DHARMA 1990
1-2 - 90-06-28-di> = diário de ideias - poesia2> 4740 caracteres
28/Junho/1990
Não tenho nada contra o nosso mestre F. nem ando à caça de contradições no discurso encantador que ele nos transmite. Contradição que me pode incomodar é só uma: a teoria de um lado e a prática do outro, completamente desligada da teoria. Isto, num centro onde constantemente se enfatiza a Prática em detrimento da teoria, mas a Prática segundo ali é ensinada e não outra qualquer.
De resto, as (outras) contradições internas do discurso, ou são belos trechos poéticos (gosto muito de «short stories» com desfechos imprevistos), ou resultam de um entendimento insuficiente do mau observador que sou sobre as relações existentes na matéria observada, ou são, pura e simplesmente, a expressão especular ( o espelho) da realidade que é, ela própria, móvel e portanto contraditória.
A única contradição que me assusta - , se é que é contradição e se é que me assusta -vem do desfasamento entre aquilo que se proclama ( as boas palavras, o béu-béu, o blá-blá) e aquilo que se faz. O momento mais expressivo das nossas relações veio exactamente daí: quando eu ia, pela primeira vez, dar um exemplo prático, concreto, do que vinha dizendo por palavras há dois meses, foi o Terremoto de 1755, que deixou tudo reduzido a escombros.
Os Evangelhos de Buda, tal como os Evangelhos de Cristo, estão cheios de boas palavras e de boas intenções. O que eu tenho constatado toda a vida é que, ao pôr o pé na realidade e na prática concreta das boas intenções, tentando harmonizar o acto e o gesto com alguma passagem, frase ou simples palavra daqueles evangelhos, sucede mesmo o Terremoto.
É apenas isto o que me entristece, se é que algo, neste mundo relativo, já me pode ou deve entristecer. E se me entreguei sem reservas ao discurso do Dharma budista tibetano, foi porque aí me era pregado, constantemente, o império da Prática e, por outro, o amor por todos os seres sensíveis.
Curiosamente, sou eu a sentir-me livresco, e a ter que enfiar as piadas do mestre F. a esse respeito, vendo menosprezado o meu vezo «literário» pelas palavra escrita - ainda que a palavra escrita, no meu entender, seja a palavra essencial a que as escrituras chamam «Verbo».
E o Verbo - meu Deus! - é, nada mais nada menos, pelo menos no Dharma cristão, do que a divindade. Também não entendo como a Palavra umas vezes é ouro e outras vezes pechisbeque, mas enfim, o defeito é com certeza meu, o astigmatismo de que sofro desde pequenino. Deve ser por causa da minha mente limitada, que só vejo incongruências onde e quando tudo se encaixa perfeitamente...Eu sou o lacaio imperfeito que ouve os dois príncipes perfeitos.
O único defeito dos meus príncipes perfeitos, digamos que é mesmo o de não terem qualquer defeito. O único defeito é serem perfeitos. Aliás, eu só vejo gente perfeita à minha frente e, por isso, estou atento ao discurso de toda essa gente perfeita, Não para que alguma vez seja perfeito mas para poder admirar na minha imperfeição a Perfeição deles. Só que - este o grande enigma - será possível a um ser imperfeito, amar a Perfeição? Estará ele autorizado a tanto pelos deuses?
Grato estou por tantos favores dos meus príncipes perfeitos, o maior dos quais é a dádiva de tempo que me concedem. Eu esperarei no Largo, as eternidades que forem necessárias, por um só minuto da sua atenção e da sua solicitude. Cada um arrosta (com) o Karma que tem. E, afinal, como também aprendi dos meus príncipes perfeitos, «só acontece» o que tem de acontecer, outro perigoso princípio que torna tudo relativo e portanto lícito.
Creio bem, portanto, que vai acontecer o que tem de acontecer: provavelmente desapareço do mapa, já que - como também me ensinaram - um minuto da vossa divina presença pode valer uma eternidade. Nesse caso, eu já tenho mais do que mereço e necessito, somando tantos minutos da graça de vos ter - príncipes perfeitos - visto e ouvido.
Se esta relatividade do Tempo é lei, o que estou eu a fazer ainda neste mundo relativo? Se já ganhei tudo, para que preciso eu de voltar à Rua do Salitre ou ao Largo da Biblioteca Pública?
***
28/Junho/1990
Não tenho nada contra o nosso mestre F. nem ando à caça de contradições no discurso encantador que ele nos transmite. Contradição que me pode incomodar é só uma: a teoria de um lado e a prática do outro, completamente desligada da teoria. Isto, num centro onde constantemente se enfatiza a Prática em detrimento da teoria, mas a Prática segundo ali é ensinada e não outra qualquer.
De resto, as (outras) contradições internas do discurso, ou são belos trechos poéticos (gosto muito de «short stories» com desfechos imprevistos), ou resultam de um entendimento insuficiente do mau observador que sou sobre as relações existentes na matéria observada, ou são, pura e simplesmente, a expressão especular ( o espelho) da realidade que é, ela própria, móvel e portanto contraditória.
A única contradição que me assusta - , se é que é contradição e se é que me assusta -vem do desfasamento entre aquilo que se proclama ( as boas palavras, o béu-béu, o blá-blá) e aquilo que se faz. O momento mais expressivo das nossas relações veio exactamente daí: quando eu ia, pela primeira vez, dar um exemplo prático, concreto, do que vinha dizendo por palavras há dois meses, foi o Terremoto de 1755, que deixou tudo reduzido a escombros.
Os Evangelhos de Buda, tal como os Evangelhos de Cristo, estão cheios de boas palavras e de boas intenções. O que eu tenho constatado toda a vida é que, ao pôr o pé na realidade e na prática concreta das boas intenções, tentando harmonizar o acto e o gesto com alguma passagem, frase ou simples palavra daqueles evangelhos, sucede mesmo o Terremoto.
É apenas isto o que me entristece, se é que algo, neste mundo relativo, já me pode ou deve entristecer. E se me entreguei sem reservas ao discurso do Dharma budista tibetano, foi porque aí me era pregado, constantemente, o império da Prática e, por outro, o amor por todos os seres sensíveis.
Curiosamente, sou eu a sentir-me livresco, e a ter que enfiar as piadas do mestre F. a esse respeito, vendo menosprezado o meu vezo «literário» pelas palavra escrita - ainda que a palavra escrita, no meu entender, seja a palavra essencial a que as escrituras chamam «Verbo».
E o Verbo - meu Deus! - é, nada mais nada menos, pelo menos no Dharma cristão, do que a divindade. Também não entendo como a Palavra umas vezes é ouro e outras vezes pechisbeque, mas enfim, o defeito é com certeza meu, o astigmatismo de que sofro desde pequenino. Deve ser por causa da minha mente limitada, que só vejo incongruências onde e quando tudo se encaixa perfeitamente...Eu sou o lacaio imperfeito que ouve os dois príncipes perfeitos.
O único defeito dos meus príncipes perfeitos, digamos que é mesmo o de não terem qualquer defeito. O único defeito é serem perfeitos. Aliás, eu só vejo gente perfeita à minha frente e, por isso, estou atento ao discurso de toda essa gente perfeita, Não para que alguma vez seja perfeito mas para poder admirar na minha imperfeição a Perfeição deles. Só que - este o grande enigma - será possível a um ser imperfeito, amar a Perfeição? Estará ele autorizado a tanto pelos deuses?
Grato estou por tantos favores dos meus príncipes perfeitos, o maior dos quais é a dádiva de tempo que me concedem. Eu esperarei no Largo, as eternidades que forem necessárias, por um só minuto da sua atenção e da sua solicitude. Cada um arrosta (com) o Karma que tem. E, afinal, como também aprendi dos meus príncipes perfeitos, «só acontece» o que tem de acontecer, outro perigoso princípio que torna tudo relativo e portanto lícito.
Creio bem, portanto, que vai acontecer o que tem de acontecer: provavelmente desapareço do mapa, já que - como também me ensinaram - um minuto da vossa divina presença pode valer uma eternidade. Nesse caso, eu já tenho mais do que mereço e necessito, somando tantos minutos da graça de vos ter - príncipes perfeitos - visto e ouvido.
Se esta relatividade do Tempo é lei, o que estou eu a fazer ainda neste mundo relativo? Se já ganhei tudo, para que preciso eu de voltar à Rua do Salitre ou ao Largo da Biblioteca Pública?
***
<< Home