GRATIDÃO 1992
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21-4-1992
OBRIGADO POR TODAS AS CRISES
«Se não fosse o demónio, não teria encontrado Deus»
Graças a Deus que fui meticulosamente afastado de tudo onde me meti, por aqueles que temiam sempre a chegada de um intruso ao seu reino.
Graças a Deus que fui afastado da crítica de cinema pelos peritos em cinema que nunca me deixaram pôr o pé em ramo verde.
Da crítica de livros, pelos que desde cedo viram que um herege confesso não podia corresponder satisfatoriamente ao equilíbrio de forças que deve existir entre os vários lobbies da influência literária (desde cedo que se deram conta de eu ser um teimoso desestabilizador).
Graças a deus que também do meu Alentejo natal e das minhas raízes ancestrais eu fui afastado pelos que instalaram, nessa província, a sua coutada privativa, dos que, com armas e bagagens, instauraram a ditadura estalinista no Alentejo, praticamante em todas as câmaras municipais, não me deixando, nem como hipótese, regressar à terra que me foi berço. Graças a deus que logo puseram em acção a polícia privada do PCP, para saber dos meus perigosos antecedentes de anticomunista primário.
Graças a deus que fui afastado dos meios naturoterapêuticos pelos que viram, desde cedo, a minha nula disponibilidade para fazer das artes de curar um negócio, para merceeirar, negociar com a vida e a saúde das pessoas.
Graças a Deus que fui expulso a pontapé das minhas paixões, dos meus apegos, até das minhas amizades, às quais estaria hoje apegado sem remissão e sem conseguir ver mais nada (a paixão cega).
Graças a deus que não me quiseram na literatura, onde estaria a esta hora a ser discutido pelo prémio que devia ter e não tive, porque o maldito fascismo larvar não consentiu e eu não fiz outra coisa na vida senão tirocínio para herói.
Graças a Deus que não tive memória, pois estaria hoje em professor do Secundário, ou do Primário, ou quiçá do universitário, definitivamente instalado até à minha jubilosa jubilação.
Graças a Deus que me criaram condições inviáveis de inabitabilidade absoluta naquele abençoado jornal, naquela casa de cancros que é a redacção daquele jornal «A Capital», zona de alto risco de Lisboa, câmara de Gás do País.
Graças a deus que não fui rico, que não fui célebre, que não fui poderoso, que não fui saudável, que não fui feliz, que não fui bem sucedido, que não fui belo nem esbelto, que não fui inteligente, que não fui simpático e boa pessoa, que não fui escolhido nem eleito entre os eleitos, que não acreditaram em mim para nada de nada, que nunca me convidaram para nenhum cargo que dá notícias logo no semanário da esquina.
Graças a deus que não fui gordo, forte, musculoso, bem disposto, bem parecido, que não me deram chances, oportunidades, lugares, empregos, hipóteses de me realizar e de poder declarar isso em entrevista à revista «gente», deixando roídos de inveja os eventuais leitores de tais declarações de auto-embevecimento.
Graças a deus que o demónio foi sempre minha dilecta e predilecta companhia, que com ele dormi, comi e forniquei, que dele recebi o bafo-hálito, que tudo me saiu errado das mãos calosas, que nunca gostei de cães nem de tecnocratas, especialmente se ladrantes e sem ideologia, graças a deus que abominei o que os outros amam, que levei o dobro do tempo a adaptar-me à nova tecnologia do computador, sob os risos trocistas dos colegas,
Graças a deus que morri trinta vezes em cada ano, que me enrosquei com dores no sofá, que estive dias seguidos sem dali sair, sem mudar de roupa, sem comer, sem falar, só vivo porque urinava e ia à casa de banho, sem esperança, sem graça, nem vontade.
Graças a deus que nunca fiz chichi ou cocó nas calças.
Graças a deus mesmo se o tivesse feito. Graças a deus que nunca me saiu a sorte grande, que me querem tirar a casa, que me andam a arrancar a pele aos bocados, que nunca mais me dão a reforma, que tudo nesta sociedade de consumo me faz brotoeja e me obriga a coçar que nem um danado até fazer sangue.
Graças a deus que nunca tive automóvel, nem casa, nem soube inglês como o Mega Ferreira, nem música como o Vasco da Graça Moura, nem economia como o Perez Metelo, nem fui vedeta como o Letria, nem como o Herman, nem como a Maria Elisa, nem advogado do Champallimaud como o Proença de Carvalho, nem [---]
Graças a deus que nunca me fiz entender, que dizia alhos e me respondiam bugalhos, que toda a vida andei a ver navios no Alto de Santa Catarina, que fiz planos e saíram todos furados, que fiz projectos e nunca concretizei nenhuns, que morri de tédio com o trabalho que me coube em sorte, que girei como um pateta no meio de montes de papéis, de livros para ler e que graças a deus não li, de filmes que nunca consegui ver, graças a deus que não vi todos os filmes que queria ter visto e que vi aquelas dezenas de milhar que nunca quereria ter visto, graças a deus que me cansei de ver filmes e de os criticar.
Graças a deus que me olhavam de revés no Metro, que me puseram no ficheiro da PIDE, que os estalinistas, tão bons como os fascistas, me puseram também nos seus ficheiros implacáveis, graças a deus que, onde quer que eu queria trabalhar, havia sempre informações de pessoa non grata a estalinistas e fascistas ou vice-versa.
Graças a deus que os amigos falharam ajuda nos momentos mais críticos, que os meus maiores apoios na luta política e ecologista acabaram por morrer (como o Dr. Rocha Barbosa, uma das almas mais lindas que conheci) ou por abdicar do desperdício e da Entropias da luta. Graças a deus que não sou, que não fui sábio, génio, pianista, recordista, escritor de ficção de nomeada, ganhador de prémios.
Graças a deus que chumbei a todas nos exames, que levei nota de 0,5 em Armamento no exame de sargentos Milicianos de Vendas Novas, graças a deus que chumbei nos exames de promoção à escala seguinte da hierarquia, graças a Deus que nunca passei da cerpa torta e que andei dois anos para me passarem, na inefável «A Capital», da Categoria II para a III.
Graças a deus que me atardei, perplexo e pouco expedito, pouco perspicaz, frente a três livros sem ler nenhum, que me proibi, como um Sabat de falsos demónios, de comer os belos pratos e molhos e vinhos e gorduras que dão gosto à vida e colesterol no sangue.
Graças a deus, enfim, como diria a Zélia Sacai, que sou ateu.
Graças a deus que morri de inveja de todos os que tiveram sucesso. Do Emílio Rangel e do seu sucesso, mas que junta o útil ao agradável e fica agora um dos homens poderosos do Presidente, o homem forte de Balsemão.
Graças a Deus que não fui Balsemão, o mais poderoso português (depois) dos anos 90.
Graças a deus que não fui Deus Pinheiro, Capucho, Cravinho, Pimenta, enfim, a deputado europeu com ordenado de Nababo.
Graças a deus que não fui Nababo, nem Maxwell, nem Lindon Johnson, nem Ronald Reagan, nem Rockfeller, e outros poderosos donos da Trilateral. Graças a deus que não fui o dono da Sony, os monstros do Dinheiro, os Cracks do êxito, os eternos namorados da Sorte e do Sucesso, os abre-te sésamo de milhões de dólares, os inveterados da Bolsa, os sempre ganhadores, os eternamente felizes, os categorizadamente plenos, gordos, possantes, potentes, poderosos.
*
Graças a deus que moro em uma casa que me querem tirar, numa casa que é de Cancro porque está assente num veio de água subterrâneo, eventualmente estagnado e poluído com os metais pesados da [---]
Graças a deus que não fui nunca nada, porque se não tivesse sido tudo isso, esse rol de inicuidades, azares, frustrações, solidões, erros, perversões, desordens, diarreias, prisões de ventre, raros sonhos nas minhas noites, se não tivesse no meu ADN esses estigmas de todos os Hereges, de todos os interfaces, de todos os eternamente hesitantes, de todos os cépticos, os estigmas da Confusão e do Caos, não teria encontrado, hoje mesmo, 21 de Abril de 1992, o meu mestre guru e segundo Eu que é (olá, compincha) Etienne Guillé.
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21-4-1992
OBRIGADO POR TODAS AS CRISES
«Se não fosse o demónio, não teria encontrado Deus»
Graças a Deus que fui meticulosamente afastado de tudo onde me meti, por aqueles que temiam sempre a chegada de um intruso ao seu reino.
Graças a Deus que fui afastado da crítica de cinema pelos peritos em cinema que nunca me deixaram pôr o pé em ramo verde.
Da crítica de livros, pelos que desde cedo viram que um herege confesso não podia corresponder satisfatoriamente ao equilíbrio de forças que deve existir entre os vários lobbies da influência literária (desde cedo que se deram conta de eu ser um teimoso desestabilizador).
Graças a deus que também do meu Alentejo natal e das minhas raízes ancestrais eu fui afastado pelos que instalaram, nessa província, a sua coutada privativa, dos que, com armas e bagagens, instauraram a ditadura estalinista no Alentejo, praticamante em todas as câmaras municipais, não me deixando, nem como hipótese, regressar à terra que me foi berço. Graças a deus que logo puseram em acção a polícia privada do PCP, para saber dos meus perigosos antecedentes de anticomunista primário.
Graças a deus que fui afastado dos meios naturoterapêuticos pelos que viram, desde cedo, a minha nula disponibilidade para fazer das artes de curar um negócio, para merceeirar, negociar com a vida e a saúde das pessoas.
Graças a Deus que fui expulso a pontapé das minhas paixões, dos meus apegos, até das minhas amizades, às quais estaria hoje apegado sem remissão e sem conseguir ver mais nada (a paixão cega).
Graças a deus que não me quiseram na literatura, onde estaria a esta hora a ser discutido pelo prémio que devia ter e não tive, porque o maldito fascismo larvar não consentiu e eu não fiz outra coisa na vida senão tirocínio para herói.
Graças a Deus que não tive memória, pois estaria hoje em professor do Secundário, ou do Primário, ou quiçá do universitário, definitivamente instalado até à minha jubilosa jubilação.
Graças a Deus que me criaram condições inviáveis de inabitabilidade absoluta naquele abençoado jornal, naquela casa de cancros que é a redacção daquele jornal «A Capital», zona de alto risco de Lisboa, câmara de Gás do País.
Graças a deus que não fui rico, que não fui célebre, que não fui poderoso, que não fui saudável, que não fui feliz, que não fui bem sucedido, que não fui belo nem esbelto, que não fui inteligente, que não fui simpático e boa pessoa, que não fui escolhido nem eleito entre os eleitos, que não acreditaram em mim para nada de nada, que nunca me convidaram para nenhum cargo que dá notícias logo no semanário da esquina.
Graças a deus que não fui gordo, forte, musculoso, bem disposto, bem parecido, que não me deram chances, oportunidades, lugares, empregos, hipóteses de me realizar e de poder declarar isso em entrevista à revista «gente», deixando roídos de inveja os eventuais leitores de tais declarações de auto-embevecimento.
Graças a deus que o demónio foi sempre minha dilecta e predilecta companhia, que com ele dormi, comi e forniquei, que dele recebi o bafo-hálito, que tudo me saiu errado das mãos calosas, que nunca gostei de cães nem de tecnocratas, especialmente se ladrantes e sem ideologia, graças a deus que abominei o que os outros amam, que levei o dobro do tempo a adaptar-me à nova tecnologia do computador, sob os risos trocistas dos colegas,
Graças a deus que morri trinta vezes em cada ano, que me enrosquei com dores no sofá, que estive dias seguidos sem dali sair, sem mudar de roupa, sem comer, sem falar, só vivo porque urinava e ia à casa de banho, sem esperança, sem graça, nem vontade.
Graças a deus que nunca fiz chichi ou cocó nas calças.
Graças a deus mesmo se o tivesse feito. Graças a deus que nunca me saiu a sorte grande, que me querem tirar a casa, que me andam a arrancar a pele aos bocados, que nunca mais me dão a reforma, que tudo nesta sociedade de consumo me faz brotoeja e me obriga a coçar que nem um danado até fazer sangue.
Graças a deus que nunca tive automóvel, nem casa, nem soube inglês como o Mega Ferreira, nem música como o Vasco da Graça Moura, nem economia como o Perez Metelo, nem fui vedeta como o Letria, nem como o Herman, nem como a Maria Elisa, nem advogado do Champallimaud como o Proença de Carvalho, nem [---]
Graças a deus que nunca me fiz entender, que dizia alhos e me respondiam bugalhos, que toda a vida andei a ver navios no Alto de Santa Catarina, que fiz planos e saíram todos furados, que fiz projectos e nunca concretizei nenhuns, que morri de tédio com o trabalho que me coube em sorte, que girei como um pateta no meio de montes de papéis, de livros para ler e que graças a deus não li, de filmes que nunca consegui ver, graças a deus que não vi todos os filmes que queria ter visto e que vi aquelas dezenas de milhar que nunca quereria ter visto, graças a deus que me cansei de ver filmes e de os criticar.
Graças a deus que me olhavam de revés no Metro, que me puseram no ficheiro da PIDE, que os estalinistas, tão bons como os fascistas, me puseram também nos seus ficheiros implacáveis, graças a deus que, onde quer que eu queria trabalhar, havia sempre informações de pessoa non grata a estalinistas e fascistas ou vice-versa.
Graças a deus que os amigos falharam ajuda nos momentos mais críticos, que os meus maiores apoios na luta política e ecologista acabaram por morrer (como o Dr. Rocha Barbosa, uma das almas mais lindas que conheci) ou por abdicar do desperdício e da Entropias da luta. Graças a deus que não sou, que não fui sábio, génio, pianista, recordista, escritor de ficção de nomeada, ganhador de prémios.
Graças a deus que chumbei a todas nos exames, que levei nota de 0,5 em Armamento no exame de sargentos Milicianos de Vendas Novas, graças a deus que chumbei nos exames de promoção à escala seguinte da hierarquia, graças a Deus que nunca passei da cerpa torta e que andei dois anos para me passarem, na inefável «A Capital», da Categoria II para a III.
Graças a deus que me atardei, perplexo e pouco expedito, pouco perspicaz, frente a três livros sem ler nenhum, que me proibi, como um Sabat de falsos demónios, de comer os belos pratos e molhos e vinhos e gorduras que dão gosto à vida e colesterol no sangue.
Graças a deus, enfim, como diria a Zélia Sacai, que sou ateu.
Graças a deus que morri de inveja de todos os que tiveram sucesso. Do Emílio Rangel e do seu sucesso, mas que junta o útil ao agradável e fica agora um dos homens poderosos do Presidente, o homem forte de Balsemão.
Graças a Deus que não fui Balsemão, o mais poderoso português (depois) dos anos 90.
Graças a deus que não fui Deus Pinheiro, Capucho, Cravinho, Pimenta, enfim, a deputado europeu com ordenado de Nababo.
Graças a deus que não fui Nababo, nem Maxwell, nem Lindon Johnson, nem Ronald Reagan, nem Rockfeller, e outros poderosos donos da Trilateral. Graças a deus que não fui o dono da Sony, os monstros do Dinheiro, os Cracks do êxito, os eternos namorados da Sorte e do Sucesso, os abre-te sésamo de milhões de dólares, os inveterados da Bolsa, os sempre ganhadores, os eternamente felizes, os categorizadamente plenos, gordos, possantes, potentes, poderosos.
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Graças a deus que moro em uma casa que me querem tirar, numa casa que é de Cancro porque está assente num veio de água subterrâneo, eventualmente estagnado e poluído com os metais pesados da [---]
Graças a deus que não fui nunca nada, porque se não tivesse sido tudo isso, esse rol de inicuidades, azares, frustrações, solidões, erros, perversões, desordens, diarreias, prisões de ventre, raros sonhos nas minhas noites, se não tivesse no meu ADN esses estigmas de todos os Hereges, de todos os interfaces, de todos os eternamente hesitantes, de todos os cépticos, os estigmas da Confusão e do Caos, não teria encontrado, hoje mesmo, 21 de Abril de 1992, o meu mestre guru e segundo Eu que é (olá, compincha) Etienne Guillé.
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