEE prepara tudo para que a catástrofe ecológica se dê nas melhores condições de segurança e Protecção Civil.

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(*) Este texto de Afonso Cautela, deverá ter sido publicado em «A Capital», ou ficou inédito (o mais certo)

EMPREGO 1992

+empreg-1> trabalho - manifest>1440 caracteres – os dossiês do silêncio

[DIMINUIR HORAS DE ALIENAÇÃO E AUMENTAR AS DE TRABALHO CRIADOR]

15/5/1992 - Do artesanato às tarefas de carpintaria e culinária doméstica, é preciso reafirmar o maior empenho em recriar as mais profundas tradições de raiz popular que se liguem à criatividade de artes e ofícios, de jardinagem e pequena exploração agro-pecuária, artesanato, culinária, medicina caseira, etc., na certeza de que a «revolução cultural» passa pela recriação e retoma da tradição científica e tecnológica popular, da qual o trabalhador foi violentamente desapossado e desapropriado ao ser proletarizado. Poder e cultura popular serão, nesta perspectiva, a mesma coisa.
Considerando que o problema do ambiente de trabalho e das condições de segurança do trabalhador tem sido mais ou menos escamoteado em todos os programas políticos, mesmo os que se dizem de esquerda, é preciso evidenciar a profunda contradição que esse condicionalismo implica e, para lá das medidas reformistas que a Medicina do Trabalho ou os gabinetes de segurança preconizem, reconhecer que há uma alienação intrínseca à maior parte do trabalho mecanizado e em cadeia, alienação que só pode ser minorada por uma diminuição de horas a que o trabalhador ficar submetido e à sua ocupação do tempo restante em tarefas efectivamente criadoras, de livre escolha e carácter produtivo directo, no sentido de aplicação e empenho da personalidade, temperamento e carácter pessoal.
+
di-70> diário de ideias 1970

HORA DE BALANÇO E RECAPITULAÇÃO DA MATÉRIA ANTERIOR

15/Maio/1970 - Aplicada ao campo particular da literatura, a imaginação chama-se poesia.
Aplicada a todos os campos, chama-se prospectiva.
Se a prospectiva constitui alguma descoberta, será esta evidência: a imaginação terá de participar em todos os campos da prática humana e, em tão lata acepção, o seu nome é prospectiva.
Pobres de estrutura (princípio, meio e fim) os textos aqui coligidos são apontamentos que procuram ir captando, através da vida vária e ao longo de alguns anos, uma unidade, um princípio unitário: o leit motiv que da literatura à medicina, da pedagogia aos serviços públicos, do desporto à investigação, da poesia ao cinema, da filosofia à acção cívica, da conduta quotidiana às situações-limite, do indivíduo à colectividade, da vida privada à vida pública, da empresa ao jardim infantil, da educação permanente à reforma agrária, do teatro ao jornalismo, da crítica à criação, da ética à lógica, do trabalho ao ócio, da saúde à doença, perspectivasse a realidade e a acção ou praxis humana de um único ângulo.
Ambicionam os textos aqui reunidos uma unidade: descobrir em toda e qualquer dessas emergências, o que existe de criador e o que existe de perecível.
A ordem cronológica desses textos - contrariando um tanto a ordem lógica - pareceu-me preferível, já que se trata de um itinerário percorrido com hesitações e tateios, já que nada disto se encontrava definido ab initio, já que os textos assinalam, efectivamente, uma procura, uma investigação, uma descoberta.
A noção de prospectiva só surgiu de várias noções parcelares a pouco e pouco convergentes: imaginação, experiência, obsceno, propedêutica, futuro, óptica epistemológica, estrutura, ciências humanas como ciências da excepção, patafísica, livre arbítrio, crítica como ciência, pensar o simultâneo, poesia como arma, poder da imaginação no poder, iniciação e pedagogia, a poesia é feita por todos, a lógica do contraditório, quotidiano e poesia do quotidiano, o formalismo como reacção literária...
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emprego1>trabalho>manifest> - os silêncios

PARA UM MANIFESTO POLÍTICO EM DEFESA DA ECOLOGIA HUMANA

15/5/1992- Para romper, no futuro, o ciclo vicioso Desemprego-Inflação-Custo de vida, é preciso ouvir o aviso que o realismo ecológico faz há quase duas décadas, quando em 1973/74 tudo se tornou mais claro com o chamado «primeiro choque petrolífero»: o desemprego, foi dito desde então mas ignorado pela economia oficial, é um mecanismo indispensável ao sistema industrial para continuar a funcionar como sistema opressor dos indivíduos, povos e ecossistemas.
[Também O Sindicato dos Desempregados como força alternativa que recoloque, em funções criativas, o trabalhador desocupado das cadeias de montagem, é outro ponto prospectivo de uma visão ecológica do trabalho.]
Redução de horários e antecipação da reforma já são reivindicações pré-históricas dos ecologistas que o sistema teima em ignorar, porque não lhe convém admitir e pôr em prática.
Todas as «tecnologias apropriadas» - reivindicação número 1 do realismo ecologista - multiplicam empregos. Uma sociedade ecológica é sinónimo de pleno emprego e de pleno aproveitamento dos recursos não só humanos mas de todos os recursos autóctones naturais. É sinónimo de não desperdício em todos os azimutes e sectores. Afinal e como a ciência afirma, «a Natureza não desperdiça nunca - recicla, reaproveita, reincorpora.»
Nessa perspectiva, o desemprego é o mais grave de todos os desperdícios, o de energia humana. De facto e dito de outra maneira: o desperdício maior, na engrenagem tecnoburocrática e industrial, é o de recursos humanos, em que o desprezo pela pessoa humana atinge máximo requinte.
Ao desemprego endémico inerente[estrutural] ao imperialismo industrial, a Leste e a Oeste, sindicatos e trabalhadores vão com certeza dizer, repetindo os ecologistas do antinuclear:«Não,Obrigado».
A Natureza, além de não desperdiçar, cria empregos.
De acordo com este postulado, é lógico que o futuro irá estimular as profissões mais ligadas à defesa dos recursos naturais e criar - em profissões alheias à Natureza - uma espécie de dupla actividade optativa, um «biscate» agradável.
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emprego2>trabalho>manifest> - os silêncios

PARA UM MANIFESTO POLÍTICO EM DEFESA DA ECOLOGIA HUMANA-II

15/5/1992 - Em 1986, uma alegada Fundação europeia para o melhoramento das condições de vida e de trabalho (organismo dependente da CEE), apresentou um relatório sobre «Actividades destinadas aos desempregados». No relatório, examinava-se o êxito obtido pelos programas que vinham preparando desempregados para um emprego a tempo inteiro ou para estágios de formação profissional.
Segundo esse relatório, os beneficiários dos referidos programas não eram apenas os desempregados. Os idosos, os deficientes e a colectividade no seu conjunto, tinham também oportunidade de utilizar serviços que dantes não existiam.
Um exemplo citado no relatório mostrava como jovens desempregados holandeses adquiriram experiência no mundo do trabalho reorganizando ficheiros médicos. Um centro de tarefas de utilidade colectiva no Norte de Inglaterra organizava actividades para ajudar pessoas idosas e cegos, fornecer infraestruturas à colectividade e melhorar o ambiente. Em França, diplomados por institutos e universidades ajudavam jovens a adaptar-se à evolução da novas tecnologias informáticas. Na Dinamarca, estudantes sem trabalho criaram um grupo de teatro e dança, ao mesmo tempo que recebiam uma formação profissional. No Reino Unido, incentivaram-se as mulheres sem trabalho a participar nas actividades de centros de trabalho e a escrever sobre a experiência assim adquirida.
Deste relatório ressaltam duas coisas: a iniciativa e a imaginação é indispensável a uma política ecológica ( humanista) de pleno emprego; mas o apoio do Estado aos cidadãos, também, na linha do velho provérbio chinês «se vires alguém com fome, dá-lhe de comer mas ensina-o a pescar». Se vires alguém desempregado, dá-lhe emprego mas as possibilidades de conquistar a sua autosuficiência em caso de desemprego.
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empreg-2> trabalho-1269 caracteres – os dossiês do silêncio

CURSOS PARA DESEMPREGADOS

15/5/1992 - [Um estudo de 1976, sobre despesas com medidas de protecção ao ambiente, verificadas pelo Instituto Battelle, em Frankfurt, conclui que estas despesas asseguraram ou criaram no ano em questão cerca de 370 mil postos de trabalho
De um inquérito realizado pelo Instituto Battelle, em 1977, sobre as repercussões da política do ambiente no domínio do emprego, depreende-se que os investimentos efectuados em 1975 em medidas de protecção do ambiente criaram ou conservaram 150 mil postos de trabalho, cabendo à indústria de construções 73.500, à construção de máquinas 28.200 postos de trabalho.
Em uma análise de 1977, chegou-se à conclusão de que anualmente se poderia assegurar trabalho a 23 mil indivíduos na indústria de construção, edificando as instalações de tratamento de águas.]

Um projecto-piloto para integrar desempregados foi iniciado na República Federal da Alemanha, em Maio de 1983, no Estado de Schleswig-Holtstein, financiado conjuntamente pelo Governo Federal, pelo Departamento Federal do Trabalho e pela Academia de Economia. O projecto-piloto - cursos intensivos por correspondência - destina-se a professores desempregados, procurando prepará-los para uma «actividade dirigente de escalão médio na empresa».
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emprego>manifest> - para um manifesto político em defesa da ecologia humana

QUANTO MENOS HORAS DE TRABALHO MENOS DESEMPREGO

15/5/1992 - Semana de trabalho de trinta horas e reforma antecipada não só como direito fundamental do homem mas até e principalmente como forma de combater o (famigerado) desemprego, é uma medida tecnicamente possível, desde já, e que pode ser «implementada» (e que deveria ser implementada), concorrendo para neutralizar a exaltada demagogia dos partidos que falam em desemprego e em «dar oportunidade aos jovens». A melhor forma de dar lugar aos jovens, é dar a reforma, o mais cedo possível, aos velhos e não retardá-la até aos limites do inverosímil e do ridículo. Acabando com o canibalismo dos actuais horários - ainda em vigor em países de vocação canibalesca como Portugal - acabar-se-ia com a demagogia do desemprego, e particularmente do desemprego juvenil. que o poder tem interesse em manter, evidentemente, mas que tecnicamente se pode resolver e de uma penada[: trata-se muito simplesmente de reduzir a «pena maior» do trabalho forçado por penas menores e mais aliviada]
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O desemprego - tal como a poluição, a guerra, a fome, o cancro, a inflação, o bairro da lata, a desabitação - não é um acidente de percurso mas uma componente estrutural do sistema que vive matando os ecossistemas. Tendo visto isto, o realismo ecológico preconiza, desde o princípio dos anos 70, que o número de horas de trabalho diminua para que possa também diminuir o desemprego. Nos anos 70 e 80, os sindicatos de alguns países europeus adoptaram essa palavra de ordem ecologista, mas foram logo recebidos à pedrada pelos representantes do patronato, que defendiam, como continuam defendendo, que o desemprego alastre. Invocando embora razões de concorrência, para negar a redução das horas de trabalho, o que estava latente na vontade do patronato era a intenção política de não acabar com o desemprego: é muito mais fácil dominar e explorar os trabalhadores se o espectro do desemprego e consequente clima de instabilidade, estiver sempre pendente, como um cutelo, sobre a cabeça das populações.
Esta é a verdadeira razão(política) que tem levado os representantes do patronato a negar a redução das horas de trabalho.
A redução de horas de trabalho, que esteve na ordem do dia em alguns países da Europa, em certos anos da década de 80, foi assim um dos temas que passaram para a zona de silêncio e silenciamento a que se viram votados tantos outros que se relacionavam com uma libertação e melhoria da qualidade de vida dos cidadãos.
Foi mais uma batalha perdida dos ecologistas, porque era mais uma medida que podia ter feito esconjurar a crise agora desembocada numa guerra. O que não se fez pela autosuficiência e pelas alternativas ecológicas, somou-se à lista de factores responsáveis pela presente crise deflagrada em guerra.
A reforma antecipada, conforme se pratica na Alemanha Federal, com o objectivo de fazer reintegrar no processo produtivo os trabalhadores no desemprego, é uma medida demasiado inteligente para que tenhamos esperança de alguma vez a ver adoptada em Portugal, onde não vemos ninguém - nem sindicatos, nem governos, nem representantes do patronato - inclinados para as medidas políticas verdadeiramente civilizadas. A Europa só serve de padrão naquilo em que não significa qualquer progresso. A demagogia europeia funciona unilateralmente, para os tecnocratas portugueses, só naquilo em que se revela atrasada e provinciana. Sendo a reforma antecipada uma medida de verdadeiro progresso, é de esperar que nunca a veremos aplicada por aqui. Nem sequer, talvez, como promessa demagógica de socialistas que querem ser governo.
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