MODERNIDADE 1971
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8/Abril/1991
[CUIDADO COM A PALAVRA «EXAME»][A EMENDAR, ESTÁ NA FASE DE BORRÃO, NEM AS GRALHAS FORAM CAÇADAS]
Se a ideia de Modernidade significa alguma coisa, na música ou na literatura, então terá que levar às últimas consequências as consequências da sua própria lógica aberta. Se a Modernidade existe, teremos, por exemplo, que reabilitar Teófilo Braga que Antero zurziu na célebre polémica coimbrã, ou o Júlio Dantas, vítima do impiedoso manifesto antidantas com que Almada Negreiros demarcava as águas entre modernidade e acedemismo.
O imperativo categórico da Modernidade - embora mal aceite pelos modernistas - é ter que abraçar a «parte maldita», é ter que compreender sem termo antagónico o academismo, é ter de aceitar a relatividade de tudo, não só dos cânones clássicos mas dos anticânones modernistas, transformados em neo-academismos.
Este desafio ainda não foi digerido pela crítica institucional e por isso me parece que a modernidade ainda não começou. Talvez por isso se fale tanto em pós-modernidade.
O ideal de beleza proposto pelos cânones estáticos serve de prototipo ao que acaba por ser o paradigma da sociedade competitiva, que se inspira em ideais (de beleza, de bem, disto e daquilo) para atingir metas (da cee, disto e daquilo).
Com estes estes pressupostos de luta pela vida, confirmada por darwin e darwinistas, a vida neste contexto de competição é remetida para o território da barberia, transforma-se em «corrida de obstáculos». A começar na vida prática e a acabar na arte, na vida ou criação artística. A Arte -- mergulhando no mesmo paradigma -- não está isenta desta perversão, antes pelo contrário, reforça-a persegue metas, orienta-se por ideais, regula-se por regulamentos ou cânones, salta obstáculos como se fosse um concurso , um match. O texto de Bernhard é, mal disfarçado de ficção, uma revolta contra a abjecção.
Se a Modernidade, afinal, ainda não inventou nem pôs à venda um «competentómetro», o mais e o menos que um crítico, um professor da teoria literária pode fazer é aceitar tudo o que lê sem o olho vesgo dos preconceitos. Ler não é dividir o mundo entre o inferno dos maus e o paraíso dos bons. Todos os discursos -- mas todos --têm direito a existir. Findou para sempre a ideia de que o crítico é o juiz que classifica um livro de mau a óptimo, e isto foi o que de mais interessante a Modernidade trouxe. Em todos os domínios, a perspectiva de escala. A relatividade. O relativismo. O melhor contributo que a modernidade trouxe para atenuar o orgulho e arrogância do umbilicalismo ocidental.
O paradoxo da arte, hoje, é este e está contido, em termos quase didácticos, no romance alegórico de Thomas Bernhard, «O Náufrago», editado pela editora Relógio d'Água. O que a Modernidade nos ensinou de melhor foi a relatividade dos juízos humanos e, nomeadamente, das classificações críticas, das hierarquias, do valor atribuído a uma obra. Os génios que, como Pessoa, morrem praticamente desconhecidos e só tardiamente começam a entrar nos circuitos da análise literária, ilustram o principal paradoxo da Modernidade, num tempo tão antimoderno -- porque bárbaro -- como este tempo e mundo (leia-se «tempo imundo») em que um texto, uma criação, uma ideia é coada através dos vários dispositivos ideológicos e burocráticos chamados júris - de exames, antologias, prémios e best-sellers (a engrenagem ainda mais pesada e tétrica que é essa abstracta e fantasmagórica entidade chamada opinião pública)
Ainda que por um processo de translação alegórica mas toda a narrativa de Bernhard é uma autobiografia (principalmente mental) na medida em que evidencia manias, dúvidas, inquietações, medos, desesperos que o obcecam.
O irrisório de todos os actos humanos, a ausência de regras que estipulam onde está o virtuose e o virtuosismo, a cilindragem dos discípulos pelos mestres-galinha (que o romance de Bernhard contempla de vários adjectivos pejorativos) é o que Thomas Bernhard pensava de si próprio e dos seus problemas de escritor.
No fundo e levando às últimas consequências esta sua lógica, o livro leva-nos à questão: onde está a linha demarcatória entre o bom e o mau. Entre o bom e o mau romance, o bom e o mau escritor?
Não existe. E não existindo, a sociedade perde o suporte e o autor também. Desabam ambos. E ele atira-se da ponte abaixo.
Ao transferir a história para uma comunidade de músicos, é por demais evidente que Bernhard quer contar-nos as vicissitudes estruturais do escritor e sua vulnerabilidade. Afinal, vivendo na Áustria, pátria da música (?) podia dar melhor a arquétipo do artista que ele pretendia.
Se o suicídio (ou seus sucedâneos) aparece como pano de fundo permanente das situações contadas por Bernhard -- cujo fascínio narrativo não se compreende muito bem de onde emana -- se um ténue fio de humor negro e de ironia transparece de uma espessa angústia, o autor está sempre omnipresente nessas páginas aparentemente supérfluas.
A excessiva e transbordante modernidade deste autor vem principalmente de um facto: em cada página, em cada linha, ele retorna à estaca zero. A criação artística tal como aqui é retratada, é esse processo de sísifo, esse rochedo indefinidamente carregado, essa falta de regras, de hierarquias e de pontos de referência.
No entanto, a criação artística para chegar ao público, passa por um processo de contaminação e de triagem, tal como o aluno diligente que se deixa (de)formar, examinar, classificar, para poder ocupar o lugar social com que sonha.
Que a arte tenha de passar por toda esta (incrível) escola de menorização mental., que tenha de fazer exames, que o artista leve um rótulo de péssimo, mau, medíocre, sofrível, suficiente, bom e muito bom, óptimo, tal como o aluno na escola os recebe do professor, eis o que está latente, como perversão suprema, e constantemente segredado, aos ouvidos destes personagens músicos de profissão - o anátema de traidores. Ao ser examinado por um professor, o músico criador transforma-se num examinado obediente: não será nunca o que é e o que tem de ser, mas o que tem de fingir para passar a prova e conseguir o diploma.
Só por engano se pode considerar este percurso de «exame» e «prova» como o rito de passagem de antigas iniciações, para, como dizia Nietzsche, ser o que se é. O exame é mesmo a caricatura da iniciação. E daí, talvez, o mais óbvio: a sociedade que tem o «exame» como estrutura-pivô das várias hierarquias, estratificaçõpes e rótulos, é a caricatura de uma comunidade de rosto humano.
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8/Abril/1991
[CUIDADO COM A PALAVRA «EXAME»][A EMENDAR, ESTÁ NA FASE DE BORRÃO, NEM AS GRALHAS FORAM CAÇADAS]
Se a ideia de Modernidade significa alguma coisa, na música ou na literatura, então terá que levar às últimas consequências as consequências da sua própria lógica aberta. Se a Modernidade existe, teremos, por exemplo, que reabilitar Teófilo Braga que Antero zurziu na célebre polémica coimbrã, ou o Júlio Dantas, vítima do impiedoso manifesto antidantas com que Almada Negreiros demarcava as águas entre modernidade e acedemismo.
O imperativo categórico da Modernidade - embora mal aceite pelos modernistas - é ter que abraçar a «parte maldita», é ter que compreender sem termo antagónico o academismo, é ter de aceitar a relatividade de tudo, não só dos cânones clássicos mas dos anticânones modernistas, transformados em neo-academismos.
Este desafio ainda não foi digerido pela crítica institucional e por isso me parece que a modernidade ainda não começou. Talvez por isso se fale tanto em pós-modernidade.
O ideal de beleza proposto pelos cânones estáticos serve de prototipo ao que acaba por ser o paradigma da sociedade competitiva, que se inspira em ideais (de beleza, de bem, disto e daquilo) para atingir metas (da cee, disto e daquilo).
Com estes estes pressupostos de luta pela vida, confirmada por darwin e darwinistas, a vida neste contexto de competição é remetida para o território da barberia, transforma-se em «corrida de obstáculos». A começar na vida prática e a acabar na arte, na vida ou criação artística. A Arte -- mergulhando no mesmo paradigma -- não está isenta desta perversão, antes pelo contrário, reforça-a persegue metas, orienta-se por ideais, regula-se por regulamentos ou cânones, salta obstáculos como se fosse um concurso , um match. O texto de Bernhard é, mal disfarçado de ficção, uma revolta contra a abjecção.
Se a Modernidade, afinal, ainda não inventou nem pôs à venda um «competentómetro», o mais e o menos que um crítico, um professor da teoria literária pode fazer é aceitar tudo o que lê sem o olho vesgo dos preconceitos. Ler não é dividir o mundo entre o inferno dos maus e o paraíso dos bons. Todos os discursos -- mas todos --têm direito a existir. Findou para sempre a ideia de que o crítico é o juiz que classifica um livro de mau a óptimo, e isto foi o que de mais interessante a Modernidade trouxe. Em todos os domínios, a perspectiva de escala. A relatividade. O relativismo. O melhor contributo que a modernidade trouxe para atenuar o orgulho e arrogância do umbilicalismo ocidental.
O paradoxo da arte, hoje, é este e está contido, em termos quase didácticos, no romance alegórico de Thomas Bernhard, «O Náufrago», editado pela editora Relógio d'Água. O que a Modernidade nos ensinou de melhor foi a relatividade dos juízos humanos e, nomeadamente, das classificações críticas, das hierarquias, do valor atribuído a uma obra. Os génios que, como Pessoa, morrem praticamente desconhecidos e só tardiamente começam a entrar nos circuitos da análise literária, ilustram o principal paradoxo da Modernidade, num tempo tão antimoderno -- porque bárbaro -- como este tempo e mundo (leia-se «tempo imundo») em que um texto, uma criação, uma ideia é coada através dos vários dispositivos ideológicos e burocráticos chamados júris - de exames, antologias, prémios e best-sellers (a engrenagem ainda mais pesada e tétrica que é essa abstracta e fantasmagórica entidade chamada opinião pública)
Ainda que por um processo de translação alegórica mas toda a narrativa de Bernhard é uma autobiografia (principalmente mental) na medida em que evidencia manias, dúvidas, inquietações, medos, desesperos que o obcecam.
O irrisório de todos os actos humanos, a ausência de regras que estipulam onde está o virtuose e o virtuosismo, a cilindragem dos discípulos pelos mestres-galinha (que o romance de Bernhard contempla de vários adjectivos pejorativos) é o que Thomas Bernhard pensava de si próprio e dos seus problemas de escritor.
No fundo e levando às últimas consequências esta sua lógica, o livro leva-nos à questão: onde está a linha demarcatória entre o bom e o mau. Entre o bom e o mau romance, o bom e o mau escritor?
Não existe. E não existindo, a sociedade perde o suporte e o autor também. Desabam ambos. E ele atira-se da ponte abaixo.
Ao transferir a história para uma comunidade de músicos, é por demais evidente que Bernhard quer contar-nos as vicissitudes estruturais do escritor e sua vulnerabilidade. Afinal, vivendo na Áustria, pátria da música (?) podia dar melhor a arquétipo do artista que ele pretendia.
Se o suicídio (ou seus sucedâneos) aparece como pano de fundo permanente das situações contadas por Bernhard -- cujo fascínio narrativo não se compreende muito bem de onde emana -- se um ténue fio de humor negro e de ironia transparece de uma espessa angústia, o autor está sempre omnipresente nessas páginas aparentemente supérfluas.
A excessiva e transbordante modernidade deste autor vem principalmente de um facto: em cada página, em cada linha, ele retorna à estaca zero. A criação artística tal como aqui é retratada, é esse processo de sísifo, esse rochedo indefinidamente carregado, essa falta de regras, de hierarquias e de pontos de referência.
No entanto, a criação artística para chegar ao público, passa por um processo de contaminação e de triagem, tal como o aluno diligente que se deixa (de)formar, examinar, classificar, para poder ocupar o lugar social com que sonha.
Que a arte tenha de passar por toda esta (incrível) escola de menorização mental., que tenha de fazer exames, que o artista leve um rótulo de péssimo, mau, medíocre, sofrível, suficiente, bom e muito bom, óptimo, tal como o aluno na escola os recebe do professor, eis o que está latente, como perversão suprema, e constantemente segredado, aos ouvidos destes personagens músicos de profissão - o anátema de traidores. Ao ser examinado por um professor, o músico criador transforma-se num examinado obediente: não será nunca o que é e o que tem de ser, mas o que tem de fingir para passar a prova e conseguir o diploma.
Só por engano se pode considerar este percurso de «exame» e «prova» como o rito de passagem de antigas iniciações, para, como dizia Nietzsche, ser o que se é. O exame é mesmo a caricatura da iniciação. E daí, talvez, o mais óbvio: a sociedade que tem o «exame» como estrutura-pivô das várias hierarquias, estratificaçõpes e rótulos, é a caricatura de uma comunidade de rosto humano.
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