76-07-14-NF> cac76> cartas de ac em 1976 - repescagem - chave para as ideias dele - matéria possível de temas e respostas à entrevista-testamento que hei-de dar no dia de s. nunca - não encontro o file ficcªar10.wri> (era folha de rosto e foi parar com certeza ao lixo) onde escrevia, mais tarde, estes antecedentes à dita carta que hoje vou repescar: ECOLOGIA COMO ACTIVIDADE LÚDICA
De um militante ecológico em vias de vender a alma ao diabo, ao sr. Smith campbell, director da multinacional petrolífera anchovas, pedindo que o admita como consultor -(cartas ac para ac ficcionar)- nomes ocorrentes neste inédito ac : Josué de Castro e Herbert Marcuse - (a quem é dirigida esta carta tão confessional, tão memorialística, tão sintetizante, tão holística? Quem é Francisco Simão, para eu entrar em tamanhas confidências?)
As cartas, assim filosóficas como esta, são boa matéria-prima para E-T. Basta, muitas vezes, intercalar a pergunta para a resposta que já está dada - verdadeiro crisol , em 1976 (há 22 anos!) de ideias mais tarde confirmadas, esta texto assinala, de facto, a mania antecipativa do senhor afonso cautela
Lisboa,
14/Julho/1976 - Francisco Simão: Aceito o desafio das suas perguntas: o diálogo com pessoas inteligentes é hoje uma das poucas coisas que se pode fazer sem desgosto nem angústia, uma forma desportiva, higiénica e alegre de passar o tempo.
As dúvidas por si levantadas já têm sido, como calcula, motivo de indagação e explicação da minha parte, em outras conjunturas; nem de outra maneira se explica a inflação de textos que sou mais ou menos compelido a escrever, sempre ou quase sempre pela necessidade de explicação e às vezes de auto-explicação.
É sempre necessário e como se comprova, voltar a coisas que já largamente estão ditas, escritas, repetidas, coisas que alguns, por outro lado, com muito senso e realismo, insinuam ser apenas bocas, mais merda do que outra coisa.
E aqui começa, Francisco, o jogo de ambiguidades, o arame sobre o qual o aprendiz de iniciado se baloiça enquanto existe e para existir.
- Que finalidade, que objectivo terá, afinal, toda esta agitação, toda esta luta, todo este sofrimento, toda esta angústia, toda esta merda?
Mas repare: porque terei eu, ou terá você, mais obrigação de explicar a própria luta, do que os outros, os que se demitem, os que desistem de trabalhar ou trabalham no campo da contra-revolução.
Se nada tem sentido, então o criminoso é igual ao homem honesto, o destruidor da Natureza igual ao seu defensor e tudo está afinal certo porque tudo está afinal errado.
Creio ser mais ou menos isto o que dizia o grande inquisidor do Dostoiewski, argumentando a favor da meritória acção que consistia em mandar inocentes para o cepo dos torresmos.
Se deus não existe, nada tem sentido, não há moral, não há bem nem mal.
- Repare, porém, que todos se agarram a qualquer tábua: partido, ideal, religião, lucro, negócio, obra, filho, etc. Na grande noite e no grande cáos, todos procuram um casulo de ordem.
Eu procuro-a fazendo o que faço e tal como o faço.
- Esta podia ser a primeira resposta à sua pergunta: «acredita ou não na possível vitória da luta ecológica».
- Não sei se acredito ou não, o que lhe posso dizer é que não faço depender da vitória ou da não vitória, lutar e continuar lutando.
Acredito tanto como os outros acreditam naquilo em que dizem acreditar, enquanto não se suicidam (pelo álcool, pela droga, num acidente de automóvel, de qualquer forma disfarçada ou explícita de autodestruição). Para lhe ser franco, estou pela cabeça sempre muito mais próximo da tentação do suicídio e do niilismo, mas pelo instinto, pelo temperamento, pela intuição e pela imaginação mais próximo da terra, da esperança, portanto, contrabalançando o que a cabeça exige.
Daí que a única coisa real seja esta oscilação (talvez ambiguidade, talvez dialéctica, talvez indefinição) entre os dois contrários, neste caso entre o desespero e a esperança, o niilismo e a crença.
- Mas independentemente desse motivo existencial (luto como todos nós porque não posso deixar de fazer alguma coisa para existir e sentir que existo), existem outros dois motivos que gostaria de lhe dizer; um, é estético; o outro, lúdico.
Quem tenha um mínimo de sensibilidade artística (condição necessária mas nem sempre suficiente paa a sensibilidade ecológica) fatalmente que fará pender o maior peso da sua escala de valores para onde a fealdade e a porcaria e o mau gosto não abundem...
De resto, para quem tenha um certo gosto pelo jogo e não goste de xadrez, nem de futebol, nem de hipismo, nem de ténis, nem de marchas pedestres, eis que a luta ecológica começa e acaba por ser também um jogo, como qualquer outro. Faço questão de reivindicar o direito de jogar o jogo que me apetece ...
Estranho muito que isto escandalize muito boa gente, cuja actividade preponderante consiste em condenar nos outros aquilo que, sob outras formas, eles próprios fazem; em condenar nos outros que não sigam o padrão lúdico que eles seguem: em jogar o bacará, a roleta, o andebol de sete, etc. mas não consentirem que outros joguem ecologia.
- Acreditar nisto ou naquilo, no anjo da ecologia ou nos bandidos da tecnocracia, não é questão teórica, mental, de cabeça, deliberação que a gente tome às tantas horas do dia tal. Construir uma crença ou deixar-se esmagar por uma descrença pode ser obra de uma vida inteira. É questão que nos envolve no total, vai bolir com aquela zona que é, ao mesmo tempo, a mais singular, a mais pessoal e a mais inviolável de nós próprios.
Para quem escreve , está nessa zona o segredo do que ele produzir, criar, escrever. Tocar nessa zona hipersensível pode ser destruir alguém ou ressuscitar alguém. Por questões domésticas, estou a curar-me há um mês de uma bolada perto dessa zona de melindre moral hipersensível... E nunca mais cicatriza.
Exigir dos outros, mesmo os mais íntimos, que sintonizem a nossa zona mais profunda e mais íntima da nossa intimidade é um dos tais absolutos que este mundo de coisas relativas nunca nos dá. Paciência, que é virtude bastante chinesa.
II
- Quanto ao sistema e seu poder recuperador do militante, o problema continua a ser mais do militante do que do sistema ...
Creio ter sido Marcuse e outros ideólogos subtis de um neo-imperialismo, quem assinalou o carácter fechado, circular e vicioso da sociedade unidimensional. Ninguém pode sair dela, porque ela acaba sempre por comprar e vender o produto, por mais contestatário que seja o produto.
Desconfio dessa tese, aliás aliciante, porque serve à maravilha a contra-revolução. Utopia seria lutar contra o sistema, porque o sistema quando não pode esmagar, recupera.
- É o mesmo que me perguntarem: «se o imperialismo viesse agora oferecer-me um preço, vender-me-ia ao imperialismo?»
- Com toda a franqueza e sem cinismo, devo dizer-lhe: depende do preço.
Até hoje ninguém me fez propostas desonestas. Mas como a ecologia se começa a vender, se alguém mas fizer, num momento em que por amor à arte estou em vias de comer sola ao almoço e corno ao jantar, talvez me vendesse e vendesse a alma ao diabo. Talvez nessa altura, muitos daqueles que até hoje nem um dedo mexeram para me ajudar, me caissem em cima, com a boca cheia de condenações, de raios e coriscos, condenando a minha feia acção.
Não é caso para pânico, porém: para gáudio desses críticos, ninguém me ofereceu até hoje preço que eu aceite, nem eu me vendo por preço barato.
- Daí que, pela segunda lei da termodinâmica, eu esteja convencido disto: a quantidade de energia positiva que introduzi no ecossistema, através de um esforço que, de facto, hei-de reconhecer com toda a modéstia, tem algo de absurdo e de colossal, num país de madraços, de preguiçosos, de palermas, de imbecis, de oportunistas e de atrazados mentais.
Estou absolutamente certo (a certeza que me dá a lei física, tão inalterável como a lei da gravidade) de que o yang deste yin que tem sido o meu esforço de parir diariamente um superavit de vida onde os outros vão deixando lixo e cadáveres, há-de florescer por algum lado: não por mérito meu, mas por mérito da natureza que desponta sempre e mesmo que a massacrem muito.
Do que duvido, porém, é que seja suficiente, se poucos mais se derem ao mesmo trabalho de introduzir vida no ecossistema, limitando-se à desgastante entropia de consumir, consumir & consumir, acompanhando essa proveitosa actividade autofágica de maciças destruições de oxigénio, água, solos, clima, património vegetal e animal, de homens e recursos humanos.
- Se haverá ou não futuro possível, depende desta corrida entre os dois corredores: quem chegará primeiro, quem destruirá o outro?
- Você quer que eu lhe responda. Mas ninguém lhe poderá responder porque isso equivalia a poder adivinhar o número da lotaria...
Só a Natureza lhe poderá responder, se houvesse o mínimo de silêncio para a poder escutar (o que chamo sensibilidade ecológica).
Não pode você, enfim, é basear a sua opção ecológica numa antecipada e prévia certeza de que o seu partido ecológico será o vitorioso.
III
- Os movimentos pseudo-esotéricos em que fala, parecem-me todos, de facto, do mais acabado pechisbeque, quando não são pura e simplesmente carapuços mal disfarçados de infiltrações contra-revolucionárias e imperialistas. Esses pseudo, aliás, têm também a função de denegrir e pejorar o verdadeiro esoterismo, que é uma poderosa arma anti-imperialista.
- Como toda a sensibilidade ecológica e toda a inteligência que funciona em espiral, como todo o ser cósmico que se descobre como tal, o amigo afinal procura a linha herética desta anti-civilização da Morte, da qual são afluentes autores, correntes, artistas, poetas, filósofos, alguns contra-cientistas, profetas e profecias que eclodem hoje, todos, na convergência chamada contestação ecológica.
É isto que não percebem os que julgam perceber mais de ecologia. Será esta a grande linha de rutura e de passagem para outra espécie humana que sucederá à espécie humana.
Pela linha da Heresia passa um mundo em gestação.
O surrealismo e o realismo fantástico são, no tempo, alguns antecedentes muito recentes. Digo-lhe que esse trabalho de historiar a heresia (o movimento ecológico através do tempo e do espaço, afinal) é o que há mais tempo me ocupa e me ocupa mais milhares de páginas escritas, inéditas, na gaveta...
IV
- Uma referência à sua última pergunta: a incompatibilidade entre Ecologia e explosão demográfica. Inevitável...
- Não é necessário recorrer a contra-ideólogos para encontrar a tese neo-maltusiana da explosão demográfica desmistificada: a China Popular e o pensador Josué de Castro demonstraram suficientemente esse sofisma do neo-imperialismo, esse neo-maltusianismo , provando o que o militante da ecologia já nem precisa de provar: que se trata de uma gigantesca e bem orquestrada campanha da internacional tecnofascista contra o terceiro e o quarto mundo da Fome e uma vez que a população é, deste 3º e 4º mundo, a última , definitiva e grande arma absoluta.
Creio mais nela, aliás, para fazer explodir o odre podre do imperialismo e do tecnofascismo, do que na modesta , pequeno-burguesa, idealista e angustiada acção de ecomilitantes como nós...
Aliado do 3º mundo, é no lumpen proletariado - excluído até das obras clássicas do marxismo - que o ecomilitante poderá apoiar-se para constituir um verdadeiro partido revolucionário de emancipação ecológica. Revolução tricontinental igual a revolução ecológica - escrevi algures e por diversas vezes.
Aliás, tudo isto escrevi algures e por diversas vezes a pedido de vários amigos e de várias famílias. Não faço outra coisa do que repetir-me. Tudo isto, meu amigo Francisco Simão, que me fez o grande favor de querer trocar umas impressões nesta imensa e cósmica solidão.
Seu, sempre que queira, Afonso Cautela
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