1-6 - 73-08-14-ie> = ideia ecológica - quinta-feira, 5 de Dezembro de 2002-scan ECOLOGIA QUER DIZER REVOLUÇÃO(*)
14/Agosto/1973 - Enquanto editorialista do "Diário de Lisboa", José Saramago levantou na coluna Opinião questões do fundo ecológico, com uma lucidez e pertinência não muito vulgares nas tribunas políticas da nossa Imprensa.
Por isso mesmo a sua opinião se torna representativa da "desconfiança" que aos portugueses tem merecido a problemática ecológica (mesmo quando adregam de se interessar por ela), principalmente se esses portugueses fazem questão de ostentar um engagement político, bem definido à esquerda ou à direita.
Geralmente não se sai de um destes equívocos: ou se acusa a luta ecológica de reaccionária (se o ponto de vista é esquerdizante) ou se recupera sob a forma de "política do ambiente" (se é das direitas que parte a iniciativa).
Ao comentar um texto de José Saramago publicado no «Diário de Lisboa» em 14 de Agosto de 1973, escolhi-o pela representatividade do seu autor - cuja independência política ficou bem patente nos comentários que escreveu naquele jornal ao longo dos anos - e para revelar até que ponto um pensamento crítico de esquerda não ultrapassa, - se a matéria é Ecologia - os equívocos comuns às tácticas conformistas e reformistas da antipoluição, incapaz de compreender o abismo que separa a revolução ecológica da reacção antipoluente.
É o seguinte o texto de José Saramago que me permito comentar depois:
"Dizem as agências noticiosas, fazendo fé nos diversos sinais de carência que por toda a parte avultam e certamente se irão multiplicando, dizem essas agências que por volta de 1980 o mundo todo corre o risco de um grave colapso, naturalmente muito mais grave nos países industrializados, pois as fontes de energia estão em processo de esgotamento acelerado. Há quem fale até na ameaça de retorno a uma nova Idade Média, o que acabará por roubar todas as esperanças àqueles países que, atrasados ou em cansativa via de desenvolvimento, verão os poderosos açambarcarem as últimas e preciosas reservas, ficando assim para as calendas ou para o dia de S. Nunca à Tarde uma promoção que já hoje se considerava duvidosa. Quem sabe se por este mesmo argumento da escassez de energia não imporão os países ricos um novo factor de atraso aos países pobres? Quem sabe se todo este alarme não é também uma interessada modalidade de alarmismo?"
Finda a transcrição, passo ao comentário:
Que o sistema já recuperou o alarme ecológico, é evidente, é patente. Os maiores poluidores são os primeiros a falar da luta contra a poluição.
Bob Dylan blasfema contra o capitalismo em espiras gravadas de que o capitalismo aufere lautos lucros. E depois? Veja-se o comércio praticado com literatura, arte, filosofia e até política de oposição, e chegar-se-á à mesma conclusão: o Sistema, lépido, tenta deglutir o que lhe é, ab initio, indigesto.
MANOBRA DE ALARMISMO?
O Sistema, pois, recupera a Poluição. Mas não a Ecologia. A escassez de recursos há-de acabar primeiro com ele, do que ele consiga esmagar os que até agora tem explorado. Poderia ser a escassez de recursos uma "manobra de alarmismo”? Vou tentar provar que é tarde demais para ser manobra.
Entretanto, cabe perguntar: porque se usa de tal e tanta má fé com o alarme ecológico (que é única e simplesmente a voz da realidade, da verdade) e não se usa da mesmíssima má fé para com a mentira, os mitos, crimes, sofismas, duplicidades, hipocrisias e contradições em que o reformismo do Sistema é mais que fértil, é apoplético? Porquê?
Se os países ricos o foram até agora por sistemática pilhagem e exploração daqueles que os calmos e objectivos economistas classificam de pobres e subdesenvolvidos quando não de atrasados, é óbvio que tudo farão, que tudo continuarão a fazer para prorrogar essa pilhagem e essa exploração. Não me parece necessário ser universitário para chegar a tal brilhante conclusão.
Não se compreende, então, porque haviam os desenvolvidos de precisar agora de um argumento "novo" - a escassez de recursos - para continuar explorando, e para justificarem, pela primeira vez, uma exploração que sempre praticaram sem justificações: a céu descoberto e à tripa forra, como convém.
Quando o forte explora o fraco (sempre com o beneplácito de ilustres universitários em Direito, Economia, Política ou qualquer outra avançada ciência de que os desenvolvimentos têm o monopólio), não me parece que o forte tenha necessidade alguma de dar ao fraco satisfações, razões, motivos... lógicos da expoliação.
A que viria pois uma manobra, agora, em 1973?
ESCASSEZ DE RECURSOS
Se a campanha de Imprensa ultimamente activada sobre "escassez de recursos" deve ter uma segunda intenção velada, inconfessável - e de certeza a terá, pois o Sistema não dá ponto sem nó, nada faz às claras que não seja para obter finalidades ocultas - não vejo, porém, por inútil, que essa intenção seja a manobra de (intensificar o) alarmismo referida por José Saramago na sua «Nota do Dia.»
É que nem sequer para pôr fim à política de proteccionismo - sob os rótulos de "ajuda ao Terceiro Mundo" - necessitaria o Sistema de tão balofo como inútil argumento. A ser isto - pôr fim à tal ajuda que foi sempre mera demagogia e mera propaganda - o que pretendiam, a verdade é que o podiam perfeitamente fazer sem necessitar de campanhas.
A Má Fé é um princípio ou método perfeitamente lícito e necessário: é a condição sine qua non da lucidez, a única arma para impedir que o Sistema nos enfie todos os barretes que pretende: sem dúvida, e não cansa repeti-lo. Mas neste caso dos recursos - e da campanha que decorre - creio haver um fundamento para a berraria e para o alarme.
É que, mesmo explorando, mesmo prosseguindo a exploração, mesmo levando ao paroxismo os tumores de fixação, mesmo activando as escolas de mergulhadores para ir procurar nos fundos marinhos aquilo que já esgotaram no solo terrestre, mesmo mobilizando toda a mitologia da produtividade e dos rendimentos P.N.B. (aplaudidíssimos por todos os doutores em PNB aqui do meio), os potentados, os donos do mundo e seus conselheiros universitários estão mesmo à rasca porque já não chega.
A Ecologia mantém a calma e sorri. Porque das duas máquinas postas em movimento, nenhuma delas pode ser parada sem que fragorosamente vão colidir: a da produtividade histérica e a do histérico consumismo, a da exploração e a do desperdício.
O fim, as tripas do Sistema estão à vista e chamam-lhe Poluição. E berram de medo, pois claro, porque os galões de gasolina lhes estão a minguar.
Os prognósticos mais pessimistas estão ainda bastante longe dos factos, e embora a berraria já tivesse começado, os recursos findarão muitíssimo antes do que os economistas lhes fazem crer, pois também os economistas estão em riscos de ir todos para o olho da rua, logo que os patrões saibam que estão todos num beco sem saída.
Por exemplo: mais do que o aviador ou o astronauta, o mergulhador(1) constitui hoje uma classe profissional de elite que tende a ser, num futuro próximo, a mais bem paga. Mas mesmo paga a ouro, haverá cada vez menos quem lá queira ir: mesmo com vocação suicida.
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(1) - Escolho, para exemplificar, este parâmetro no factor humano, por ser o humano que o Economista subestima e brutalmente despreza.
MÃO-DE-OBRA ESCRAVA
Resulta daqui: mesmo na hipótese mais optimista a de haver ainda muito petróleo para sacar dos fundos marinhos - o custo desta explorarão acabará por se tornar ruinoso. O próprio limite da mão-de-obra escrava (vigente no ouro da África do Sul ou... na construção civil de Lisboa com a importação de cabo-verdianos... ) está prestes a romper-se.
No caso do mergulhador, há a hipótese de fazer dele (como do astronauta ou do aviador) um robô, um completo alienado, mas um escravo propriamente dito... é mais difícil. E não se paga a um escravo ordenados de ministro: No caso do mergulhador, é a própria sofisticação dos métodos de trabalho engendrados pelo Sistema que o levará à Ruína, pois acabará por não ter quem pura e simplesmente o sirva.
Não contando com os outros factores de ruína (a contradição já enunciada entre desperdício histérico e produtividade histérica; e o gigantismo, fracasso de que o ruinoso "Concorde" é o símbolo arquetípico) a Ecologia sabe que também por ali, - pela mão-de-obra e pela sofisticação da mão-de-obra - o Sistema está a dar os últimos ares das suas gibóicas digestões. E que nem a demagogia da antipoluição o salvará, já que é precisamente nessa que ele definitivamente se afundará. Por esta coisa muito simples, que só um simples de coração sabe, mas os doutores todos ignoram: supondo que de repente todos os focos de poluição cessavam de poluir, a situação de colapso não se alterava um ápice. Porque o colapso e ao nível de recursos e não (só) de poluições.
Os odres encheram-se demais: é tudo o que a Ecologia constata. E agora gritam, porque se lhes vai a chucha. Nada mais humano. Porque há-de haver manobra alarmista?
NÓS, OS DO TERCEIRO MUNDO
Nós, os do Terceiro Mundo, porém, temos a ciência da Miséria. Estamos diplomados em escassez. Ouvir falar do que falta, faz-nos sorrir. Aprendemos a subsistir nas secas e no subdesenvolvimento. MAIS: APRENDEMOS A NÃO TER PROMISCUIDADE, MESMO SEM ÁGUA. Alguma vez, em Cabo Verde, por exemplo, houve epidemias causadas pelo subdesenvolvimento? Onde irá então parar esse famoso argumento que o subdesenvolvimento é sinónimo de terríveis epidemias? Quando o branco entra a matar, a chacinar, a disseminar os vírus da sua baba e da sua porcaria, dos seus dejectos,(1) claro, é fatal: os subdesenvolvidos entram em crise de saúde. Não é apenas o subdesenvolvimento que provoca a doença: é as humilhações infligidas à dignidade de cada povo - com as suas economias de subsistência completamente destroçadas, sua cultura, sua personalidade destruídas, é isso que provoca as endemias. É o etnocídio que dá origem às doenças do desenvolvimento, e não só a miséria económica. É acima de tudo a miséria moral infligida a um povo que o torna presa das doenças endémicas. Ser espezinhado pelo porco branco, pelo canibal civilizado, isso é que é a doença.
Somos nós, pois, que temos a técnica da resistência passiva. Quando a eles lhes faltarem as orgias e os uísques, nós sabemos até onde é preciso cavar para conseguir água pura. Será o momento da nossa sobrevivência e da nossa vingança. Quem aprendeu a sobreviver debaixo das bombas americanas, saberá sobreviver quando as bombas e a gasolina dos helicópteros chegar ao fim. Nós, índios americanos, sabemos onde ir desenterrar venenos letais e curativos, quando eles já nem osso tiverem que roer. Mesmo que nos tenham exterminado a todos, saberemos renascer.
A esta hora, apoplécticos, eles estão consultando os seus potentes computadores, os seus economistas de estimação, que, desta vez, mastigam em seco. Os primeiros a marchar para a cadeira eléctrica, serão essas bruxas obesas e falidas do tipo Kahn. Engordaram que nem porcos, raciocinam como jibóias, emitem guinchos como os macacos.
O socialismo vigora há mais de meio século e, tal como o cristianismo em dois milénios, soube apenas dar o beneplácito aos fortes e aos fracos as palavras de consolação que os resignassem das bordoadas.
Falidos os suaves socialismos - também por apoplexia de fartura - só na Ecologia, quer dizer, na Revolução - reside a derradeira e decisiva esperança de ver rebentar os odres de banha, as barricas de proteína de todos os magarefes, que, doutorados nisto ou naquilo, regem este mundo.
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(1) E das suas vacinas!
ECOLOGIA É A ESPERANÇA
Só a Ecologia é a Esperança, porque lhes retira o Poder: quer dizer, a chispalhada, o porco na brasa, a suculenta churrasqueira, o empanzinamento de combustíveis & etc. Vamos ver agora quem é capaz de sobreviver na penúria.
Quando eles gritam que não têm gasolina e começam à estalada, gozamos nós, os subdesenvolvidos, o momento feliz em que nos veremos livres das suas latas invadindo o mundo, dos seus claxons, das suas motorizadas, do seu mau hálito, do seu mau cheiro.
Quando berram que lhes vai faltar energia, antegozo o momento em que verei as centrais nucleares todas no prego, e livre a humanidade dessa aberração que só poderia ter nascido nos cérebros sacrossantos de eminentes sábios que do nazismo hitleriano se refugiaram para criadas de todo o serviço no nazismo americano.
Para maior esperança e gozo do meu coração de português, é justamente agora - quando o panorama mundial se apresenta com este lindo aspecto - que a febre economista sobe ainda mais alto em Portugal. Claro, à cabeça o berço do funeral tecnocrático. Mas novas revistas, novos grupos de economia se anunciam, o frenesi entra no auge com o não sei quantos plano de Fomento, os terminais oceânicos, a industrialização acelerada.
Acelerai, irmãos, acelerai, que a gasolina está no fim e já falta pouco. Eu bem os oiço, aos futuros economistas da Nação, aqui pelas ruas, praticando nas suas motocicletas os motocrosses da sua virilidade duvidosa, bem os oiço agora na idade rósea dos 18, acelerando, acelerando, acelerando, naquele ruído típico dos aceleradores e que é ipsis verbis, igual ao de uma intensa diarreia pela pia abaixo. Tais crianças hão-de dar belíssimos economistas à Nação, dirigentes de empresas, e, de certeza, lindíssimos políticos do Ambiente e simpáticos deputados liberais.
Estão, com certeza, suficientemente cafrealizados pelo distinto ruído das suas queridas motoretas, para poderem ascender a postos de tanta responsabilidade
Perante este quadro paradisíaco, vem agora o meu amigo José Saramago sugerir que essa história da "escassez de combustíveis" é boato, alarme só para alarmismo.
Não queira tirar-me, amigo Saramago, a maior alegria da minha vida e a única esperança deste subdesenvolvido que compartilha com alguns milhões a sorte de pertencer aos espoliados do Terceiro Mundo, via Ecologia, evidentemente.
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(*) Este texto de Afonso Cautela, a que não retiro hoje uma vírgula, foi publicado no livro edição do autor, «Contributo à Revolução Ecológica», Paço de Arcos, 1976
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