lumpen-3> - os dossiês do silêncio (de morte) PARA UM MANIFESTO DO (LUMPEN) PROLETARIADO
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6/8/1975 - Zonas negras existem, na sociedade portuguesa, marginais à sociedade portuguesa fascista e pós-fascista, que colocam problemas de indiscutível premência e gravidade mas que os mecanismos partidários em vigor, continuam sistematica e deliberadamente a ignorar porque saem do âmbito do seu jogo.
Essas enormes "manchas" humanas continuam, como sempre estiveram, no desconhecimento total do resto dos portugueses. Antes do 25 de Abril, os "intocáveis" do gueto, os marginais deste subproletariado eram tabu para a Imprensa, o fotógrafo estava proibido de bater chapa nos bairros da lata e ninguém, dos escribas, podia ou ousava falar dessa espécie de sífilis e lepra social.
Depois do 25 de Abril, a catadupa de comunicados, discursos, notícias, protestos, reivindicações, conferências de Imprensa, associações de amizade com os colonizados de outros mundos (excepto uma Associação de Amizade com os Colonizados de Portugal), as personalidades estrangeiras importantes, os governos meio-provisórios e que vão caindo em ritmo regular, etc, eclipsaram de novo como por magia, o que eclipsado e na sombra já estava há muito e há muito era ferreamente mantido, marginaram o que marginal já era, tornaram mais tabu o que tabu já vinha sendo.
Ciganos, velhos sem reforma ou reforma de 25$00 mensais, profissões sem dimensão económica (barbeiro, engraxador, vendedor ambulante, ferreiro, feirante, pedinte, carpinteiro, etc,) internados em asilos psiquiátricos ou não psiquiátricos, crianças sem família, são apenas alguns exemplos dessa "zona proibida" que, como um esgoto inesgotável, recebe todos aqueles que a sociedade vomita e que nem sequer, como os ratos, têm direito a raticida.
Não surgem à luz do dia, o sol não é para eles e ninguém jamais se ocupa em falar deles, em falar em nome deles, em formar com eles um partido: o partido do esgoto. Nem partidos da classe operária, nem partidos da burguesia, nem partidos da direita, nem sindicatos e comissões, nem leis e serviços, nada nem ninguém, incluindo a Imprensa, incluindo a Literatura, se ocupa disso,
Essas camadas subproletárias não têm qualquer estatuto humano ou social, profissional ou político. Estão fora do quadro , do jogo, do plano e dos planos. Nem estatuto de morador, nem estatuto de trabalhador, consumidor, sócio de clube recreativo ou desportivo, nem militante sindical. Não têm sequer cartão de identidade. Por i isso não podam ter sequer cartão de "vagabundo”.
São verdadeiramente homens, mulheres e crianças à procura da sua identidade. Talvez como o negro do gueto norte-americano. Talvez como o africano da floresta virgem. Talvez como o porto-riquenho e o chinês dos bairros de Nova Iorque. Formam todos, ao fim e ao cabo, uma família que se ignora e que ignoramos. Que, confortavelmente, ignoramos.
São aqueles de que ninguém fala e de que ninguém quer ouvir falar. Por isso , em rigor, nem sequer se pode dizer que são seja o que for...
Muito menos contam na caça ao voto do garrido eleitoralista. Muito menos tem essa maralha estatuto de "cidadão eleitor". Ninguém daí lê jornais. Jamais alguém daí viu televisão. Ninguém daí sabe, sequer, que houve eleições e que houve um 25 de Abril.
Mortos-vivos, apodrecendo nos próprios dejectos, como os excrementos vivos do hospital Júlio de Matos , já quase não respiram (embora o seu alimento , de há muito tempo, seja o oxigénio), apenas vegetam e têm primários tropismos motores, apenas se locomovem vagamente entre uma e outra parede dos "muros do asilo".
Esse tipo de "animal", portanto, pode habitar em bairros de lata, mas pode também subsistir na grande cidade, no desvão, na escada, na cave subterrânea, no que resta do espaço disputado aos ratos e às baratas. Esse tipo de "selvagem", de bicho exótico pode ser visto a beber, na pastelaria do Bairro Alto, a beber o seu café com leite com um bolo de arroz, um dos que ele costuma ingerir de dois em dois dias (lauto jantar).
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Por tudo isto, fica claro que estas "partes vergonhosas" da ordem social são espinho cravado na consciência pequeno-burguesa. São o remorso e a má consciência dos chamados partidos da classe operária. São a nódoa de azeite que democratas e sociais-democratas, doutores e engenheiros, quadros e técnicos, mandam limpar na lavandaria , ao lado das nódoas de esperma. Nem sequer a CIA se interessa por essa degradada classe de desclassificados.
Toda essa "gente" é aquela gente que nunca veio nem virá no semanário "Gente". É aquele substrato de subgente e de subproletariado que nem sequer o romancista neo-realista tocou ou quer tocar, com um dedinho ligeiramente dobrado de pastelaria Benard. Nem com pinças desinfectadas, o escriba lhe pega.
É malta que não discute com o patrão - porque nunca teve patrão.
Que não reivindica salário - porque não sabe o que isso é.
Que tem efectivamente maneiras de subir na escala social, maneiras que podem ser:
- atestado de indigente na Misericórdia do Largo;
- assalto de ourivesaria ou loja de electrodomésticos à mão armada;
- chulo da varina da Ribeira ou da "girl" do Máxime;
- "arrebenta" que ronda o Parque Eduardo Sétimo para extorquir ao pederasta o relógio e o anel.
Estes são os que sobem na vida e regra geral nem a polícia lhes põe a gadanha em cima. No meio dos outros, estes são, afinal, reis, têm classificação e, se vão dormir uma noite aos calabouços do Governo Civil, ganham a medalha de honra, no dia seguinte, porque logo qualquer jornal lhe chama energúmeno. Passa a ter o estatuto de energúmeno, o que é, meus senhores, uma promoção.
A sociedade fecha as retretes e os urinóis, ou oculta-os sob biombos de pudor. A ordem social gosta de tudo limpo.
No entanto, a vida quotidiana das cidades e subcidades, é uma latrina a céu descoberto.
Se a vida quotidiana portuguesa - para além de ser um manicómio colectivo - é um esgoto fedorento, a essa fauna dos esgotos se deve em grande parte. Mas ninguém os responsabiliza por esse "mau ambiente, porque seria denunciar-lhes a existência' conferir-lhe estatuto.
Não podendo ver-se livre desses chagados, desses sifilíticos sociais, dessa lepra moral e política, a ordem social confecciona mecanismos de auto-ilusão que descartem do campo visual, do campo da consciência e do campo afectivo esse mar de merda.
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Pergunta: já viram alguma notícia em que os carpinteiros reivindiquem férias e abono de família?
E das costureiras: já algum partido, já o Movimento Feminista se ocupou das costureiras (eu disse "costureiras", nada de confusões)?
E dos sapateiros? Quem falou jamais dos sapateiros deste País?
E do pastor de cabras?
E , à excepção da vedeta Rosa Ramalho - na qual se exorciza a nossa raiva sadomasoquista contra o trabalho não industrial - quem fala do artesanato pobre, do cesteiro? Quem os leva ao Mercado do Povo, que SNI de ontem ou INATEL de hoje lhes dá apoio?
A propósito de ócios e tempos livres, em vez de campo de férias, de camping ou caravaning, esses out-siders têm as suas reservas ou campos de concentração onde permanentemente se encontram em estância de férias.
E a mãe de família? A mãe que, apenas doméstica , não tem nem teve jamais profissão de fabrica, balcão ou escritório? Quem se ocupa dessas cabeças de casal?
Quem já analisou, de uma perspectiva marxista-leninista, essas mães de portugueses dados de bandeja ao fascismo? Ou essas mães não têm enquadramento marxista-leninista?
Eis, para um marxista, a terrível suspeita. É que esses vermes dos esgotos , não tendo classe, não podem dar "luta de classes". No entanto, há extensas camadas de população (numericamente importantes) que, suportando todo o peso e pesadelo do fascismo como alicerces dele, não têm agora chance de entrar no quadro da Revolução.
Já viram, a subir o elevador da Glória, onde conta os cinco tostões do bilhete, tostão a tostão, um estropiado atado em trapos? Acham que a Misericórdia se ocupa dele? Acham que ele terá cumprido, ao menos, as suas obrigações sociais e terá atestado de indigente, estatuto de pobre?
O melhor da fita é que a maior parte desses energúmenos, nem sabendo que existe, nem estatuto de pobre pode ter porque não sabe sequer que o pode ter.
As ligas de libertação sexual consideram o homossexual um marginado , um segregado, um perseguido, um colonizado. Vamos ser lúcidos e vamos verificar que o homossexual, apesar de tudo, talvez tenha emprego, família, grupo, tertúlia, sindicato, etc. Talvez seja artista ou modista, cabeleireira ou bailarino.
Ladrão, pedinte, vagabundo, "clochard" são ainda, no contexto dos abomináveis, seres, por antítese, (anti-)sociais. Sendo anti-sociais são, por isso, dialecticamente sociais. Mas os outros que nem nem anti são? Que estão antes da sociedade? Que estão debaixo da sociedade?
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Uma operante, pujante sociedade de consumo, pensa acima de tudo na produção e na batalha da produção, no sindicalismo e na luta de classes, no patrão e no operário.
A ordem social, a democracia, o governo, o comício, o jornal de partido, pensam, sempre, - remanescentes que são da exploração capitalista e da cultura burguesa-capitalista - na produção e nos que produzem. Só este, produtor, trabalhador, operário, tem direitos e direito à vida e à comunicação, à luta, à Revolução.
Ora o improdutivo por condição, as idades ou condições improdutivas como a criança, o velho, o inepto , o incapaz ou deficiente (motor, visual, físico ou psíquico) , o definitivamente irradiado da produção, o desintegrado, o segregado é que é o diabo.
Nenhuma teoria marxista-leninista-maoista o integra. É um osso atravessado na garganta do progressista.
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Pasolini meteu alguns deles, devidamente poetizados e liofilizados, nos livros. Mas nos filmes, acabou por desistir. Dava fita repugnante, desistiu e dedicou-se para fins de exportação ao género adaptação de clássicos.
Jean Genet foi santificado por Sartre e não sei o que lhe aconteceu para além de páginas douradas adoçando a pílula da abjecção.
Artaud traçou o manifesto da Crueldade e da Crueza, Albertine Sarrazin e Violette Leduc ficaram de pedra, imóveis, nos seus livros de pedra, Danilo Dolci teima, no meio da mafia sicíliana, em interrogar a subgente e os desertados de Palermo. E houve entre nós um escritor, João Carreira Bom, que escreveu um livro intitulado "Subgente."
A pergunta é: estará esgotada, para o papel e a esferográfica, esta mancha escura do mapa humano português? Que esperam os candidatos a escritores e a sócios da dita Associação? Afinal, que estamos aqui a fazer?
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