D. DOMINGOS 1973
1-4 - 73-06-27-ie-mk-terça-feira, 3 de Dezembro de 2002-scan
CARTA DE AFONSO CAUTELA AO PROF.DELGADO DOMINGOS (*)
Lisboa, 27 de Junho de 1973
Ex.mo Senhor Prof. José Joaquim Delgado Domingos
Se a «crise do ambiente» é fundamentalmente a irredutível oposição, o abismo, a guerra aberta entre quantidade e qualidade, inorgânico e orgânico, material e imaterial, inumano e humano, não creio que seja possível dialogar sobre Ambiente quando se assume um dos termos dessa dicotomia e a ideologia que lhe corresponde, ideologia que não iludo a ninguém e engagement que não oculto.
Triplamente surpreendido, pois, me deixou a sua carta:
1.° - Não sabia que o meu artigo fora publicado no «Diário de Lisboa».
Tratava-se de uma carta que escrevi ao José Saramago, à qual acrescentava um texto de emergência em apoio da atitude que ele, em Notas do Dia, mantivera perante os sofismas dos que vão dirigir mais um inquérito epidemiológico, dos que vão proceder a mais uma experiência in vitro nos crematórios do Barreiro, carta que não fora escrita com a ideia de a ver publicada; fora apenas um dos muitos textos que vou lançando para o cesto (gueto) das minhas solitárias reflexões de indesejável, de ignorante auto-didacta, de marginal, de revoltado (despeitado, dizem os diplomados) maltrapilho e out-sider;
2.° - Os termos em que esse texto estava escrito não convidavam de maneira nenhuma ao diálogo; por demasiado acintosos e provocantes, antes pretendiam acentuar o abismo, a crise, a guerra; admirado fiquei, pois, do «fair play» demonstrado pelas suas palavras e pela sua carta, muito mais cordial do que eu poderia esperar e do que a minha atitude podia permitir;
3.° - É insólito, raro, para não dizer inédito, que um professor catedrático se digne responder a um jornalista, ainda por cima tratando-se de um assunto «vital» para ambos, onde automaticamente se é vitima ou verdugo (sem terceiro termo).
Enfim, mal refeito da tripla surpresa, aqui estou, como manda a boa educação, agradecendo a atenção e respondendo à carta de V. Ex.a.
Havia efectivamente uma referência à memorável Mesa Redonda no Laboratório. Essa - mais redonda do que mesa e menos mesa do que redonda - é que para mim não foi surpresa. Já sabia o que lá iria ouvir e (caso curioso) foi a primeira vez que o ofício me levou a entrar nesse templo da ciência experimental portuguesa... Conheço melhor os crematórios e cobaias e jaulas cá de fora!
Mas creia o sr. Prof. que não pretendi apenas atingir a sua intervenção: todo e qualquer tecnicismo me provoca brotoeja. É uma pura questão alérgica, tal como o horror ao Ruído.
É natural: o meu empirismo (subjectividade) provoca brotoeja aos técncios. Amor com amor se paga.
O meu texto (como tudo o que infatigavelmente escrevo para a gaveta) visava a mentalidade dominante em todas as intervenções, que é não só a tónica de todos os discursos sobre poluentes como a de todos os discursos com que a ciência nos brinda desde que ficou autorizada a ir matando os homens em nome dos seus sagradas princípios.
Sejamos justos: a intervenção de V. Ex.a não me chocou mais do que a do director-geral de Saúde, que a contra-gosto enunciou ali uma tese de Medicina Ecológica (a única revolucionária e a única humanista), anti-sintomatológica, quando três dias antes o ouvira eu, com estes dois que a terra há-de comer, em conferência de Imprensa, proclamar com a mesma imperturbável calma, a campanha de vacinação contra o sarampo, outra forma crónica de reformismo sintomatológico, outra das muitas formas de terror nazi-fascista com que a Medicina oficial coadjuva o crime organizado e sistemático.
Contradições são sempre contradições e tanto me obnubilam umas como outras.
No meu franciscanismo panteísta, místico, pacifista, empirista e subjectivo - melodramático lhe chamam alguns, - no meu horror aos sofismas da ciência organizada em crime sistemático, no meu pavor dos dogmas económicos, políticos, tecnológicos, de que sou vítima diária na minha qualidade de diplomado em qualidade (eles dizem «em ignorância»), só disponho dessa arma, que em mim sofre portanto de hipertrofia crónica: o raciocínio, a inflexível lógica dialéctica, minha única especialidade, minha arte e técnica. Desgraçadamente nenhum raciocínio dos meus coincide com os estabelecidos.
Sessões como essa no Laboratório de Engenharia Civil são, ainda por cima, por obrigação profissional, o meu pão de cada dia, o meu vietname, a minha resistência.
Vivo, pois, em permanente estado de choque, não falando da latrina de Ruídos em que se transformou Portugal Continental.
Traumatizado, torturado por um ambiente que desde a raiz sinto inabitável, insuportável, intolerável, é impossível que possa aceitar sem protestos que façam desse ambiente cómoda matéria de estudos científicos, e a nós cobaias dos seus laboratórios de engenheiros mais ou menos nada civis. Se estamos em guerra, trata-se de engenharia «militar» sempre.
Para mim só existe um enigma: porque é que ainda não me suicidei, alegria que nunca mais dou aos meus numerosos amigos, adeptos e adoradores do Número. Daí os sucedâneos do suicídio que são certas intervenções como essa do «Diário de Lisboa», em que sei estar a enfrentar um exército regular, totalmente só e desguarnecido, totalmente exposto às feras.
Lamento mas não fui eu a declarar a guerra, eu que até sou pacifista de raiz e de estrutura. De Gandhi a Linus Pauling, de Lanza del Vasto a Danilo Dolci, de Bertrand Russell a Barry Commoner e a Pierre Fournier... faço o possível por me escudar do Grande Exército.
Lamento mas não fui eu a declarar a crise, a tornar o abismo intransponível e o diálogo inviável. Limito-me a fazer o que posso para impedir que me matem (especialmente a Medicina que é, entre todas as ciências nobres, a arte e a técnica legais de matar a domicílio ou pelo telefone), embora talvez não possa impedir que a minha filha de 10 meses venha a receber as três vacinas obrigatórias deste País, primeiro estigma que os guardas do concentracionário lhe deixarão no corpo de cobaia e na inocência.
É só isto, sr. Prof., e neste pé (a que os amigos chamam melodramático) não deixo de considerar interessante, embora me pareça inverosímil, qualquer diálogo entre as partes interessadas.
Com os meus cumprimentos,
Lisboa, 27 de Junho de 1973
Afonso Cautela
PS.: Acabo de receber a separata sobre «A Crise do Ambiente», que me anuncia na sua carta e que li atentamente. Parece-me, porém, não vir alterar substancialmente a irredutibilidade de posições a priori existente.
*
Uma eventualidade me parece relevante: reconheço que a filiação profissional de alguém não o condena necessariamente a ser membro activo do Sistema e seus abusos, da Abjecção e seus crimes.
Quando vi em teatro «O Dossier Oppenheimer» chorei com o amargo destino sofrido pelo pobre e perseguido sábio...
Sicco Mansholt foi a (re)conversão mais sensacional, quase bíblica, do ano passado, e a outras, e cada vez mais, iremos assistir nesta década apocalíptica.
Acredito piamente que não é fatalidade nascer-se físico, químico, médico ou jornalista, assim como se nasce zarolho ou talidomídico. Haverá sempre viabilidade, por um enorme esforço de reciclagem, de escapar aos crimes obrigatórios da profissão por uma boa e periódica lavagem de consciência.
Mas um tal esforço de resistência e revolta, de inconformismo e contestação, eu pergunto quantos irão manter-se firmes e levar esse esforço até limites de algum alcance prático. Enquanto a sociedade de consumo nos bandarilhar com as suas tentações de berliques e berloques, quem está disposto a perder o emprego, a seguir o desafio que o mensário Le Sauvage (Le Nouvel Observateur-Ecologie) na capa do seu número três provocadoramente lançava: «travailleurs de tous les pays, reposez-vous»?
Para mim a profissão de jornalista é uma sífilis tão vergonhosa como a profissão de sábio atomista, de químico, de médico ou de guarda de concentracionário.
Aproveito todas as ocasiões para o dizer e, pondo em cheque o emprego, pôr à prova a capacidade de tolerância e poder de encaixe da empresa a que me vendo.
Mas não vou por isso considerar-me herói, isento e de consciência limpa (para um ecomaníaco todos os problemas são morais). Ser jornalista é uma das formas mais sujas de cooperar com a Porcaria, daí talvez a necessidade de umas purgas cíclicas. Nessa qualidade, concorri descaradamente ao prémio da Gáslimpo com dezenas de artigos e nem falo das mirabolâncias necessárias para conseguir infiltrar a problemática ambiente nesta Imprensa lisboeta, sofrendo de virose desportiva crónica, reaccionária até à raiz e até nos espaços em branco.
Concorri porque precisava dos 10 mil escudos (hélas!), em grande parte para financiar as fotocópias daqueles artigos que a Imprensa recusa, que a Censura corta e em que tento avisar as pessoas do que as mata, de quem as mata.
Mas o distinto júri de ilustres diplomados em Meio Ambiente, entendeu dar os 10 mil escudos a licenciados (que beberam com eles mais uns uísques) e humilhar-me, castigar-me, insultar-me com três menções honrosas, como se uma não bastasse!
Extrairei todo o simbolismo e consequências deste «affaire» pessoal, politizarei a canelada e farei da vingança a Vingança. E macacos me mordam (antes macacos do que júris) se não farei deste « «affaire» meu justificativo de radical até à raiz!
Dificílimo, Sr Prof., será pois desarreigar-me desta subjectividade toda, deste ódio a quem mata ou autoriza e que é, em mim, o correctivo do imenso amor por toda a criatura viva do universo conhecido, incluindo os golfinhos e os extra-terrestres, única hipótese em que acredito para detonar a mutação de última hora, o milagre in extremis que pode ainda salvar o resto que resta disto: Utopia ou Morte?
Só os irmãos extraterrestres, que me consta não saberem nada de finanças, nos ajudarão a escapar ao segundo termo da alternativa.
Não creio haver nenhum homem de Bem, nenhum especialista portanto, mesmo um Sicco Mansholt da Física, da Química ou da Medicina capaz de ir tão longe (ali à galáxia da esquina) no abandono dos mitos em que o Establishment o enredou.
Pungwash e Menton - estou atento à Reacção dos Sábios e não descobri nenhum, nem Russell, nem René Dubos, nem Commoner, nem Ehrlich, nem, nem, nem, que tivesse tido o arrojo de questionar desde a raiz os fundamentos da porcaria. Daí que seriamente duvide da viabilidade de um diálogo, embora esteja sempre mais aberto do que uma porta aberta a todos os impossíveis e inverosímeis, incluindo esse.
Ou este: formar já hoje (ontem, se possível) uma equipa que ponha em marcha um JORNAL DO BIOCÍDIO - já tinha título, Terra Queimada - para informar as pessoas se afinal o que as mata é o vinho a martelo, se a radioactividade, se tudo isso e o resto. Se tudo.
Seu
AC
____
(*) Este texto de AC foi publicado no livro «Ecologia e Medicina», edição «Gazeta do Sul» (Montijo), 1977, por favor e gentileza do meu inesquecível e querido amigo Dr. Rocha Barbosa, a quem fiquei devendo mil atenções.
***
CARTA DE AFONSO CAUTELA AO PROF.DELGADO DOMINGOS (*)
Lisboa, 27 de Junho de 1973
Ex.mo Senhor Prof. José Joaquim Delgado Domingos
Se a «crise do ambiente» é fundamentalmente a irredutível oposição, o abismo, a guerra aberta entre quantidade e qualidade, inorgânico e orgânico, material e imaterial, inumano e humano, não creio que seja possível dialogar sobre Ambiente quando se assume um dos termos dessa dicotomia e a ideologia que lhe corresponde, ideologia que não iludo a ninguém e engagement que não oculto.
Triplamente surpreendido, pois, me deixou a sua carta:
1.° - Não sabia que o meu artigo fora publicado no «Diário de Lisboa».
Tratava-se de uma carta que escrevi ao José Saramago, à qual acrescentava um texto de emergência em apoio da atitude que ele, em Notas do Dia, mantivera perante os sofismas dos que vão dirigir mais um inquérito epidemiológico, dos que vão proceder a mais uma experiência in vitro nos crematórios do Barreiro, carta que não fora escrita com a ideia de a ver publicada; fora apenas um dos muitos textos que vou lançando para o cesto (gueto) das minhas solitárias reflexões de indesejável, de ignorante auto-didacta, de marginal, de revoltado (despeitado, dizem os diplomados) maltrapilho e out-sider;
2.° - Os termos em que esse texto estava escrito não convidavam de maneira nenhuma ao diálogo; por demasiado acintosos e provocantes, antes pretendiam acentuar o abismo, a crise, a guerra; admirado fiquei, pois, do «fair play» demonstrado pelas suas palavras e pela sua carta, muito mais cordial do que eu poderia esperar e do que a minha atitude podia permitir;
3.° - É insólito, raro, para não dizer inédito, que um professor catedrático se digne responder a um jornalista, ainda por cima tratando-se de um assunto «vital» para ambos, onde automaticamente se é vitima ou verdugo (sem terceiro termo).
Enfim, mal refeito da tripla surpresa, aqui estou, como manda a boa educação, agradecendo a atenção e respondendo à carta de V. Ex.a.
Havia efectivamente uma referência à memorável Mesa Redonda no Laboratório. Essa - mais redonda do que mesa e menos mesa do que redonda - é que para mim não foi surpresa. Já sabia o que lá iria ouvir e (caso curioso) foi a primeira vez que o ofício me levou a entrar nesse templo da ciência experimental portuguesa... Conheço melhor os crematórios e cobaias e jaulas cá de fora!
Mas creia o sr. Prof. que não pretendi apenas atingir a sua intervenção: todo e qualquer tecnicismo me provoca brotoeja. É uma pura questão alérgica, tal como o horror ao Ruído.
É natural: o meu empirismo (subjectividade) provoca brotoeja aos técncios. Amor com amor se paga.
O meu texto (como tudo o que infatigavelmente escrevo para a gaveta) visava a mentalidade dominante em todas as intervenções, que é não só a tónica de todos os discursos sobre poluentes como a de todos os discursos com que a ciência nos brinda desde que ficou autorizada a ir matando os homens em nome dos seus sagradas princípios.
Sejamos justos: a intervenção de V. Ex.a não me chocou mais do que a do director-geral de Saúde, que a contra-gosto enunciou ali uma tese de Medicina Ecológica (a única revolucionária e a única humanista), anti-sintomatológica, quando três dias antes o ouvira eu, com estes dois que a terra há-de comer, em conferência de Imprensa, proclamar com a mesma imperturbável calma, a campanha de vacinação contra o sarampo, outra forma crónica de reformismo sintomatológico, outra das muitas formas de terror nazi-fascista com que a Medicina oficial coadjuva o crime organizado e sistemático.
Contradições são sempre contradições e tanto me obnubilam umas como outras.
No meu franciscanismo panteísta, místico, pacifista, empirista e subjectivo - melodramático lhe chamam alguns, - no meu horror aos sofismas da ciência organizada em crime sistemático, no meu pavor dos dogmas económicos, políticos, tecnológicos, de que sou vítima diária na minha qualidade de diplomado em qualidade (eles dizem «em ignorância»), só disponho dessa arma, que em mim sofre portanto de hipertrofia crónica: o raciocínio, a inflexível lógica dialéctica, minha única especialidade, minha arte e técnica. Desgraçadamente nenhum raciocínio dos meus coincide com os estabelecidos.
Sessões como essa no Laboratório de Engenharia Civil são, ainda por cima, por obrigação profissional, o meu pão de cada dia, o meu vietname, a minha resistência.
Vivo, pois, em permanente estado de choque, não falando da latrina de Ruídos em que se transformou Portugal Continental.
Traumatizado, torturado por um ambiente que desde a raiz sinto inabitável, insuportável, intolerável, é impossível que possa aceitar sem protestos que façam desse ambiente cómoda matéria de estudos científicos, e a nós cobaias dos seus laboratórios de engenheiros mais ou menos nada civis. Se estamos em guerra, trata-se de engenharia «militar» sempre.
Para mim só existe um enigma: porque é que ainda não me suicidei, alegria que nunca mais dou aos meus numerosos amigos, adeptos e adoradores do Número. Daí os sucedâneos do suicídio que são certas intervenções como essa do «Diário de Lisboa», em que sei estar a enfrentar um exército regular, totalmente só e desguarnecido, totalmente exposto às feras.
Lamento mas não fui eu a declarar a guerra, eu que até sou pacifista de raiz e de estrutura. De Gandhi a Linus Pauling, de Lanza del Vasto a Danilo Dolci, de Bertrand Russell a Barry Commoner e a Pierre Fournier... faço o possível por me escudar do Grande Exército.
Lamento mas não fui eu a declarar a crise, a tornar o abismo intransponível e o diálogo inviável. Limito-me a fazer o que posso para impedir que me matem (especialmente a Medicina que é, entre todas as ciências nobres, a arte e a técnica legais de matar a domicílio ou pelo telefone), embora talvez não possa impedir que a minha filha de 10 meses venha a receber as três vacinas obrigatórias deste País, primeiro estigma que os guardas do concentracionário lhe deixarão no corpo de cobaia e na inocência.
É só isto, sr. Prof., e neste pé (a que os amigos chamam melodramático) não deixo de considerar interessante, embora me pareça inverosímil, qualquer diálogo entre as partes interessadas.
Com os meus cumprimentos,
Lisboa, 27 de Junho de 1973
Afonso Cautela
PS.: Acabo de receber a separata sobre «A Crise do Ambiente», que me anuncia na sua carta e que li atentamente. Parece-me, porém, não vir alterar substancialmente a irredutibilidade de posições a priori existente.
*
Uma eventualidade me parece relevante: reconheço que a filiação profissional de alguém não o condena necessariamente a ser membro activo do Sistema e seus abusos, da Abjecção e seus crimes.
Quando vi em teatro «O Dossier Oppenheimer» chorei com o amargo destino sofrido pelo pobre e perseguido sábio...
Sicco Mansholt foi a (re)conversão mais sensacional, quase bíblica, do ano passado, e a outras, e cada vez mais, iremos assistir nesta década apocalíptica.
Acredito piamente que não é fatalidade nascer-se físico, químico, médico ou jornalista, assim como se nasce zarolho ou talidomídico. Haverá sempre viabilidade, por um enorme esforço de reciclagem, de escapar aos crimes obrigatórios da profissão por uma boa e periódica lavagem de consciência.
Mas um tal esforço de resistência e revolta, de inconformismo e contestação, eu pergunto quantos irão manter-se firmes e levar esse esforço até limites de algum alcance prático. Enquanto a sociedade de consumo nos bandarilhar com as suas tentações de berliques e berloques, quem está disposto a perder o emprego, a seguir o desafio que o mensário Le Sauvage (Le Nouvel Observateur-Ecologie) na capa do seu número três provocadoramente lançava: «travailleurs de tous les pays, reposez-vous»?
Para mim a profissão de jornalista é uma sífilis tão vergonhosa como a profissão de sábio atomista, de químico, de médico ou de guarda de concentracionário.
Aproveito todas as ocasiões para o dizer e, pondo em cheque o emprego, pôr à prova a capacidade de tolerância e poder de encaixe da empresa a que me vendo.
Mas não vou por isso considerar-me herói, isento e de consciência limpa (para um ecomaníaco todos os problemas são morais). Ser jornalista é uma das formas mais sujas de cooperar com a Porcaria, daí talvez a necessidade de umas purgas cíclicas. Nessa qualidade, concorri descaradamente ao prémio da Gáslimpo com dezenas de artigos e nem falo das mirabolâncias necessárias para conseguir infiltrar a problemática ambiente nesta Imprensa lisboeta, sofrendo de virose desportiva crónica, reaccionária até à raiz e até nos espaços em branco.
Concorri porque precisava dos 10 mil escudos (hélas!), em grande parte para financiar as fotocópias daqueles artigos que a Imprensa recusa, que a Censura corta e em que tento avisar as pessoas do que as mata, de quem as mata.
Mas o distinto júri de ilustres diplomados em Meio Ambiente, entendeu dar os 10 mil escudos a licenciados (que beberam com eles mais uns uísques) e humilhar-me, castigar-me, insultar-me com três menções honrosas, como se uma não bastasse!
Extrairei todo o simbolismo e consequências deste «affaire» pessoal, politizarei a canelada e farei da vingança a Vingança. E macacos me mordam (antes macacos do que júris) se não farei deste « «affaire» meu justificativo de radical até à raiz!
Dificílimo, Sr Prof., será pois desarreigar-me desta subjectividade toda, deste ódio a quem mata ou autoriza e que é, em mim, o correctivo do imenso amor por toda a criatura viva do universo conhecido, incluindo os golfinhos e os extra-terrestres, única hipótese em que acredito para detonar a mutação de última hora, o milagre in extremis que pode ainda salvar o resto que resta disto: Utopia ou Morte?
Só os irmãos extraterrestres, que me consta não saberem nada de finanças, nos ajudarão a escapar ao segundo termo da alternativa.
Não creio haver nenhum homem de Bem, nenhum especialista portanto, mesmo um Sicco Mansholt da Física, da Química ou da Medicina capaz de ir tão longe (ali à galáxia da esquina) no abandono dos mitos em que o Establishment o enredou.
Pungwash e Menton - estou atento à Reacção dos Sábios e não descobri nenhum, nem Russell, nem René Dubos, nem Commoner, nem Ehrlich, nem, nem, nem, que tivesse tido o arrojo de questionar desde a raiz os fundamentos da porcaria. Daí que seriamente duvide da viabilidade de um diálogo, embora esteja sempre mais aberto do que uma porta aberta a todos os impossíveis e inverosímeis, incluindo esse.
Ou este: formar já hoje (ontem, se possível) uma equipa que ponha em marcha um JORNAL DO BIOCÍDIO - já tinha título, Terra Queimada - para informar as pessoas se afinal o que as mata é o vinho a martelo, se a radioactividade, se tudo isso e o resto. Se tudo.
Seu
AC
____
(*) Este texto de AC foi publicado no livro «Ecologia e Medicina», edição «Gazeta do Sul» (Montijo), 1977, por favor e gentileza do meu inesquecível e querido amigo Dr. Rocha Barbosa, a quem fiquei devendo mil atenções.
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