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*DEEP ECOLOGY - NOTE-BOOK OF HOPE - HIGH TIME *ECOLOGIA EM DIÁLOGO - DOSSIÊS DO SILÊNCIO - ALTERNATIVAS DE VIDA - ECOLOGIA HUMANA - ECO-ENERGIAS - NOTÍCIAS DA FRENTE ECOLÓGICA - DOCUMENTOS DO MEP

2006-01-20

CPT 1979

79-01-20> dioxina-1-na> = notícias do apocalipse

CLORO A TODAS AS REFEIÇÕES(*)

(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no «Jornal de Notícias» (Porto)( 16/1/1979) e no jornal «A Capital» (Lisboa) (20/1/1979)


20/1/1979
- A dioxina em Seveso há dois anos( Agosto 1976), o propileno ainda não há um ano em Los Alfaques (Tarragona), o ácido nítrico há dias no Rio Paraná,(10.11.78), o mercúrio industrial há 15 anos em Minamata e há dois anos no Rio Grande do Sul, as 164,6 toneladas de pesticidas em 1977 também no Atlântico Sul, o petróleo nos mares todos os dias, ora nas costas inglesas, ora nas costas bretã, galega e portuguesa, são apenas alguns casos, acidentes ou sinais de uma "lista negra" que não pára, que dia a dia cresce e se agrava, que tende a ser rotina em vez de acaso e que de acidental se arrisca a ser sistemática, "lista negra" em que se insere agora o desastre com a nuvem de cloro, após explosão, na fábrica Sonitecna de Estarreja.
No dia anterior, aliás, só por um triz não houvera mesmo no centro da vila uma tragédia: o choque de um camião cisterna com ramas de petróleo e uma camioneta de vinho.

1 - Sinal, sintoma, aviso, alarme ou "grito", este e outros factos (que já fazem bicha) deveria servir, ao menos, para nos ensinar alguma coisa. O menos que se pode fazer (além de cuidar dos vivos e enterrar os mortos) sempre que uma destas agora rotineiras tragédias acontece, é tirar a respectiva e necessária lição. Sejamos didácticos, saibamos o Mundo em que estamos e, principalmente, o mundo que os tecnocratas do crescimento económico nos preparam.
Tragédia maior, no entanto, é que ninguém tira lição nenhuma, desta e doutras, tudo volta à mesma, os riscos aumentam em número e gravidade, a segurança das populações é um mito, camiões, petroleiros, fábricas, cargueiros continuam a sua ronda de veneno, morte, destruição, terror.
Afinal temos ou não temos o petróleo (ontem), o cloro (hoje) e a radioactividade (amanhã) que merecemos?
O transporte de matérias perigosas é para nosso bem. E para confeccionar produtos, objectos, coisas lindíssimas que a gente quer por força consumir. Sobre nós todos, em última instância, recai a responsabilidade de acidentes como o do cloro. Claro. Se não fosse ele, ainda havia mais cólera nos bairros da lata... Graças ao cloro, temos água branca de neve mas limpinha de bactérias.
Em caso de acidente ou tragédia com matérias perigosas, portanto, o grande alibi dos fabricantes é que se trata de produtos necessários ao consumidor e que fazem parte integrante da nossa civilização e deste progresso todo.
Condiciona-se o consumidor a usar isto ou aquilo, para depois se dizer que, no fim de contas, é o consumidor quem exige e, logo, o culpado de haver tais matérias-primas em circulação no mar, nas estradas, nos caminhos de ferro. O que até é verdade: como consumidores, somos culpados de todas as tragédias e desastres industriais.

CLORO & ÁTOMO: A GUERRA DAS APLICAÇÕES PACÍFICAS

2 - Na I Grande Guerra, o cloro serviu para gasear as tropas inimigas. Aí por 1933 houve logo um senhor cientista que lhe descobriu uma "aplicação pacífica" à vida civil: passou a desinfectar-se a água dos canos com esse mortífero gás, pois o que não mata, engorda. E assim tem sido até hoje, não cessando de se multiplicar as aplicações "pacíficas" do dito, pois as fábricas que o produzem estão montadas e até haver outra guerra e outros soldados para gasear, há que ir gastando o cloro na paz.
Com o átomo aconteceu assim: começou bélico e acabou pacífico. Serviu para o senhor Truman varrer do mapa mundi com duas bombas as cidades de Hiroxima e Nagasaki mas, de 1945 até hoje, não cessaram de se multiplicar as aplicações desta indústria de guerra de paz que é a indústria nuclear.
3 - Quando se instala uma central nuclear ou uma indústria venenosa, os técnicos encarregados da segurança prometem que não haverá azar. Mas caso haja, foi azar...da sorte.
Em matéria de segurança vai sempre tudo no melhor dos mundos. Excepto quando a segurança falha: por causa humana, por causa técnica, mas (o que é um pouco mais terrível) porque o próprio sistema deixa de ter controle sobre os processos, circuitos e ciclos. Sobre o sistema, que passa então a auto-governado (desgovernado).
É a caso dos 5000 satélites (20 dos quais são reactores nucleares) que, em desórbita da terra, deixaram de obedecer às ordens dos papás e se estão espatifando um pouco por toda a parte em cima do mundo habitado.
Centrais nucleares - nunca há perigo. E a prova é que nenhuma companhia de seguros do mundo aceita apólices delas... Está dito e redito que são «a indústria mais segura do mundo»: a prova é que um terço do seu custo é para construir medidas de segurança...
Quando eles prometem, portanto, quem acredita?
Quem confia?
4 - Mas não é só o descontrole dos técnicos que leva à desconfiança das populações. Outros factores de cepticismo e dúvida há, como, por exemplo, quando o acidente deixa afinal de o ser porque obedece a uma necessidade inelutável: o caso das 164,6 toneladas de pesticidas no Rio Grande do Sul, não foi cargueiro encalhado, fábrica que explodiu, camião cisterna que derrapou ou outro qualquer desses “infortúnios" a que a malvada pouca sorte serve de bode expiatório. Não sabendo o que fazer aos pesticidas, foi autorizado ao barco que se efectuasse a descarga no oceano. E foram as autoridades que autorizaram.
Aliás, o cargueiro "Alchimist», que o ano passado encalhou perto de Sesimbra, é um caso interessante e suspeito. São cada vez mais as cargas de produtos cujos proprietários não sabem o que lhes hão-de fazer. Relativamente fácil e como recurso de emergência será "provocar" um acidente do tipo "encalhe" nos molhes, deixando (como foi o caso do «Alchimist») às autoridades portuguesas o trabalho e a despesa de transportar a carga perigosa para terra. (De qualquer maneira, fica sempre a pergunta: que fazer com ela? Enxotar o lixo da soleira não resolve.).
Resta saber se o armador desse e outros cargueiros "acidentados", não irão receber ainda somas fabulosos do seguro... Facto que levaria a supor cada vez mais frequentes os "acidentes" fabricados.
O plutónio como resíduo de centrais nucleares é o caso mais conhecido, mais falado, mais assustador (uma laranja dele exterminaria toda a vida da terra) mas não é o único. Acidentes com cargueiros podem passar a não ser tão acidentais como os pintam. E as costas largas de países como o nosso, que aguentem.
Isto sem falar do acidente que não chega a ser notícia, quando sucede longe das costas, Muitos caixões deve guardar hoje o fundo do oceano sem que nenhum jornal o tivesse sabido ou noticiado.
5 - Outra característica pouca tranquilizadora deste género de acidentes é que não têm contra-ataque possível.
Para os derrames de petróleo só se conhecem detergentes domésticos e, para nuvens de gases tóxicos, só resta (quando resta) evacuar as populações, que às centenas terão de deixar casa, haveres, trabalho, terras, etc.. Quando a densidade destes focos ou transportes não permitir espaço de recuo ou refúgio, só restará permanecer no meio do holocausto. Encurralado. Respirando a morte. Ou numa bola-cogumelo de fogo, que a pira de Joana d’Arc é muito medieval.
Medidas contra-ofensivas, regra geral de uma ridícula inoperância, nada podem. É quase sempre demagogia as promessas dos técnicos em segurança. E as tácticas defensivas que preconizam.

ECOLOGIA OU MORTE: A JUVENTUDE QUE DECIDA

6 - Nuvens de cloro, no fim de contas, são apenas e por enquanto, amigáveis avisos, benignos sinais do que poderá vir a ser a mundo de amanhã para as gerações de hoje.
Quem governa e decide são ainda os megalómanos do crescimento: os ecologistas permanecem em minoria e ainda não ganham eleições. Quando muito, servem de bobos aos colegas de emprego, que acham muita piada a esta esquisita raça de animais.
Com a nuvem de cloro e outros acidentes, no entanto, podemos tomar conta de que, para lá do contingente, é todo um sistema monolítico em marcha para o apocalipse... Por mais remendos que os reformistas aconselhem, pouco ou nada é possível fazer quando chega a hora da verdade ou da tragédia.
Os megalómanos do crescimento dizem que não é possível recuar, que estamos metidos neste progresso todo e que as pessoas, ao fim e ao cabo, têm a cloro, o petróleo, a radioactividade, a dioxina, o propileno e etc. que merecem. O que até é verdade.
Às populações e às novas gerações incumbe decidir: se é com medidas de contra-ataque que se vão defender. Ou se terão que pôr este sistema de pantanas, e substituí-lo por outro.
Se a opção é entre um funeral assim ou um funeral assado, ou se as opções terão que ser de fundo: o funeral ou a vida.
Como o cloro de Estarreja o mostra, o mundo está dividido nesta bipolaridade: Ecologia ou Morte.

O TIO PAVLOV

7 - Se alguns conseguirem perceber isto, já não se perdeu tudo. Pode é já ser tarde e quando os jovens, povos e países decidirem acordar, verem que acordaram já...mortos
O anedótico da tragédia de hoje é que, amanhã, vamos todos (jornalistas também), aplaudir o senhor engenheiro, economista, técnico, financeiro, industrial, deputado, amigo da Pátria, político, quando eles, badalando a sineta do progresso, nos fizerem a todos salivar de impaciência com a promessa de mais postos de trabalho, mais fábricas, mais mundos concentracionários. O tio Pavlov tinha razão.
Seremos nós, as vítimas do veneno em liberdade, quem irá dizer amen, obrigado, queremos bis, a quantas Estarrejas, Sines, Alquevas, Barreiros & etc. cá meterem, via Mercado Comum.
Basta que seja um senhor bem falante, engenheiro, diplomado pelas melhores Faculdades do Estrangeiro, basta o Dr.. e uma boa estatística acompanhada pelo repenicado da guitarra científica, para nos lambermos todos com o belo fado do progresso. Teremos cloro ao pequeno almoço, almoço e jantar, mas temos progresso. Crescer é bestial.
Crescer é que é necessário.
Esquecem-se eles, e nós também, de explicar que esse crescimento infinito inclui o infinito crescimento de tudo o que pode caber na alma (?) paranóica de tal gente. Cresce o PNB (como eles dizem) mas crescem também os acidentes, desastres, tragédias, venenos, explosões, poluições, mortes, doenças, hospitais, polícias...
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(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no «Jornal de Notícias» (Porto)( 16/1/1979) e no jornal «A Capital» (Lisboa) (20/1/1979)
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ECOS 1989

89-01-20> mec-1-ecc> = ecos da capoeira - os dossiês do silêncio - inédito 1989

A GÍRIA VÍDEO-CLIP -O CASO DE MIGUEL ESTEVES CARDOSO

Sumário: O cinismo vende bem - A vingança do Pai

20/1/1989 - Não sei se a sintonia das novas gerações pelo estilo Miguel Esteves Cardoso não tem uma explicação "crucial" nesse comum ponto de partida, os "vídeo-clips".
Há uma cultura dos "vídeo-clips", inflacionária, que as gerações imediatamente anteriores não conseguem acompanhar, por mais esforços que façam e por mais que leiam "O Independente" todas as semanas.
É a vingança do filho contra o pai caturra.
O êxito editorial de Miguel Esteves Cardoso tem, a meu ver, essa explicação de fundo. O semanário "O Independente" glosa, em muitos aspectos, essa cultura do "vídeo-clip".
Veja-se, por exemplo, o lugar de relevo que se dedica à análise dos spots publicitários (elevados à categoria de matéria informativa regular). Um sector crucial da economia - a publicidade - fica abrangido sob a palavra crucial "Vida", nome dado à revista separata .

"O Independente" reagiu ao esquerdismo que impregnava o teste experimental de acesso à Universidade, realizado para 600 alunos de várias escolas do País, em 198 (?)
Foi uma reacção baseada num modelo cultural completamente hostil aos modelos do Maio 68 e da "New Left" norte-americana dos mesmos anos 60.
Fidelino de Figueiredo, autor do livro "Música e Pensamento", que queria dar à música na educação o lugar que a filosofia perdera, encontra-se entre os escritores portugueses colocados no índex pelo marketing literário e é um dos muitos que a barragem dos best-sellers pré-fabricados parece ter lançado em eclipse de esquecimento.
É de referir autores que esta barragem do marketing tem lançado no esquecimento e no ostracismo, desde Maria Archer a Irene Lisboa, passando por António Sérgio, José Bacelar, José Marinho, Leonardo Coimbra, Álvaro Ribeiro, Fialho, Pascoaes.
A moda, artimanha crucial, unificante do caos, impõe-se espontaneamente, tanto como a publicidade. Tenho visto miúdos repetirem os slogans publicitários da rádio e da televisão como quem reza as letras de uma oração, acto que já teve a sua crucialidade em outros contextos culturais.
Os quadros de best-sellers - artimanha crucial, tanto como as sondagens de opinião - impõem a sua lei, apoiados na inflexível lei do marketing.
Qualquer frivolidade de momento barra a publicitação de autores ou temas de fundo.
Ainda não ouvi falar disto, desta injustiça que é a desinformação sobre o essencial feita pela overdose de informação sobre o acessório.
Se a cultura vídeo-clip é um facto, como tal se deve aceitar. Porque a aceitação conformista e sem crítica é o dogma número dessa cultura-religião dos novos tempos visuais.
O erro que a nova prova de acesso à Universidade cometeu é dessa ordem: desvincula-se da cultura visual dominante, baseando-se numa cultura livresca e da imprensa escrita a qual, exigindo um esforço de leitura, está literalmente fora de moda.
Se o livro sofreu um processo sistemático de exílio - apenas agora sustentado pelos balões de oxigénio dos best-sellers pré-fabricados - é insólito que um Ministério da Educação apele agora à cultura literária (a que vem através da leitura) e às motivações que do livro derivam, quando sabe perfeitamente não haver tempo nenhum para ler.
Além da dominante televisiva sobre o cérebro das novas gerações, a dominante informática( a que outros chamam a barbárie dos computadores) é também uma nascente ou derivante crucial.
São muitas dominantes a competir no cérebro e no espaço mental das novas gerações.
Que tempo lhes fica para cultivarem a alma, se a alma é a primeira coisa que a tirania audio-visual lhes tira?
A ofensiva do Mercado Único - outro mito crucial - significa a violência decisiva (ela também crucial, enquanto violência) sobre a disponibilidade interior mínima das novas gerações.
O teste de cultura, nos termos em que está concebido e nos termos em que foi experimentado, ignora tudo isto, faz tábua rasa dessa crucial e cruciante condicionante da cultura individual: o tempo que os "cronóvoros" ou "cronófagos" nos deixam livre.

OBJECTOS CRUCIAIS

Objectos cruciais na vida doméstica são o fogão e eventualmente o esquentador, com certeza a torneira.
Mas a já citada chave é, de todos os objectos domésticos e pessoais, o mais crucial, visto que dá ou tira o acesso a todos os outros.
Mas também são cruciais a caneta, o papel onde escrevo.
O receptor de rádio como o receptor de televisão, eles próprios cruciais, têm o ponto crucial no botão, tanto como as grandes potências têm no botão o ponto crucial para desencadear um holocausto nuclear e no botão da barguilha o homem tem um dos seus pontos fracos, caso se esqueça de o abotoar.
Nos objectos de uso pessoal ou doméstico, o relógio é crucial.
Faz-se hoje uma mitologia do relógio, como objecto de consumo, mas também como ponto de passagem e de cruzamento de várias correntes do quotidiano.
Ter em casa um relógio parado dá azar.
Entre parar o relógio e parar o coração, o ponto crucial comum é claro.
O relógio mede o tempo, categoria ontológica decisiva e sine qua non, a montante de toda a nossa existência.
A ideia de nascente e a ideia de matriz completam a ideia de passagem crucial, a que não é alheia a ideia de passagem iniciática ou, na Bíblia, o símbolo da "porta estreita", ou do "fundo da agulha".

ACESSÓRIO E ESSENCIAL

A noção de crucial obriga-nos a distinguir o acessório do essencial, a separar o dispensável do indispensável, o que desempenha uma função crítica crucial, por sua vez, face à pulverização de dados, conhecimentos, ciências, solicitações, consumos, frivolidades, passatempos, que requisitam o homem das sociedades urbanas, escravo da televisão, centro crucial de todas as dispersões.

O número de pontos cruciais assinala a condicionante esquizofrénica da cultura inculta moderna, disparando em mil acessórios que desatendem o consumidor audio-visual do essencial, baralhando todos os valores e pervertendo todas as escolhas.
O que foi o racionalismo, epigonizado pelo positivismo, senão o esforço histórico de criar uma superestrutura estruturante a partir de uma entidade crucial, a razão?
Mas o racionalismo gera automaticamente o seu contrário, os irracionalismos, oscilando a cultura europeia entre esses dois contrários que eternamente se combatem pelo mesmo objectivo : a unidade.

A CONTAMINAÇÃO: CONCEITO CRUCIAL DA MODERNIDADE

A contaminação ou dispersão em fluido de poluentes é forma sui-generis de unidade, sintoma crucial. Uma "laranja" de Plutónio pode contaminar todo o Globo, tal como uma cápsula de Césio (Brasil) ia contaminando todo o continente sul-americano.
Um pingo de tinta pode colorir dezenas de litros de água.
São sintomas a jusante, tão cruciais, porém, enquanto efeitos e consequências, como a nascente é enquanto causa.

OS CLÁSSICOS

Os clássicos falaram de causa rerum, conceito próximo, se não mesmo sinónimo, do que decidi designar aqui por crucial.
A Bíblia é exemplo de livro crucial (o livro dos livros, chamado) mas também "Os Lusíadas" ou"Hamlet" ou "A La Recherche du Tempo Perdu" ou o "Fausto".
Mas toda a actividade artística será crucial porque globalizaste, ou tanto mais crucial quanto mais globalizante, o que é costume designar por "universalidade" da obra de arte.
Mas a música seria, de todas as artes, a mais crucial pelas suas características de unificação fácil , "união espontânea com o todo", aspecto que explica a vaga de paixão, posteriormente aproveitada pela sociedade do marketing, que a música suscita nas novas gerações.
Canais de televisão nos EUA debitam as 24 horas do dia torrentes de vídeo-clips musicais, submersão esta de matéria "líquida" a que se pode associar uma homogeneidade de clima, um "ar" que se respira, indispensáveis ao mínimo do equilíbrio emocional.
Os jovens respiram vídeo-clips: porque não deixar que eles sejam mais um tóxico agradável e potente criando dependência, numa sociedade que decidiu tornar a toxico-dependência uma das suas artimanhas cruciais?
Tal como escreve Allan Bloom, na sua obra um tanto chatarrona "A Cultura Inculta", " a música afecta a vida muito profundamente". No entanto, qual é o conteúdo ínformacional da música? Eis o que literalmente não interessa nada para a cultura do video-clip.
Em todo o caso, deverá fazer-se a distinção da grelha formal - a música e a matemática, por exemplo - e da grelha informacional, como Antígona, Fausto, Hamlet, Ulisses, ou qualquer outro mito literário carregado de informação e significado.
A música teve artes de tomar na alma das novas gerações um lugar que dificilmente a religião, a matemática, a crítica ou a poesia - campos genéricos concorrentes - dificilmente poderiam ocupar.
Talvez porque a música é, de todas essas grelhas unitárias, a que exige menos esforço do consumidor. Basta beber.

GREVES CRUCIAIS

Em caso de greve geral, ficam bem nítidas as profissões cruciais, aquelas que têm maior poder reivindicativo, dada a sua posição estratégica a montante na rede de interdependências e na correlação de forças.
Basta que parem os transportes, por exemplo, para parar quase tudo o resto por arrasto.
Basta que parem as telecomunicações, para que sectores os mais variados parem também ou andem a retardador.
O grau de crucialidade dos transportes e telecomunicações é máximo relativamente à crucialidade dos jornalistas ou mesmo de algumas profissões liberais como a dos advogados, perfeitamente dispensáveis no funcionamento da sociedade.
A indispensabilidade aumenta o poder.
Um colector ou esgoto ou cano goza de idêntico poder pelo seu alto teor de crucialidade. Se entope, está tudo entupido.
Já se têm valido desse poder os trabalhadores do lixo, com demonstrações monumentais do seu poder decisório, empunhando a sua principal arma na emergência, o cheiro, que deixam exalar dos contentores por despejar.
Quanto mais centralizada é uma organização ou uma energia, mais crucial e indispensável tende a tornar-se.
Se a Electricidade de Portugal faz exigências de dinheiro ao Governo, o mais certo é conseguir o que pede - se a EDP se zanga, e pára, todo o Pais pára, ou fica às escuras. Durante o PREC os disparos na estação do Pocinho ficaram históricos...
Mas se todas as celuloses pararem, o país nem dará por isso. Ou só dará , pela ausência do mau cheiro.
O poder e a importância da EDP - ou de outros estados dentro do Estado - advém-lhe deste posicionamento crucial.
Aliás, quando Vasco Gonçalves nacionalizou a torto e a direito, sabia o que fazia, tinha bem quem o aconselhasse, bons avaliadores dos índices de crucialidade dos diversos sectores económicos.
A Reforma Agrária, por exemplo era a chave dos nossos estômagos.
A secção "a par-impar" dá, no semanário "O Independente" o toque de um moderno cinismo relativamente a valores, na certeza de que a nova juventude se está nas tintas para valorizar seja o que for, ou para se preocupar por algo mais do que os tropismos do seu ego.
Vendo bem, o que vende bem hoje é uma arrogância distante relativamente a qualquer compromisso ou mesmo ao que acontece à nossa volta, e uma tomada de não-posição ou uma não-tomada de posição seja com o que for: dividir o mundo entre o que é piroso e o que o não é, eis o máximo da axiologia desta não filosofia de uma não-ética que se quer dar como dominante da nova juventude.
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CPT 1980

80-01-20> medicina-6-cm-s> = contra a medicina - os dossiês do silêncio

LA PALICE TEM QUE SER VACINADO(*)

(*)Este texto de Afonso Cautela foi publicado no jornal «A Capital» (Crónica do Planeta terra), 20/1/1980, com o título «Atenção aos Eco-pietistas»


«A Medicina, como toda a instituição, atravessou duas fases no decorrer deste século: a primeira em 1913, quando foi possível pela primeira vez demonstrar quantitativamente que um doente, tratado por médico diplomado, tinha uma oportunidade em duas de lhe ser prescrito um medicamento que melhora objectivamente o seu estado. A segunda, no decorrer dos anos 50, quando a profissão médica se apropria totalmente do controlo de vida dos homens, criando assim mais males do que bens.
O serviço - a medicina e a escola institucionalizadas, os sistemas de transporte, etc. - pode crescer em eficácia, até atingir certos estádios para lá dos quais inevitavelmente destroi todas as possibilidades de sobrevivência.
Tomou-se consciência desse problema hoje num único domínio: a ecologia. Ninguém ignora mais que o crescimento industrial destroi o nosso meio físico. Mas há outras dimensões, independentes da dimensão ecológica, nas quais os serviços podem crescer para lá da fase crítica.»
IVAN ILLICH


20/1/1980 – Também a Imprensa se preocupa com a saúda dos portugueses - concluem os observadores, num breve balanço às notícias sobre doenças, publicadas em 1979, pelos jornais de Lisboa e Porto.
De facto, não se passa praticamente um dia em que estatísticas e alarmes arrepiantes, não nos anunciem a nossa decadência, ora aguda ora crónica. Doentes disto, daquilo e daqueloutro, nada falta nunca à humilhação e desgraça dos portugueses.
Quem diagnostica as maleitas e moléstias, claro, não são os jornalistas, cuja função deontológica e odontológica (relativa a dor de dentes) é apenas fazerem-se eco das doenças dos outros, especialmente políticos em exercício, quase todos hospitalizáveis.
Mas como eco dos diversos departamentos de saúde, chegam eles, jornalistas, a parecer aves agoirentas, prevendo epidemias, prognosticando curvas de mortalidade, as mais diversas.
Nem só, portanto, a O. M. S. vela por nós e nos trata da saúde; nem só a Direcção-Geral está atenta à difteria, à meningite, ao colibacilo, à tuberculose, à raiva e a todo o bicho careto infecto-contagioso que ataca um país teimoso em não se vacinar, de manhã à noite, como as autoridades sanitárias de manhã à noite mandam; nem só o Serviço Nacional de Saúde se pretende instituir como nosso protector e nosso perpétuo enfermeiro de perpétuas e crónicas doenças nossas; nem só as Multinacionais de Farmácia (que são os Multinacionais do Petróleo & Cosméticos), vigiam as nossas insónias e diarreias; nem só a F. A. O. se ocupa da nossa dieta alimentar, recomendando a percentagem de DDT admissível «per capita»; nem só (Nossa Senhora das Dores nos acuda!) os dispensários da tuberculose estão sempre a prever na nossa tosse a tísica e os Institutos de Oncologia na nossa rouquidão (de gritar pelo Benfica) um cancro: eis que, além deste exército de médicos, enfermeiros, directores-gerais, ministros, «Prémios Nobel da fome», apóstolos de leprosos e diabéticos, atenciosos vendedores de medicamentos, são ainda os jornais que das nossas doenças permanentemente se ocupam, parangona, caixa alta, manchete, primeira página.

DOENÇA LEMBRA LOGO URNAS...

Com tantos amigos de volta, era de calcular que as estatísticas de ano para ano dessem sal-
do positivo. Tanto zelo, remédio, fadiga e vigília è cabeceira das nossas alergias (atchim!), era
de crer que já tivessem erradicado tanto bicho mau e tanta maleita maléfica.
Com tanto medicamento, era de esperar que a própria medicina gozasse já de perfeita saúde: para não falar das suas vítimas, os chamados «pacientes» ou «doentes».
Com tanta vacina, espanta que o capitalismo ainda não tenha sido extirpado como cancro de onde os outros derivam.
É de estranhar, pois, que os jornais, em 1979, continuassem, monótona e monocordicamente, a anunciar a escalada não só das antigas e crónicas, já bem instaladas na vida, mas sempre a proclamar novas doenças agudas (especialmente no preço da consulta) e até, supremo triunfo do progresso, as novas, desconhecidas e até misteriosas calamidades que se abatem sobre este povo submisso.

Como se explica, com sete mil especialidades farmacêuticas à nossa disposição, que os jornais possam, por exemplo, noticiar horrores deste teor:
«Poluição favorece doenças alérgicas» (24-11-79);
«Sinusites crónicas afectam milhares de portugueses» (10-12-79).
«Graves problemas de saúde mental afectam população de Castelo Branco» (18-1179).
«100 crianças diminuídas mentais na lista de espera em Braga» (16-12-79).
«Deficientes mentais são 91 mil no Norte» (19-11-79).
«Há um milhão de deficientes em Portugal» (28-11-79).
«Aumento de casos de tuberculose no País» (6-12-79).
«Saúde dentária em Portugal continua a ser má» (20-11-79).
«No seio da C. E. E., Portugal detém recorde de mortalidade infantil» (29-12-79).
«Elevado índice de mortalidade infantil em Sabrosa» (30-3-79).
«Seiscentos mil portugueses são alcoólicos. (15-10-79).
«Casos de difteria na grande Lisboa - Só a vacina poderá evitar o surto epidémico».
«A deficiência motora por paralisia cerebral: um em cada dez mil portugueses atingido pela doença» (30-12-79).
Pela data em que o anúncio destas desgraças foi feito, e devidamente manchetado nas primeiras páginas-cartaz de grande (ssíssima) imprensa, não é difícil perceber uma predominância concentrada no período eleitoral e pré-eleitoral.
Se a angústia é desestabilizadora, como já defendemos por diversas ocasiões, compreende-se o afã de mostrar aos portugueses que sofrem de todas as doenças e mais uma, num momento em que a angústia funciona perfeitamente como incitadora do voto.
Até porque falar de doenças, lembra logo urnas...

SE LA PALICE NASCESSE, SERIA VACINADO

Deu brado, em 1979, no capítulo da patologia portuguesa, a descoberta feita por eminentes especialistas reunidos, em número de 300, no simpósio da Fundação Gulbenkian, entre 18 e 21 de Novembro.
Segundo a autoridade dessas sumidades, «a doença seria produzida por ambientes patogénicos».
Antes dos ecologistas, já La Palice teria afirmado o mesmo. Se a doença não cai do céu (excepto a doença Skylab); se não é obra de Satanás (como na Idade Média) ou milagre de Nossa Senhora (como no século XX), é óbvio que só pode ser produto do Meio Ambiente que a gera.
Mas por anunciar o óbvio, Galileo foi excomungado e Bruno queimado nas santas fogueiras da Inquisição. Pelo que convém ter alguma cautela ao mostrar o óbvio e ao gritar que o rei vai nu. Pode ser que vá mesmo e lá metem o intruso no chilindró.

Por causa disto, La Palice foi encostado à parede e os ecologistas aspas-aspas. Todos amigos do óbvio.
Vá lá que agora a classe científica já reconhece a génese ambiental de algumas doenças: a água, os alimentos, a poluição, os políticos, o fisco, os químicos alimentares, os medicamentos, o trabalho, a chatice quotidiana de existir em Portugal e ouvir os tecnocratas a ladrar, a propaganda internacional, os hidrocarbonetos, eu sei lá: um rol infindável de factores já são hoje reconhecidos e catalogados como causa das doenças que sofremos.
Bacilos e bactérias andam um tanto desmoralizados por se ter visto que, afinal, nem tudo era obra deles.
No caso dos medicamentos como causa de doenças, os peritos inventaram logo um nome bonito para designar uma coisa que poderá ser feia: iatrogénicos seriam, segundo a terminologia oficial, os medicamentos que provocam doenças.
Claro que a causalidade ambiental reconhecida em simpósio, ficou-se apenas por um ou dois dessas dezenas de factores (sectorizar para reinar é divisa da classe científica), não impedindo, por outro lado, que, na prática, tudo continue na mesma: quer dizer, a aplicar-se uma visão sintomatológica e não causal para apontar terapêuticas.
Sim senhor, a doença tem causas no ambiente mas... receita-se pílula, ou cirurgia, e deixa-se o ambiente na mesma, ou a resistência orgânica a esse ambiente cada vez mais enfraquecida pela toxicomania medicamentosa.
Do simpósio à terapêutica, da teoria à prática - constatam os observadores lapalicianos - continua o abismo habitual.
Se, de facto, reconhecido foi que os arranha-céus criam melancólicos, deprimidos, loucos e ansiosos, é evidente para a lógica do sistema que:
1 - Não vão evacuar-se todos os residentes em arranha-céus;
2 - Não vão derrubar-se os arranha-céus que existem, mas construir mais.
É evidente que, reconhecida a causa, a terapêutica continua a operar, unicamente, sobre o efeito/sintoma e para os ansiosos das «alturas» a ciência receitará medicamentos, divã, massagens, descontração e estupidez natural para a vítima vencer as crises; assim se garante, com vinte andares, vinte vezes mais lucros aos fabricantes de tranquilizantes.
Lapalice disse e os peritos em ambientologia clínica repetiram: mas o povo é que ainda não percebeu, embora tenha jornalistas de manhã à noite a informá-lo.
Só em 1979, artigos sobre Ecologia da Doença para a pia, foram aí uns trinta.
Lapalice não quer ser sacrificado.
Mas nos simpósios da Gulbenkian, o jornalista é benquisto e são capazes de lhe dar um «drink» escocês legítimo e salgadinho a apimentar. Lindas mesas-redondas dão lindas fotografias e o jornalista, desde que respeitador, venerador e obrigado, é sempre benvindo.
Desde que repita, sem crítica, os discursos deles.

PORQUE NÃO VAI O ECOLOGISTA APANHAR BORBOLETAS?

De românticos e utopistas a «caçadores de borboletas», têm os ecologistas sido acusados de quase tudo por causa do seu amor à vida, à Natureza e à saúde, quer de adultos quer de crianças, mesmo antes do ano internacional em que desataram todos a ser amigos delas, sem discriminação de idade ou raça, credo ou conta bancária.
Mas ao realizar, pela imprensa e seus títulos, o balanço do ano patológico e das entidades que nos tratam da saúde, com desvelos maternais, o observador pergunta onde estão os verdadeiros amigos da vida e da saúde dos portugueses tão subdesenvolvidos, como os jornais não se cansaram também de repetir nos 365 dias de 1979.


O Mundo inteiro só se ocupa e preocupa com a saúde dos portugueses. A Europa então nem se fala: constantemente telefona a perguntar como vamos de saúde e se está tudo a postos para o Mercado Comum, porque ela, absentismos não perdoa nem admite.
Só em flúor para a água de beber vão ser umas toneladas: como disse um médico dentista ao Canal 2 da RTP (Tal & Qual), instado pelo Joaquim Letria, o flúor provoca doenças renais, mas num país que se prepara para montar centros de hemodiálise a torto e a direito, dispensando ir largar divisas às clínicas de Barcelona, Cáceres e Badajoz, quanto mais nefríticos e doenças renais e rins para substituir houver, melhor. Oh! santas alminhas de Deus, quem não perceberá isto?
Uma rede de hemodiálise, igual ao melhor que se fabrica na Europa, é claro que implica produção em série de doentes renais que depois usem a dita hemodiálise.
E não foi La Palice que disse...

CAUSALISTAS E REFORMISTAS

Ninguém de bom coração pode negar simpatia a uma cooperativa para educação e reabilitação de crianças inadaptadas.
Ninguém de bom senso poderá dizer que uma liga de luta contra o cancro não é um organismo benfeitor.
Ninguém de sentimento pode considerar indesejável uma associação de protecção a diabéticos pobres.
Nenhum cristão deixará de louvar aquele comité que se destina a levar aos presos um pouco de conforto moral e algumas guloseimas pelo Natal.
Nenhuma consciência bem formada poderá pôr em causa a cadeia de solidariedade com as vítimas do sismo.
Nenhuma alma caridosa se atreverá a proclamar que o combate ao desemprego não é uma campanha lícita.
Nenhum patriota se atreverá a minimizar os esforços de empresas como a Mobil ora em defesa da Natureza e contra a poluição, ora para a poupança e conservação da energia.
Nenhum ser humano diminuirá o mérito de organizações como a O. M. S., sempre em luta contra a cárie, o paludismo, a arterioesclerose, o cancro, a droga, etc.
Nenhum bem alimentado do 1º e 2º Mundo deixará de ter olhos maternais para organizações como a F. A. O. que, há vinte anos, combate a fome, ou antes, alimenta a fome, conseguindo que ela seja hoje maior do que era então.
Ninguém com sangue nas veias poderá deixar de considerar nobre o gesto de dar sangue aos hospitais, esses vampiros que tanto gastam e necessitam do precioso líquido vital, copiosamente derramado por essas estradas e nem só.
Cidadão que se preza está grato e jamais ousará diminuir o mérito de campanhas no combate à morte rodoviária e ofícios correlativos.
Não há ternura que baste para as comissões de planeamento familiar reguladoras da pílula e destinadas a reprimir o aborto.
Enfim, estes poucos exemplos já dão para concluir uma coisa: se é verdade que homem sofre, rodeado de moléstias, miasmas, ameaças, poluições, desastres, calamidades, também é verdade que a sociedade que zelosa e proficuamente produz isso tudo, se encontra bem apetrechada de antídotos, por todo o lado monta postos de socorros, hospitais, bancos de sangue, telefones amarelos, ambulâncias 115, mangueiras, enfim, mecanismos de luta antipoluição a antiadversidade e antidoença por toda a parte.
Se é verdade que a sociedade do crescimento infinito tem de fabricar em escalada tudo isso -cancro, poluição, desemprego, hospitais, medicamentos, extintores, etc. - também é um facto, sobejamente animador, que não faltam empregos e postos de trabalho: cangalheiro, bombeiro, polícia, enfermeiro, sindicatos (para combater o desemprego), bem alimentados (para combater a fome), diabéticos (para combater a diabetes melitus), bomba de cobalto e medicina nuclear (para combater os cancros resultantes do ambiente nuclear...).
Cancros não faltam, graças a Deus, nesta providencial sociedade dita civilizada, mas organismos, instituições, nações unidas, indústria para os combater, também não.
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(*)Este texto de Afonso Cautela foi publicado no jornal «A Capital» (Crónica do Planeta terra), 20/1/1980
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CPT 1980

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OS BENEFÍCIOS DO TABACO(*)

(*) Publicado no jornal «A Capital» (Crónica do Planeta Terra), 19/1/1980

19/1/1980 – Depois de uma campanha antitabágica com vista a promover, indirectamente, outros fumos que, não sendo cancerígenos, podem no entanto conduzir em linha recta ao consumo generalizado de drogas mais pesadas -, eis que a campanha informativa para a plantação do tabaco em solos pobres de Portugal se vê a braços com uma dificuldade: justificar porque vai o País e seus economistas promover o cancro através da plantação industrial do tabaco.
Foi lindo de ver, portanto, na imprensa, as lamúrias sobre as qualidades cancerígenas do querido tabaquinho, mas ao mesmo tempo (blá, blá, blá, blá), a necessidade económica de poupar esse balúrdio de divisas. Ao mesmo tempo, vinha a tal poupança dos 60 milhões de contos, caso os prospectores descobrissem petróleo nas furnas do nosso subsolo. Ah! gente catita, sempre com o nariz no fundo, ao cheiro da rica bagunça!

Um dos ingredientes para convencer os portugueses da virtude (não só cancerígena mas económica) do tabaco, consiste em se dizer, no Instituto Superior de Agronomia, para dar o crédito científico, que se vai pôr a planta em solos pobres. E enumeram-se, para o público que não percebe nada de solos, nem ricos nem pobres: terra de charneca e dos arneiros, na zona de Coruche, Sorraia, Grândola, Alcácer do Sal e campina de Idanha. Tudo zonas conhecidas pela sua intertilidade e avareza. Não foi mal escolhida esta dos solos pobres, para lavar os pobres cérebros da gente.
As U. C. P. de Montargil anunciam rica safra de tabaco, a coisa no colectivismo vai de vento em popa, mas logo no semanário «Dez de Junho», que não me parece morrer pelas ideias agro-colectivistas, vejo o mesmíssimo entusiasmo foto-reportagem sobre a economia do tabaco, futuro e glória da dita plantinha.
Entretanto e no verso da página onde a imprensa anuncia os benefícios do tabaco, vem um senhor doutor (da Universidade de Virgínia, de preferência) alarmar a malta porque, já se sabe, cuidado, meus meninos, o tabaco (bem como a hóstia e a ecologia) provoca o cancro.

VIVA O TABACO

A Unidade Colectiva de Produção '12 de Maio', próximo de Montargil, no Alto Alentejo, está a dedicar-se, desde o ano passado, à cultura do tabaco.
Tendo em vista o alargamento desta cultura, que a direcção da U. C. P. - segundo um dos seus elementos declarou à Anop - considera até agora positiva e promissora, foram há pouco tempo concluídos seis secadores para tabaco e um armazém de grandes dimensões para a sua recolha.
O custo destes melhoramentos agora concluídos atingiu vários milhares de contos.(Jornal Novo, 11-9-1979).

ABAIXO O TABACO

'O Tabaco ou a Saúde' é o tema proposto à reflexão dos homens pela Organização Mundial de Saúde (O. M. S.) para o dia 7 de Abril de 1980.
Nesse sentido e secundando um pedido do director da mesma organização mundial de caridade, foi criada, em Portugal, uma comissão nacional para estudar a melhor forma de dar corpo a um plano nacional de luta contra o tabaco.
O presidente da referida comissão e director do Gabinete de Estudos e Planeamento da Secretaria de Estado da Saúde, prof. Cayolla da Mota, expôs as linhas gerais do programa que se pretende realizar.
O problema do tabagismo está a revestir aspectos preocupantes, pois, como afirmou o prof. Cayolla da Mota, julga-se que seja esta a principal causa da incidência dos cancros do pulmão. Segundo dados fornecidos pelo prof. Cayoila da Mota, no ano de 1960 consumiram-se, em Portugal, 7104 toneladas de tabaco e, em 1975, 12 482. (Dos jornais. 22.11.1979).

CANCRO E TABACO: AUMENTO DA PRODUÇÃO

Apesar de todos os esforços até agora feitos para reduzir o consumo do tabaco, de 1970 a 1976 a produção mundial do tabaco aumentou 20 por cento.
«Em alguns países, a produção e venda do tabaco é um monopólio do Estado, que retira daí chorudos lucros mas. segundo os técnicos da saúde, esses lucros são apenas aparentes.
«Se o Estado contabilizar todo o dinheiro que gasta no tratamento de doenças provocadas pelo tabaco, bem como os prejuízos causados à economia pelo absentismo dos trabalhadores afectados, o balanço será altamente negativo.
«As estatísticas da O. M. S. mostram que 90 por cento das mortes devidas a cancro do pulmão, 25 por cento dos óbitos por deficiência cardiovascular e 75 por cento das mortes atribuídas à bronquite crónica, estão directamente ligadas ao consumo de tabaco. Isso significa sem exagero que pelo menos um milhão de pessoas morre em cada ano, por causa do fumo. »
(Mensagem da caridosa O. M. S., veiculada pela Anop, em 29 de Novembro de 1979).

OS BENEFÍCIOS DO TABACO E OS MALEFÍCIOS DA MEDICINA

A Organização Mundial de Saúde insiste em avisar a humanidade contra os perigos do tabaco. Desdobra-se em revistas, folhetos, autocolantes, cartazes, em todos os idiomas do mundo, incluindo o tabaquês.
Nunca ninguém a ouviu avisar a humanidade sobre os efeitos iatrogénicos dos medicamentos, mormente cortisona, pílula cor-de-rosa, antibióticos, soro e tantos outros que, como se sabe (sem precisar de ir a Genebra), provocam doenças piores do que aquelas que dizem curar.
A Organização Mundial de Saúde já deixou de fingir e melhor se chamaria delegação em Genebra das multinacionais dos medicamentos.
As impressionantes estatísticas da O. M. S. sobre as doenças, tal como as da FAO. sobre os esfomeados que ela, FAO., maternalmente alimenta, têm valor igual à sua coerência.
Pelo que o melhor é irmos fumando o nosso tabaquinho, uma das poucas maneiras da gente se distrair destes doutores com ar muito clínico a dizer que nos tratam da saúde e que nos protegem contra os malefícios do fumo.
Prefiro esses malefícios todos aos de Genebra e nem só.

TABACAR OU NÃO TABACAR:HAMLÉTICO DILEMA DA VIDA PORTUGUESA

A contradição ainda não tem vacina nem está catalogada entre as doenças mais graves de que sofre a classe científica e dirigente, mas não deve ser esquecida num balanço79 das lusas moléstias.
Entre as contradições que fizeram mais faísca, a do tabaco deixou o macaco a .. fumar de espanto. A deitar fumo...
Por um lado, no copioso noticiário da imprensa,«tabaco ser pior que Khomeiny».
Por outro lado e acompanhado de fotos, vamos ser auto-suficientes nesta fábricazinha caseira de cancros (segundo os peritos da O. M. S.) e estamos por toda a parte suficientemente avisados pela Comissão Nacional do Ambiente para não fumar nos recintos desportivos fechados.
Eu, fumador inveterado leitor de jornais, fico pior que o Hamlet suspenso deste dilema, sem saber se hei-de debulhar a tia, se hei-de malhar no pai.
Fumar ou não fumar, tabacar ou não tabacar, quem ajuda os portugueses a escolher?
Por um lado, é o fim da macacada como agente cancerígeno, logo a seguir à hóstia; por outro, o tabaco é a nossa safa para o Mercado Comum, se nos quisermos apresentar com alguma «ingrícola» de talha industrial que se veja.
O plano do Mercado Comum é importarmos totalmente trigo e milho, e totalmente produzirmos tabaco e talvez beterraba para açucarar o chá dos europeus que se viciaram nisso por causa da senhora Thatcher.
Ponderemos, pois, neste balanço entre ser e não ser, entre cancro e tabaco.

AMARGA EUROPA QUER O NOSSO AÇÚCAR

Outra contradição ainda sem vacina e que ameaça tornar-se crónica, é a da beterraba sacarina para fins industriais de açúcar, porque a Europa, quanto mais amarga mais doce quer.
Quando as doenças comprovadamente criadas por este desmineralizador ou descalcificador número 1 são já objecto de simpósios e relatórios da maternal O. M. S., se peritos já dizem hoje o que os ecologistas dizem há pelo menos uma década, se o açúcar não mata só ratos, porquê - oh! Hamlet- se vai destinar à indústria açucareira a beterraba que, enquanto legume, daria para alimentar muitas bocas esfomeadas deste País?
Sendo alimento, iria ajudar a diminuir as doenças claramente provocadas também por essa causa número 1: a miséria, a fome.
Quem os entende? E quem entende os noticiaristas que se limitam a estampar, na mesma página, dois termos flagrantemente contraditórios sem pestanejar?
Será a lógica uma beterraba ou o que andou Mao a pregar, afinal, sobre as virtudes revolucionárias da contradição, se não aprendemos nada com ela e fingimos até não a ver?
Porque se destina a beterraba, alimento directo de primeira qualidade, para alimentar a indústria desalimentar e patogénica que é a do açúcar?
Eu sei que há os alcoóis a mexer nisto e que Portugal já não tem a teta do açúcar colonial.
Mas o álcool será alimento ou a segunda causa de mortalidade em Portugal?
Que perito ou simpósio responde a este novo dilema?
Ou será que, no fundo, convém mesmo que a doença aumente em ritmo vertical, o alcoolismo e nem só, o tabagismo e nem só?
Será que a doença é mesmo lucrativa?
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(*) Publicado no jornal «A Capital» (Crónica do Planeta Terra), 19/1/1980
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MEP 1987

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TESTEMUNHO PESSOAL SOBRE O MOVIMENTO ECOLÓGICO E ALTERNATIVO EM PORTUGAL

Palestra de Afonso Cautela na Associação Portuguesa Vegetariana, dia 19 de Janeiro de 1987, às 21 horas

19/1/1987 - Não fora a grande admiração que tenho pelo nosso amigo Dr. António Cardoso e pela sua incansável actividade em prol das boas causas, não só nesta Associação Portuguesa Vegetariana como em tantas outras iniciativas de militância naturista, não fora, como digo, esta admiração por uma pessoa que tem dedicado a sua vida a fazer tanto pela vida dos outros e eu teria continuado a dizer não a este seu convite, a inventar desculpas para não vir aqui esta noite.
Dir-me-ão : «Mas então porque veio?»
Já vos expliquei: porque o dr. Cardoso insistiu e porque não lhe soube dizer não.
Mas perguntarão outra vez: «E porque não havia de vir? Não tem andado toda a vida a pregar pelas boas causas ? Não será sua obrigação continuar até cair redondo ou que o vento o leve?».
A resposta é esta: pela parte que me toca, acho que já cumpri, mal mas cumpri, neste país, a minha missão ou quota parte das militâncias.
Acho que o país não merece que a gente se sacrifique por ele, ou que levante sequer o cu da cadeira.
Acho que está tudo do avesso e que os mais perseguidos - movimentos e pessoas - são exactamente os que deviam ser mais ajudados.
Enfim, acho que os próprios consumidores também não têm feito nada em sua própria defesa e, ao fim e ao cabo, estes movimentos todos de naturistas, vegetarianos, amigos do ambiente, defensores da natureza, etc., são movimentos de consumidores que ainda não se assumiram como tal, não conseguiram ainda perceber a sua identidade autónoma, o seu papel, no país e no mundo, não conseguiram organizar-se para dar luta ao inimigo.
Nem sequer ao nível mais elementar da informação para o exterior, conseguiram organizar uma frente unida e uma voz activa.
E é aqui que eu queria chegar, à informação, não só porque escrever notícias é a minha profissão, mas porque me parece que pela informação passa o destino das mais belas ideias e dos mais interessantes projectos naturo-vegetarianos-ecologistas, em que acreditamos, em que dizemos acreditar.
Todos os meses, como sabemos, esta Associação organiza ciclos de actividades. E eu vejo o empenho, a paciência com que o Dr. Cardoso tenta divulgar estas iniciativas, como procura captar sempre novos auditores para estas conferências e viajantes para as suas excursões pela natureza.
Mas sejamos francos e vamos confessar aqui uns aos outros que ninguém nos ouve, que ninguém nos liga: o nosso movimento não anda nem desanda, não tem voz nem cabeça, patina, está afogado num pântano, somos sempre os mesmos, cada vez menos e cada vez mais cansados.
Eu temo recordar um já distante dia de Maio de 1974, em que se fez uma reunião na cooperativa Unimave das correntes que, por minha culpa, chamámos correntes não-violentas, ou seja, de todos os que, neste país, advogam alternativas ecológicas suaves e brandas, alternativas de vida e de amor contra o ódio e a violência estrutural da sociedade industrial.
O que foram os episódios subsequentes desta telenovela, nem quero lembrar, embora tencione não acabar os meus dias sem contar, ponto por ponto, memória por memória, est6a história por vezes macabra, por vezes rocambolesca, por vezes macaca, por vezes patética, de um autodenominado movimento ecológico português que acabaria, sem vergonha e sem remorso para os ladrões que o abarbataram, por ser anexado por um partido que, além de se intitular verde, achou por bem servir-se do título Movimento Ecológico Português (M.E.P.) que em 1975 se constituíra , de acordo com a lei, em associação de fins não lucrativos.
Se me perguntarem porque estou cansado, aí está : estou cansado por não me deixarem fazer o que sonhei fazer, por me virem tirar das mãos as ideias, os projectos, as palavras e até os títulos que ao longo de 15 anos fui atirando à terra.
Estou cansado de um país de merda em que deputados verdes põem, como o cuco, os ovos nos ninhos dos outros.
Se me perguntarem porque estou cansado e porque tive que me violentar para estar aqui esta noite, aí está : é por essas vigarices e por outras, por essas patifarias, por esses partidos amigos do povo e dos animais, por toda esta choldra de oportunistas e vígaros, que assolaram o meio naturo-vegetariano-alternativo-ecológico para sacar, instrumentalizar, sujar, travestir, deturpar, aldrabar, comerciar, traficar.
Em todos eles, menos em nós, militantes alternativos, é patente uma cobiça: o acesso ao monopólio dos meios de informação.
Pois bem: os alternativos, vegetarianos, naturistas, ambientalistas ainda não se organizaram para pôr a funcionar um órgão que seja porta-voz das suas actividades e anseios. Isto apesar das revistas naturistas que se publicam. É que, como podem reparar, essas revistas pouco ou nada falam de nós e das nossas actividades, pouco ou nenhum noticiário têm, enfim, não existem jornalisticamente falando em termos de batalha da informação.
E depois talvez se queixem de que não têm público. Talvez os que desenvolvem actividades se queixem de que os jornais não dão notícias deles.
E não dão, e lógico. Os jornais estão voltados para as fofocas do mundo estabelecido, estão-se nas tintas para as alvoradas e as esperanças do mundo alternativo, das tecnologias brandas, das medicinas suaves, da criação e da vida.
São os militantes deste mundo alternativo que têm de se organizar para ter a sua própria mini-agência de notícias, a sua miniredacção, a sua mini-informação quinzenal ou semanal à comunicação social para a comunicação social finalmente nos levar a sério.
Já perdi o conto das entidades a quem propus o projecto desta mini-agência de notícias para o mundo alternativo. Propus ao Instituto Nacional de Defesa do Consumidor. Propus ao Instituto Médico Naturista. Propus à Natiris. Propus eu sei lá a quantos mais.
Na melhor das hipóteses, nem me leram, nem me ouviram. E, claro, não responderam.
É o que eu chamo morar na travessa do fala-só e ter tirado diploma de falar pró-boneco.
Durante meses sustentei semanalmente no jornal onde trabalho, uma secção noticiosa das actividades alternativas, uma secção intitulada «Grupos em Movimento».
Pedi a vários desses grupos que tomassem em mão a redacção dessa secção, pois eu já me sentia cansado. Eram todos amigos da terra, amigos do verde (tinto)mas nenhum quis aceitar esse encargo anónimo e sem glória, chato e sem brilhe, de fazer, dia a dia, pequenas notícias dos pequenos acontecimentos do nosso movimento para enviar para a grande informação.
Quando, pois, a grande informação se borrifa em nós, o melhor é a gente queixar-se de nós e não da grande informação.
Não temos garra, não temos força, se ainda não conseguimos montar um dispositivo para produzir aquilo que é, na comunicação social, o mais simples de fazer: a notícia.
E se há causas cuja vitória passa integralmente pela notícia, pela informação intensiva, clara, desinibida, alegre, festiva, é a causa naturo-vegetariana-ecologista.
Se formos vencidos na informação, seremos definitivamente vencidos como força alternativa de vida contra as forças de morte, merda e mentira deste tempo e mundo.
Vejam a santa madre igreja como grita, possessa, dizendo que lhe vão tirar o resto do bolo monopolístico das frequências radiofónicas, o resto que lhe faltava para ter o poder absoluto, integral e eterno sobre os delicados espíritos dos radiouvintes.
São assim os movimentos espirituais: só precisam da rádio, da TV e dos jornais para terem o mundo na mão.
Que nós, militantes da verdade alternativa, acordemos a tempo de ver isto, são os meus votos. Mas os meus votos um tanto azedos, dado que já estou rouco de pregar no deserto, de falar pró boneco, de morar na travessa do fala-só, sem ninguém querer ouvir.
Por agora e como diz o anúncio da TV, transformado em ternura diária das nossas consciências, vamos dormir porque amanhã às cinco já tenho de estar a pé para às oito estar no jornal a escrever notícias do mundo de mortos e feridos.
Vamos todos dormir, como diz o Vitinho da televisão, borla que a nossa televisão dá todas as noites à maior multinacional do agrobusiness alimentar.
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