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*DEEP ECOLOGY - NOTE-BOOK OF HOPE - HIGH TIME *ECOLOGIA EM DIÁLOGO - DOSSIÊS DO SILÊNCIO - ALTERNATIVAS DE VIDA - ECOLOGIA HUMANA - ECO-ENERGIAS - NOTÍCIAS DA FRENTE ECOLÓGICA - DOCUMENTOS DO MEP

2006-06-28

RUÍDO 1992

1-1 - 92-06-28-ie-ecc> = ideia ecológica – ecos da capoeira - marco diario91>-1191 caracteres o diário das siglas

28-6-1992

O RUÍDO COMO FACTOR DE PROGRESSO E BEM ESTAR NACIONAL

Às vezes, tenho medo de pensar as coisas...
Em [---], tinha eu perguntado, em artigo de «A Capital», se nos surgiria o dia, o lugar e a pessoa, neste país, capaz de vir defender o ruído como factor de desenvolvimento, prosperidade, paz, progresso e bem estar. [---]anos decorridos, surgiu a pessoa, o momento e o lugar: MEC, em polémica com o secretário de Estado da Comunicação Social[ver s.s. polémicas], foi mais longe do que ninguém a cumprir a minha premonição: defender o ruído para defender as suas queridas discotecas.
Em crónica de antologia, MEC antecipa o que viria, como director, a reconfirmar na revista «kapa», quando encarregou o redactor [---] de escrever contra a ideia ecologista, servindo-se de um sofisma vulgar: confundir ecologismo com os que aqui se rotulam e travestem com esse apelido.
Frases do aludido artigo de [---]:
«Nunca se sabe: pode haver neste país quem considere o ruído um factor de progresso e desenvolvimento, um vector de prosperidade nacional...»
«se há ainda quem não tenha vergonha na cara para vir defender centrais nucleares só por exibicionismo, muito melhor haverá quem venha defender o ruído como factor de desenvolvimento e fomento da indústria turística.»
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EUROPA 1997

bacharel>manifesto> - dcm

E SE FÔSSEMOS ATÉ À EUROPA (AREJAR?)

11/6/1997 - Situação surpreendente é a que poderá vir a acontecer em Portugal, nas práticas terapêuticas ditas «alternativas», doces ou não convencionais.
Com a livre circulação de pessoas e bens imposta pela abertura ao espaço da União Europeia, técnicos e terapeutas holísticos, devidamente autorizados nos respectivos países, poderão entrar em Portugal e continuar aqui a desenvolver as suas actividades, enquanto os que já cá se encontram, desde os anos heróicos em que Salazar nos proibia de falar em público, continuam sujeitos a uma legislação anacrónica ou a uma ausência de legislação que os condena à constante clandestinidade e a um permanente ostracismo profissional e social.
Ou seja, para áreas tão vitais como a da saúde pública, continuamos como no tempo de Salazar ou ainda pior.

Os organismos que aberta e ostensivamente têm combatido as técnicas holísticas, em nome dos pretextos mais pueris ou apenas imaginários (nunca inocentes e sempre de má fé), continuam o seu trabalho de sapa, pressionando o governo e demais organismos de decisão, para que a legislação, a sair, lhes seja totalmente favorável.
E ninguém acha imoral que a instituição queira agora ser proprietária do que, em determinada altura (quando a Organização Mundial de Saúde deu luz verde às medicinas tradicionais e incitou a que se integrassem nos cuidados primários) foram consideradas práticas necessárias e próprias dos países do Terceiro Mundo.
Neste conceito de Terceiro Mundo, que foi defendido em determinada data por Gentil Martins, bastonário da Ordem dos Médicos, caberiam países como Estados Unidos, Canadá, Austrália, França, Alemanha, Japão ou Grã Bretanha, onde, que se saiba, as alternativas médicas são não só largamente praticadas mas incentivadas e promovidas como um meio expedito (talvez o mais eficaz) de diminuir o crónico défice da chamada Segurança Social (a que alguns jornais mais optimistas chamam «previsível bancarrota») .
Somos, de facto, um país do Quarto Mundo, enquanto não se verificar a viragem necessária e o sinal de civilização europeísta que será a cobertura das terapias alternativas pelos cuidados de Segurança Social.
Talvez seja por isso, pelo apoio que o governo desses países tem dado e continua a dar às medicinas alternativas, que não consta que por lá se agite, como se tem agitado entre nós, nos últimos 10 anos, o sinistro fantasma da «bancarrota» no sistema da Segurança Social.
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CEE 1979

1-2 - 79-06-28-ie-bd> = ideia ecológica = bibliografia doméstica - scan - domingo, 17 de novembro de 2002 – até parece que adivinhei...

CEE ...PROIBIDO DORMIR A «SESTA»

[28 de Junho de 1979] - Para os que pensam a história em tempos de «materialismo dialéctico», a política é sempre o subproduto da economia (e esta, por sua vez, o reflexo da ecologia).
O 25 de Abril e o chamado «processo revolucionário em curso» pode ver-se, assim, esquematicamente talvez mas clara e rigorosamente, como a superestrutura política necessária para «adaptar» o país a determinantes económicas.
Mais concretamente : tudo se passou e passa como se o vinte e cinco de Abril e suas sequelas tivesse sido feito para integrar Portugal num dos dois mercados comuns: CEE ou COMECON.
Nesta disputa de gatos, parece terem ganho os que advogavam a entrada na CEE, quer dizer, a invasão de Portugal pelas indústrias, inocuidades e monstruosidades dos 9, agora 10, depois da «vitória grega», arquitectada, paulatina e estoicamente, pelo génio de Caramanlis.
Tanto se esforçou, que conseguiu. Argumentos não lhe faltaram: ele jogou, inclusive, quase na chantagem. Ou Mercado Comum, ou (perigo de) retrocesso à ditadura. Mercado Comum ou Dependência nacional. E assim por diante, não hesitando, como nesta última ameaça, em pisar a contradição mais flagrante: toda a gente sabe que a submissão aos interesses do Mercado Comum é a perda (total ou parcial) da independência nacional.
Escaparemos nós ao COMECON, caso um milagre de Nossa Senhora nos livrasse da CEE?
Se o processo não vai tão acelerado como na Grécia, lá chegaremos: toda a «intelligenzia» daqui, desde economistas a financeiros, de políticos a intelectuais, se está empenhando, presentemente, na maior ofensiva ideológico-publicitária a que assistimos desde o 25 de Abril. E não é dizer pouco, num período em que, efectivamente, as jogadas «ideológico-propagandísticas» foram frequentes e bombásticas.
Ir olhando a Grécia, portanto, é antever o que nos irá suceder a nós, portugueses: três em cada quatro, segundo apuramento estatístico, não sabemos o que é o Mercado Comum. Mas também um em dez portugueses não sabe o que é uma central nuclear e, no entanto, democraticamente, quando chegar a hora negra do livro branco posto na Assembleia da República, veremos que os digníssimos representantes do povo português irão eventualmente aprovar aquilo que, necessariamente, o povo português rejeitaria em bloco, se soubesse...
Mas por saber demais tem sido muita gente sacrificada. Convém continuar acreditando que são os senhores Caramanlis de cá quem tem a definitiva verdade na manga: eles nos dirão, como na Grécia ao povo grego, que a CEE «desenvolverá o nosso artesanato» (sic), criará postos de trabalho (a Renault já deu a fórmula), incentivará as nossas exportações (?), e, claríssimo, «desenvolverá, com a varinha mágica do PNB, a economia depauperada deste país», blá, blá, blá...
Caramanlis já avisou os gregos: terão de fazer sacrifícios, em troca destes progressos europeus todos e ajudas financeiras, e desde já deverão «abdicar da sesta tradicional.»
Gregos irão ficar os portugueses quando o Caramanlis de cá os obrigar a dispensar também, no Verão, as doces sestas a que estamos habituados. Teremos, como Caramanlis democraticamente exige do povo grego, que nos «adaptar às normas comunitárias», expressão doce e eufemística que quer dizer outra coisa mais forte: submissão à ditadura europeia dos poderosos e desenvolvidos, que não satisfeitos em estar num poço de trampa, a que chamam alto PNB, querem agora meter os «turcos» como nós que até agora se têm conseguido safar.
Este poço chama-se «desenvolvimento económico» até 1985, com metas muito concretas a atingir. Mesmo que alguns cavalos fiquem na pista, afinal os cavalos, como todos se lembram, também se abatem. Na perspectiva CEE, gregos e portugueses são apenas cavalos de corrida para abater.
Quem de certeza não tem dormido (sesta) nem irá dormir enquanto estes objectivos não forem alcançados, são os diligentes vigilantes do nosso interesse nacional, que desde o 25 de Abril querem meter-nos no areópago europeu.
Governos e desgovernos, crises atrás de crises, a escalada da ruína e da derrocada, não se alarmem os portugueses: tudo isso não desembocará numa tragédia, tudo isso será razão, alibi, motivo, argumento in extremis com que se dirá, automaticamente, sim à ditadura europeia.
Quanto pior melhor. Esta política de terra queimada tanto serve aos que anseiam Portugal no COMECON como na CEE. De tanga, na miséria, paralisado por estranhas greves e manias, propositadamente em crise perpétua, o País que temos é só e apenas para nos lançar, em desespero de causa, em qualquer uma dessas duas redentoras e europeias soluções. Dissoluções.
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(*) Este texto de Afonso Cautela, com este título, foi publicado no jornal diário «Correio da Manhã» (Lisboa), em 28 de Junho de 1979
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CEE 1992

92-06-28-dp> = diário pessoal – forum dos aflitos - refugo-2> abril19 - 4625 caracteres

DO MINISTRO DO TRABALHO A UM JORNALISTA COM A MANIA QUE É HONESTO E AMIGO DOS TRABALHADORES

28/6/1992 - Não sei porque se admiram tanto, os senhores jornalistas, quando o número de mortos na construção civil ainda está bem longe dos mínimos exigidos pela CEE e, antes desta, pela OCDE.
Afinal o que são 40 trabalhadores mortos num ano, na maioria caboverdianos e/ ou vindos da periferia. Não é para isso que existem, cristãmente existem, democraticamente existem as periferias?
Que significado têm 40 vidas miseráveis, que bem podiam ter morrido de fome ou inanição ou à facada em bairro pobre, se a Indústria da Construção Civil, agora próspera, os não chamasse ao seu seio, os não acolhesse, os não beijasse na boca e não lhes desse a mão?
Trabalham às escuras na CGD? Mas porque raio haviam de trabalhar iluminados? Seria porventura rentável gastarem mais velas e ter uma melhor iluminação, ao preço a que está a Electricidade de Portugal? O trabalhador civil -- saibam disto os senhores jornalistas -- trabalha muito melhor às escuras, como já demonstraram vários investigadores da Universidade de Telavive: além disso, o trabalhador não conta na contabilidade das grandes empresas, traduzido em termos de cifrão e dólares per capita, bem pode figurar nas «verbas indiscriminadas» ao lado da publicidade ou dos almoços de representação.
A Fiscalização do Trabalho também tem mais que fazer do que fiscalizar e, além disso, fiscalizar é uma coisa e fiscalizar o trabalho é outra, nada tem a ver com Higiene e Segurança, que estão em outro departamento, e as companhias de Seguros não existem para perder dinheiro, antes pelo contrário. De resto, como conseguiriam erguer os arranha-céus das suas sedes sem esta poupança-crédito à habitação?
O trabalhador é um acidente nos planos nacionais, nas metas europeias, nos ideais de progresso, civilização e bem-estar, nas grandes operações de construção de envergadura multinacional.
Preocuparam-se, por exemplo, os franceses e ingleses com as dezenas de trabalhadores que regaram, com o seu sangue, o Grande e ecuménico Canal da Mancha, orgulho do progresso e um dos maiores empreendimentos que, depois das pirâmides, foram erguidos, não à estupidez humana mas em honra da raça humana, só comparável aos bunkers subterrâneos de Saddam, onde, aliás e de certeza, morreram muitos mais trabalhadores, fora os trocos.
O senhor jornalista tem que perder o feio hábito de dizer mal. Aliás, só por uma imensa falta de assunto se pode compreender que o Telejornal da RTP abordasse tema tão insignificante, dando-lhe uma dimensão irrealista e desproporcionada, hipertrofiada e peripatética que, na verdade, o caso não tem.
Fait-divers de uma qualquer robusta economia de mercado, a morte de trabalhadores vivifica o sangue da nação e dinamiza a alma da raça, deve ser encarado como dádiva sem fim, ainda que modesta, e simbólica ao país.
Se não houvesse progresso, se não houvesse caixas gerais, se não houvesse montepios, se não houvesse padres franciscanos e pias intenções, se não houvesse trabalho -- quem havia de morrer pela Pátria, não me dizem?
Os militares? E como achariam os jornais manchetes de 1ª página se não encontrassem ossos de trabalhadores da construção civil para roer? E como conseguiriam animar a concorrência? Não só os trabalhadores precisam de quem lhes dê a mão de obra e de morrer para dar o subsídio de morte às famílias enlutadas como precisam de deixar o lugar a outros que se equilibrem melhor em cima dos andaimes. Isso significa mesmo o índice de progresso mais seguro, segundo as directivas emanadas da OCDE, da OIT, da Confederação Internacional do Trabalho, 30 trabalhadores mortos por mês já é uma boa percentagem, uma boa média europeia, mas se quisermos ir às Olimpíadas de Barcelona, em 1993, ao Mercado Único em 1992, à Expo-Automóvel 1999, à exposição Universal 1996, à expo-Sevilha92, (...), é natural que governos e responsáveis máximos da economia providenciem no sentido de que essas taxas não nos envergonhem e sejam natural e substancialmente melhoradas, conforme mandam as regras comunitárias e as confederações patronais.
Não temos um Canal da Mancha mas temos um Monstro de Belém. Não temos o transsiberiano mas vamos ter o gasoduto Norte-Sul, ou Sul-Norte, conforme a perspectiva por onde for enfiado o supositório: por baixo ou por cima.
Não temos petroleiros Valdez em espasmos de crude pelas nossas costas e praias mas vamos arranjando alguns valdezes de segunda para ficarmos a par do melhor que se fabrica lá fora e para chingar o negócio turístico ao Funchal, cuja prosperidade andava a fazer sombra aos empresários hoteleiros algarvios, que são ingleses.
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FRANKFURT 1992

gulags>- «os guardas do gulag» «antecedentes filosóficos do novo paradigma» -«leituras» - [contradições e perversões do sistema são condição sine qua non da sua autobrevivência - autismos e autistas]

A FILOSOFIA DA BORBULHA - ESTRATÉGIA SINTOMATOLÓGICA

28/6/1992 - É de Horkheimer e Adorno, dois filósofos da conhecida escola de Frankfurt, um texto fundamental para a compreensão do sistema «fechado» ou «concentracionário», criador de autismos e autistas, que, no fundo, caracteriza especificamente a engrenagem (não digo sociedade) dita industrial avançada.
Os filósofos exemplificam com a incomunicação da chamada comunicação social, mas a verdade é que um dos fundamentos em que assenta esta «ordem» de coisas - mais desordem que ordem - se poderia encontrar em outros campos: a abundância ou avalanche de informação serve, como nunca, para desinformar; os transportes «cada vez mais rápidos» servem para não transportar; a medicina é a maior fábrica de doenças; a economia baseia-se antieconomicamente no desperdício, etimologicamente o seu contrário.
O estudante de ecoalternativas pode fazer um exercício, descobrindo novas autocontradições em que a engrenagem é fértil. E é fértil nessas autonegações, não por acaso, não por desleixo ou distracção, nem sequer pelo prazer da contradição em si. A engrenagem só subsiste e se mantém desde que accione os mecanismos de autoreprodução que são essas próprias negações.
Resumindo, quase todas vão dar ao absurdo chamado «lógica do crescimento infinito».
A sintomatologia ou metodologia da borbulha preside a estes mecanismos de autoreprodução até ao infinito.
Ora o que vem a ser a filosofia da borbulha?
Basta ouvir um anúncio muito conhecido da RTP, que é o grande manual filosófico de massas, em séria concorrência com os aparelhos de propaganda dos partidos.
Nesse anúncio surge a borbulha no rosto da menina e logo a engrenagem médica - que, como nenhuma outra é modelo da engrenagem tout court e como nenhuma outra se sabe autoreproduzir, fazendo negócios colossais com a exploração do sintoma - põe em funcionamento todos os mecanismos reformistas ou sintomatológicos, conhecidos também como de «antipoluição», «preservativos» ou de «prótese».
Não se indaga a causa metabólica da borbulha - que existe, que tem de existir, se acaso a lei da causalidade ainda existe e rege os fenómenos do mundo físico. Recomenda-se, sim, Clerasil. Todos os sistemas do sistema, porém, recomendam Clerasil para as diversas borbulhas do indivíduo e da sociedade. Todos. Em vez de indagar as causas sociais, políticas, económicas, alimentares, ambientais em suma, recomendam todos clerasil. Porque o clerasil não vai pôr em causa o sistema, antes o vai deixar reproduzir-se e às suas borbulhas até ao infinito. Clerasil que, em vez de uma dará 30 borbulhas, obrigando a multiplicar por trinta o produto a consumir e por outras tantas bisnagas do mesmo miraculoso remédio.

Horkheimer e Adorno apenas dão uma roupagem mais sofisticada a esta filosofia da borbulha, num texto, aliás, notável que vale a pena antologiar:
«Que o meio de comunicação isola, não vale apenas no âmbito espiritual. Não só a mentirosa linguagem do locutor de rádio se fixa, como imagem no cérebro, impedindo aos homens falar entre si; não só o louvor da Pepsi-Cola abafa a notícia da destruição de continentes inteiros; não só o modelo fantasmagórico dos heróis do cinema se impõe diante do abraço dos adolescentes e mesmo do adultério. O progresso separa literalmente os homens. A bilheteira na estação de caminho de ferro ou o caixa no banco permitiam ao empregado conversar com o colega e com ele partilhar os seus humildes segredos; as janelas de vidro dos escritórios modernos, as inumeráveis salas onde os empregados se reúnem e são facilmente vigiados pelo público e pelos chefes, já não permitem tais conversações privadas e idílios. O contribuinte está agora protegido contra o desperdício de tempo dos assalariados, nas repartições, os quais se encontram assim isolados colectivamente. Porém os meios de comunicação também isolam os homens fisicamente. O caminho de ferro foi substituído pelo automóvel. O vagão reservado reduz as relações que se podem fazer numa viagem, à descoberta dos que pretendem ganhar uma boleia. Os homens viajam estritamente isolados, sobre pneus de borracha. Daí que só se fala no automóvel daquilo que se costuma tratar em casa: a conversa doméstica regula-se por interesses práticos. Desde que cada família, com uma determinada renda. usa idêntica hospedagem ,cinema e cigarros, conforme a apresentam as estatísticas, assim os temas se estereotipam seguindo os vários tipos de automóvel. Quando se encontram nos domingos, ou em viagem nos hotéis, cujos cardápios e acomodações se equivalem quando em preços iguais, os visitantes descobrem que se tornaram ainda mais parecidos entre si, mediante o isolamento. A comunicação providencia a igualitarização dos homens através do seu isolamento.»
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DHARMA 1990

1-2 - 90-06-28-di> = diário de ideias - poesia2> 4740 caracteres

28/Junho/1990

Não tenho nada contra o nosso mestre F. nem ando à caça de contradições no discurso encantador que ele nos transmite. Contradição que me pode incomodar é só uma: a teoria de um lado e a prática do outro, completamente desligada da teoria. Isto, num centro onde constantemente se enfatiza a Prática em detrimento da teoria, mas a Prática segundo ali é ensinada e não outra qualquer.
De resto, as (outras) contradições internas do discurso, ou são belos trechos poéticos (gosto muito de «short stories» com desfechos imprevistos), ou resultam de um entendimento insuficiente do mau observador que sou sobre as relações existentes na matéria observada, ou são, pura e simplesmente, a expressão especular ( o espelho) da realidade que é, ela própria, móvel e portanto contraditória.
A única contradição que me assusta - , se é que é contradição e se é que me assusta -vem do desfasamento entre aquilo que se proclama ( as boas palavras, o béu-béu, o blá-blá) e aquilo que se faz. O momento mais expressivo das nossas relações veio exactamente daí: quando eu ia, pela primeira vez, dar um exemplo prático, concreto, do que vinha dizendo por palavras há dois meses, foi o Terremoto de 1755, que deixou tudo reduzido a escombros.
Os Evangelhos de Buda, tal como os Evangelhos de Cristo, estão cheios de boas palavras e de boas intenções. O que eu tenho constatado toda a vida é que, ao pôr o pé na realidade e na prática concreta das boas intenções, tentando harmonizar o acto e o gesto com alguma passagem, frase ou simples palavra daqueles evangelhos, sucede mesmo o Terremoto.
É apenas isto o que me entristece, se é que algo, neste mundo relativo, já me pode ou deve entristecer. E se me entreguei sem reservas ao discurso do Dharma budista tibetano, foi porque aí me era pregado, constantemente, o império da Prática e, por outro, o amor por todos os seres sensíveis.
Curiosamente, sou eu a sentir-me livresco, e a ter que enfiar as piadas do mestre F. a esse respeito, vendo menosprezado o meu vezo «literário» pelas palavra escrita - ainda que a palavra escrita, no meu entender, seja a palavra essencial a que as escrituras chamam «Verbo».
E o Verbo - meu Deus! - é, nada mais nada menos, pelo menos no Dharma cristão, do que a divindade. Também não entendo como a Palavra umas vezes é ouro e outras vezes pechisbeque, mas enfim, o defeito é com certeza meu, o astigmatismo de que sofro desde pequenino. Deve ser por causa da minha mente limitada, que só vejo incongruências onde e quando tudo se encaixa perfeitamente...Eu sou o lacaio imperfeito que ouve os dois príncipes perfeitos.
O único defeito dos meus príncipes perfeitos, digamos que é mesmo o de não terem qualquer defeito. O único defeito é serem perfeitos. Aliás, eu só vejo gente perfeita à minha frente e, por isso, estou atento ao discurso de toda essa gente perfeita, Não para que alguma vez seja perfeito mas para poder admirar na minha imperfeição a Perfeição deles. Só que - este o grande enigma - será possível a um ser imperfeito, amar a Perfeição? Estará ele autorizado a tanto pelos deuses?
Grato estou por tantos favores dos meus príncipes perfeitos, o maior dos quais é a dádiva de tempo que me concedem. Eu esperarei no Largo, as eternidades que forem necessárias, por um só minuto da sua atenção e da sua solicitude. Cada um arrosta (com) o Karma que tem. E, afinal, como também aprendi dos meus príncipes perfeitos, «só acontece» o que tem de acontecer, outro perigoso princípio que torna tudo relativo e portanto lícito.
Creio bem, portanto, que vai acontecer o que tem de acontecer: provavelmente desapareço do mapa, já que - como também me ensinaram - um minuto da vossa divina presença pode valer uma eternidade. Nesse caso, eu já tenho mais do que mereço e necessito, somando tantos minutos da graça de vos ter - príncipes perfeitos - visto e ouvido.
Se esta relatividade do Tempo é lei, o que estou eu a fazer ainda neste mundo relativo? Se já ganhei tudo, para que preciso eu de voltar à Rua do Salitre ou ao Largo da Biblioteca Pública?
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