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2006-02-16

POLUIÇÃO 1974

74-02-16-ie-bd> scan domingo, 17 de Novembro de 2002 – ainda hoje ninguém deu por nada , quase quarenta anos passados...

A ESCALADA DA POLUIÇÃO E NINGUÉM DEU POR NADA (*)

[(*) Este texto de Afonso Cautela, com este título, foi publicado no «Diário do Alentejo», (Beja), em 16 de Fevereiro de 1974]

[16 de Fevereiro de 1974] - Foi a invasão das motoretas e ninguém deu por nada. Um dia a cidade acordou com o ronco, esfregou os olhos de sono, voltou-se para o outro lado, disse que estava resignada, habituou-se.
Foi a poluição do ar pelos fumos de toda a ordem e ninguém reparou. A cidade cheirou-- convencida de que era boato - e seguiu adiante; há coisas mais importantes na vida (o automóvel ou a caça à perdiz, por exemplo) do que o ar respirável. Liga-se para o 115 e pronto, vem logo uma barrica de oxigénio.
Foi o leite com percentagens de DDT e quase ninguém reparou: uma notícia de jornal, o sorriso displicente do consumidor - que julgou tratar-se de mais um boato - o interesse do produtor quase em causa e que abafou o escândalo, e a população, resignada, rezou mais uma oração e entregou-se nas mãos da Providência. «Não há-de ser nada, se Deus nosso Senhor quiser».
Foram os ciclamatos nas bebidas, houve comunicados de cá e de lá, agitaram-se as águas, o cidadão não acreditou - pode lá ser que se ponha cancro numa inocente bebida refrigerante! -, voltou-se para o outro lado e adormeceu de novo.
Foram as águas das praias atacadas de necrose, alguns títulos de grande largura nas primeiras páginas, respingos, explicações, alibis históricos - já havia poluição no tempo de Abraão - tranquilidade. O alfacinha volta a banhar-se nas salsas ondas, pois o que não mata engorda.
Foi o repetido slogan de que o tabaco provoca o cancro e quanto mais os telex se desunhavam a transmitir provas do «tabaco assassino», mais o consumidor repuxava a sua fumaça, inteiramente na razão: «Morrer por morrer, porque hei-de privar-me disto?». Variante: «Morra o gato, morra farto.
Foi o alarme dos antibióticos, mas como só um caso em mil pode ser mortal, toda a gente raciocinou: «Logo me havia de calhar a mim?» Claro que não, essas coisas acontecem sempre aos outros, por isso o mais sensato é aceitar a fatalidade.
Sim, porque segundo a ideologia tecnocrática, não há outro remédio senão correr riscos para extrair todos os benefícios conhecidos dos antibióticos.
Foi o caso das talidomidas e do talco com hexaclorofene mas logo vieram comunicados tranquilizantes: que isso era só lá nesses países bárbaros da Europa e que tais químicas só em excesso se tornam perigosas. Como nunca até hoje se definiu, em tais apertos, onde acaba e começa o excesso, todos continuaram no seu colchão de molas, absolutamente convencidos de que estavam na dosagem ideal. Acima de tudo, nada de interromper a soneca.
Foram as vacinas que antecipavam a doença em vez de a evitar mas, mais uma vez, em holocausto da ciência sacrossanta, se falou do risco que é o preço a pagar pelo progresso, a pagar equitativamente só por alguns.
Foi a nafta nas praias e os lindos concursos de construção em nafta (a praia deixou de existir como extensão de areia), fez-se algum humor negro pela rama, o caso dissolveu-se com mais uma piada (daquelas em que somas férteis) e um sorriso bonómico de condescendência coroou a porcaria.
Foi a invasão dos jactos pelos tímpanos dentro, o sono interrompido, o descanso e o trabalho perturbado, o sistema nervoso num fanico, mas logo os «mass media» esclareceram de que viver na cidade não é bem o mesmo que num pinhal, numa serra, à beira de um lago, numa praia deserta; temos de sacrificar ao progresso algo da nossa paz e saúde.
Pelo que o cidadão, muito amigo do progresso práfrentex é que é bom, aceitou dormir menos 3 horas por noite mas ficar com uma reserva de progresso na gaveta da cómoda, não vá o progresso, com a gasto que lhe dão, gastar-se.
Foi a questão dos espaços verdes e novamente pelo conhecido mecanismo da evasiva - árvores para aqui, arbustos para acolá - as massas foram ficando neutralizadas pela conversa e mentalizadas, mal se precataram, para aceitar uma cidade careca de clorofila, completamente desprovida de pulmões, sujeita à intoxicação crónica dos escapes; a cidade ficou encantada, não só porque estava quase a par dos recordes mun-diais em contaminação atmosférica mas porque o Parque Eduardo VII, em vias de extinção, continha nas entranhas a reserva de oxigénio da Estufa Fria que não era só para gáudio de turistas. Aos domingos, podia criar-se o hábito de ir à Estufa buscar uma garrafinha de oxigénio para a semana.
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(*) Este texto de Afonso Cautela, com este título, foi publicado no «Diário do Alentejo», (Beja), em 16 de Fevereiro de 1974
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