T. DE CHARDIN 1971
chardin-2- profetas do futuro - clássicos do século XXI
A MULTIRRACIALIDADE NO PENSAMENTO DE TEILHARD DE CHARDIN - II (*)
13-7-1971
Permitindo-nos aquele (necessário) distanciamento que só uma certa hostilidade provoca, Cartas de Viagem (**) elucidam-nos alguns aspectos obscuros, ou menos conhecidos, de uma personalidade e de uma obra da qual, quase sempre, se estudam apenas as etapas mais evoluídas e praticamente definitivas.
Escritas entre 1923 e 1939, essas cartas revelam-nos muitas das hesitações que ainda magoavam o espírito do grande sábio e o árduo caminho que ainda teria a percorrer para chegar às suas intuições mais originais.
Como as fraquezas de um grande homem nos ajudam de facto a compreender melhor a sua estatura! Talvez porque nos ensinem o esforço de auto-crítica e de auto-aperfeiçoamento que lhe foi imposto e necessário, para de estádios relativamente primários do pensamento evoluir até estádios que hoje muitos consideram próximo do genial.
As grandes sínteses de Chardin não foram «dádiva divina», sabemo-lo agora. Cartas de Viagem dizem-nos que Chardin era ainda, em 1923, um pobre homem ocidental, dominado pelos preconceitos que dominam outros tantos (milhões de) pobres homens ocidentais, enjaulados no seu europocentrismo sem horizontes, ainda não iluminados nem esclarecidos, numa fase ainda bastante recuada da espiral da evolução.
No entanto, neste mesmo volume, onde há observações rasando o mesquinho e o pueril, o preconceituoso e até o francamente racista, lemos coisas onde já está presente a dimensão visionária que dominaria, anos depois, o pensamento teilhardiano, como esta:
«Eu desejaria (...) exprimir a psicologia (esse misto de orgulho, de esperança, de decepção e de expectativa) do homem que já não se vê a si mesmo como francês ou chinês, mas como terrestre.»
Isto, em 1923, é o que ainda muito poucos sentem com o fervor de Chardin...
«Quanto mais avanço em idade, mais me sinto decidido a viver acima das preocupações políticas e nacionais, (...) e a expor abertamente o que penso, sem me preocupar com aquilo que os outros dizem ou disseram».
«(...) Tu sabes que, para mim, estas disposições nada têm de anti-cristão; pelo contrário. Considero-as como um apelo à manifestação insubstituível de um Cristo maior».
Lendo isto, que sentimos ser o genuíno Teilhard de Chardin, chegamos a perguntar-nos se aquilo a que chamámos leviandade, frivolidade ou preconceito não teriam sido afirmações constrangidas pelo receio de que o considerassem anti-cristão. Não as teria ele escrito sob uma ameaça de rigorosa censura e severa punição? Ou tê-las-ia escrito alguém por ele, alguém dos que podem ter-lhe (re) tocado os manuscritos?
De facto, chega a parecer incrível que um espírito como o de Teilhard se deixasse cair em tão flagrantes contradições, quase em anos e páginas consecutivos.
Haverá aqui um mistério Chardin a decifrar por seus futuros exegetas? Ou os que tiveram acesso às fontes (aos manuscritos), tê-las-iam deturpado e corrompido definitiva e irremediavelmente, quem sabe se com a piedosa intenção de livrar de maiores dissabores o irrequieto Padre Pierre?
Deixo o desafio aos «paleontologistas» do Padre Teilhard de Chardin.
Mas - por outro lado - não serão essas mesmas e consecutivas contradições que nos dão a verdadeira estatura humana (logo dialéctica) de Teilhard, a sua estrutural honestidade, a sua sinceridade sem limites? A sua grandeza não advirá exactamente de ter sabido ir de um extremo a outro, de um a outro termo das antinomias, que ele se sentia capaz de superar mas nas quais inevitavelmente se enredava enquanto delas se não libertava?
Se como cristão lhe era interdito e difícil encontrar, compreender as outras formas de religiosidade e cultura, não-cristã, não será exactamente maior o mérito de ter vislumbrado o «aggiornamento», o «diálogo», a compreensão e o ecumenismo?
Não será miopia supor que houve mão ímpia (embora piedosa, no intuito de proteger o autor de Le Milieu Divin...) a (re) tocar-lhe, a torcer-lhe os escritos manuscritos? Não serão, mesmo assim, com suas limitações e, apesar delas, com elas, contra elas, cheios de intuições de génio, de visionarismo messiânico, de originalidade teórica e metafísica, edificando o máximo da síntese e de universalismo que é possível a um pensamento de formação científica, logo analítica e particularista?
Esta - a tensão entre os extremos, o querer abarcar o sim e o não, o pró e o contra, o cristão e o não-cristão - não será a característica de Teilhard e de todo o espírito para quem nada do que é humano lhe pode ser indiferente?
Ao criticá-lo, ao admirá-lo com certa perspectivação crítica, ao evidenciar fraquezas e limitações e incoerências (?), compreendo (contraditoriamente) melhor o seu tamanho de pensador que constantemente superou tudo o que o limitava e se superou a si próprio.
Digna do melhor iniciado Zen, é esta sua frase:
«O pão era bom para o nosso corpo, antes de conhecermos as leis químicas da assimilação».
Ter contactos com culturas estranhas, exógenas, não basta para mudar de mentalidade e manifestar capacidade (ecuménica) de compreensão e adesão a outras «humanidades». Desde Marco Polo, vários foram os europeus que tocaram o Extremo-Oriente, mas sempre de um ponto de vista a priori viciado: comerciante, pirata, explorador, missionário, colonialista, militar, caçador, etc.. Não se pode dizer que nenhum deles tenha contribuído grandemente para o ecumenismo e para combater a tradicional xenofobia do europeu perante o asiático, o chauvinismo europocêntrico, cristocêntrico e, quando Deus consentia, greco-romanocêntrico...
Chauvinismo que Teilhard de Chardin não aceitava, em determinada altura da sua evolução, parece assente se lermos o que escreve a propósito da independência da Índia:
«Eles (os indianos) querem a todo o preço a independência completa, com o risco de perecerem. Os ingleses dão de rédeas o mais que podem, mas não largam; suponho que eles têm razão. Quanto mais viajo no estrangeiro, mais temo que Genebra (de que sou, no fundo, partidário) numerosos católicos liberais e, mais particularmente, os meus confrades «missiólogos» cometam o grave erro de admitir, contra todos os ensinamentos da biologia, a igualdade das raças. Universalismo não é democracia (igual a igualitarismo).»
Estranha e paradoxal afirmação para quem escreve, nestas mesmas Cartas de Viagem, entre tantas dezenas do outras, inequivocamente anti-racistas, frases como esta:
«Se em si mesma, a exploração do espaço e do passado é um esforço no vazio, se o único verdadeiro conhecimento das coisas reside na previsão e na construção do Futuro gradualmente realizado pela vida - que melhor ocasião posso desejar para me iniciar e associar à edificação do Futuro, do que ir perder-me (...) na massa em fermentação dos povos da Ásia?»
AFONSO CAUTELA
- - - - -
(*) Este texto foi publicado no diário «Notícias da Beira» (Moçambique), na rubrica do autor «Notícias do Futuro», em 13/7/1971
(**) Cartas de Viagem, Pierre Teilhard de Chardin, Col. «Documentos Humanos», nº 25, Portugália Editora, Lisboa, 1969, Trad. de António Ramos Rosa
***
A MULTIRRACIALIDADE NO PENSAMENTO DE TEILHARD DE CHARDIN - II (*)
13-7-1971
Permitindo-nos aquele (necessário) distanciamento que só uma certa hostilidade provoca, Cartas de Viagem (**) elucidam-nos alguns aspectos obscuros, ou menos conhecidos, de uma personalidade e de uma obra da qual, quase sempre, se estudam apenas as etapas mais evoluídas e praticamente definitivas.
Escritas entre 1923 e 1939, essas cartas revelam-nos muitas das hesitações que ainda magoavam o espírito do grande sábio e o árduo caminho que ainda teria a percorrer para chegar às suas intuições mais originais.
Como as fraquezas de um grande homem nos ajudam de facto a compreender melhor a sua estatura! Talvez porque nos ensinem o esforço de auto-crítica e de auto-aperfeiçoamento que lhe foi imposto e necessário, para de estádios relativamente primários do pensamento evoluir até estádios que hoje muitos consideram próximo do genial.
As grandes sínteses de Chardin não foram «dádiva divina», sabemo-lo agora. Cartas de Viagem dizem-nos que Chardin era ainda, em 1923, um pobre homem ocidental, dominado pelos preconceitos que dominam outros tantos (milhões de) pobres homens ocidentais, enjaulados no seu europocentrismo sem horizontes, ainda não iluminados nem esclarecidos, numa fase ainda bastante recuada da espiral da evolução.
No entanto, neste mesmo volume, onde há observações rasando o mesquinho e o pueril, o preconceituoso e até o francamente racista, lemos coisas onde já está presente a dimensão visionária que dominaria, anos depois, o pensamento teilhardiano, como esta:
«Eu desejaria (...) exprimir a psicologia (esse misto de orgulho, de esperança, de decepção e de expectativa) do homem que já não se vê a si mesmo como francês ou chinês, mas como terrestre.»
Isto, em 1923, é o que ainda muito poucos sentem com o fervor de Chardin...
«Quanto mais avanço em idade, mais me sinto decidido a viver acima das preocupações políticas e nacionais, (...) e a expor abertamente o que penso, sem me preocupar com aquilo que os outros dizem ou disseram».
«(...) Tu sabes que, para mim, estas disposições nada têm de anti-cristão; pelo contrário. Considero-as como um apelo à manifestação insubstituível de um Cristo maior».
Lendo isto, que sentimos ser o genuíno Teilhard de Chardin, chegamos a perguntar-nos se aquilo a que chamámos leviandade, frivolidade ou preconceito não teriam sido afirmações constrangidas pelo receio de que o considerassem anti-cristão. Não as teria ele escrito sob uma ameaça de rigorosa censura e severa punição? Ou tê-las-ia escrito alguém por ele, alguém dos que podem ter-lhe (re) tocado os manuscritos?
De facto, chega a parecer incrível que um espírito como o de Teilhard se deixasse cair em tão flagrantes contradições, quase em anos e páginas consecutivos.
Haverá aqui um mistério Chardin a decifrar por seus futuros exegetas? Ou os que tiveram acesso às fontes (aos manuscritos), tê-las-iam deturpado e corrompido definitiva e irremediavelmente, quem sabe se com a piedosa intenção de livrar de maiores dissabores o irrequieto Padre Pierre?
Deixo o desafio aos «paleontologistas» do Padre Teilhard de Chardin.
Mas - por outro lado - não serão essas mesmas e consecutivas contradições que nos dão a verdadeira estatura humana (logo dialéctica) de Teilhard, a sua estrutural honestidade, a sua sinceridade sem limites? A sua grandeza não advirá exactamente de ter sabido ir de um extremo a outro, de um a outro termo das antinomias, que ele se sentia capaz de superar mas nas quais inevitavelmente se enredava enquanto delas se não libertava?
Se como cristão lhe era interdito e difícil encontrar, compreender as outras formas de religiosidade e cultura, não-cristã, não será exactamente maior o mérito de ter vislumbrado o «aggiornamento», o «diálogo», a compreensão e o ecumenismo?
Não será miopia supor que houve mão ímpia (embora piedosa, no intuito de proteger o autor de Le Milieu Divin...) a (re) tocar-lhe, a torcer-lhe os escritos manuscritos? Não serão, mesmo assim, com suas limitações e, apesar delas, com elas, contra elas, cheios de intuições de génio, de visionarismo messiânico, de originalidade teórica e metafísica, edificando o máximo da síntese e de universalismo que é possível a um pensamento de formação científica, logo analítica e particularista?
Esta - a tensão entre os extremos, o querer abarcar o sim e o não, o pró e o contra, o cristão e o não-cristão - não será a característica de Teilhard e de todo o espírito para quem nada do que é humano lhe pode ser indiferente?
Ao criticá-lo, ao admirá-lo com certa perspectivação crítica, ao evidenciar fraquezas e limitações e incoerências (?), compreendo (contraditoriamente) melhor o seu tamanho de pensador que constantemente superou tudo o que o limitava e se superou a si próprio.
Digna do melhor iniciado Zen, é esta sua frase:
«O pão era bom para o nosso corpo, antes de conhecermos as leis químicas da assimilação».
Ter contactos com culturas estranhas, exógenas, não basta para mudar de mentalidade e manifestar capacidade (ecuménica) de compreensão e adesão a outras «humanidades». Desde Marco Polo, vários foram os europeus que tocaram o Extremo-Oriente, mas sempre de um ponto de vista a priori viciado: comerciante, pirata, explorador, missionário, colonialista, militar, caçador, etc.. Não se pode dizer que nenhum deles tenha contribuído grandemente para o ecumenismo e para combater a tradicional xenofobia do europeu perante o asiático, o chauvinismo europocêntrico, cristocêntrico e, quando Deus consentia, greco-romanocêntrico...
Chauvinismo que Teilhard de Chardin não aceitava, em determinada altura da sua evolução, parece assente se lermos o que escreve a propósito da independência da Índia:
«Eles (os indianos) querem a todo o preço a independência completa, com o risco de perecerem. Os ingleses dão de rédeas o mais que podem, mas não largam; suponho que eles têm razão. Quanto mais viajo no estrangeiro, mais temo que Genebra (de que sou, no fundo, partidário) numerosos católicos liberais e, mais particularmente, os meus confrades «missiólogos» cometam o grave erro de admitir, contra todos os ensinamentos da biologia, a igualdade das raças. Universalismo não é democracia (igual a igualitarismo).»
Estranha e paradoxal afirmação para quem escreve, nestas mesmas Cartas de Viagem, entre tantas dezenas do outras, inequivocamente anti-racistas, frases como esta:
«Se em si mesma, a exploração do espaço e do passado é um esforço no vazio, se o único verdadeiro conhecimento das coisas reside na previsão e na construção do Futuro gradualmente realizado pela vida - que melhor ocasião posso desejar para me iniciar e associar à edificação do Futuro, do que ir perder-me (...) na massa em fermentação dos povos da Ásia?»
AFONSO CAUTELA
- - - - -
(*) Este texto foi publicado no diário «Notícias da Beira» (Moçambique), na rubrica do autor «Notícias do Futuro», em 13/7/1971
(**) Cartas de Viagem, Pierre Teilhard de Chardin, Col. «Documentos Humanos», nº 25, Portugália Editora, Lisboa, 1969, Trad. de António Ramos Rosa
***