UNIDEOLOGIA 1992
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UNIDEOLOGIA: UM TEXTO PRETENSAMENTE EXPLICATIVO
Lisboa, 28/Abril/1992 - J.C.M.: Vais talvez receber um texto pretensamente explicativo do que é unideologia: mas desde já com um aviso prévio. Em nenhuma circunstância seria para publicar, pelo menos sem que seja expurgado de muitos parágrafos.
Só um pedido teu me faria regressar a montes de papel que já prometera a mim próprio nunca mais desatar, pois atados já estavam e metidos em caixotes, a caminho não sei muito bem de onde. De parte nenhuma, provavelmente. É matéria, além do mais, bastante inflamável e, como verás, pouco ou nada tem a ver com os ecologismos que se têm consumido por aqui. O nome de «unideologia» que dei à Sofística que se exala de todo esse conjunto de factos e datas da abjecção contemporânea, foi circunstancial e o mais moderado que encontrei, pois sei que não gostas de nomenclaturas muito escatológicas. O tecnofascismo, por exemplo, costumava indispor o nosso bom amigo Prof. Gomes Guerreiro e, em geral, sempre fui admoestado pela minha linguagem desbragada. Já o Michel Bosquet, o nosso amigo André Gorz, chamou-lhe «ecofascismo» com todas as letras e como ele era um homem delicado! A propósito, que é feito de Bosquet? Sei tão pouco, mesmo daqueles poucos que não queria ignorar nem esquecer!
Definir Unideologia, portanto e como calculas, não é só ter que meter as mãos na merda e perder mais horas a pesquisar os arquivos que cautelosamente fui mantendo, apesar de terem ido toneladas de papel pró lixo. Não é só esse desgosto de voltar a tantas horas e energias desperdiçadas: é reconfirmar o que de perigoso tem a ecologia, quando vista por esse lado ...humano.
Por exemplo: o ciclo do terror tecno-industrial fecha-se quando os bancos e grandes multinacionais de Seguros se aperceberam de que vivemos em um mundo de permanente e crescente insegurança, em uma engrenagem de tecnoterror, em um Gulag sob a forma aparente de uma democracia; trataram então de explorar, por via transversa, esta Mina, este mercado inesgotável. (Creio que já lhe chamei o Mercado da Morte). Os «media» têm o grande papel de amplificadores do Medo, de manter esse estado de sítio psicológico que permite às Seguradoras prosperar. Quem se sente cada vez mais inseguro, tende a procurar refúgio em uma apólice - palavra-chave da Abjecção contemporânea. Quando o semanário «Tal & Qual» vai descobrir (coligindo opiniões de abalizados engenheiros...sempre prontos a estruturar pânico e pontes) que a Ponte sobre o Tejo tem graves fissuras e que, um dia destes, pode cair, está a criar um «estado de sítio» psicológico, desde logo agravado quando se sabe que o Governo decidiu somar ao tabuleiro rodoviário um outro tabuleiro para comboios... Quando as seguradoras descobriram que o pânico sísmico é um dos mais susceptíveis de encolher a população, não cessam de surgir, nos «media», especialmente nos media mais espertos, artigos sobre previsão, prevenção, descrição sísmica, etc.
Os cargueiros afundados servem dois (pelo menos) objectivos:
- lançar no fundo do oceano detritos tóxicos e perigosos que tanto embaraço causam em terra firme;
- a notícia de cargueiros desaparecidos vai intensificar a consciência do medo do consumidor, que se segura bem segurado quando tem mesmo que mandar despachos por mar...
Durante anos, a ponte de S. Luís (?) no Porto - cai, não cai - foi matéria de ameaça para milhares de utilizadores do comboio. Aí, tratava-se de motivar politicamente qualquer governo para empreender a construção de uma nova ponte que logo, na inauguração, se viu rodeada de incidentes «ameaçadores», com esse louco do engenheiro que se julga génio a presidir à encenação . Além de espevitar os dinheiros do Governo para a construção da nova ponte, a periclitante ponte antiga naturalmente estava e está de tão boa saúde como sempre esteve. Mas não faltarão engenheiros abalizados a confirmar o estado «periclitante» da dita...
Uma indústria subsidiária, além dos Seguros, que também ganha com o Medo é a dos Tranquilizantes e a dos Estupefacientes. Etc.
José Carlos: Aqui tens um exemplo, entre outros, de um tema de ecologia humana que, portanto, interfere (faz interface) com outros temas e que por isso é bem um subproduto da tal Unideologia. Mas são hipóteses que eu próprio tenho medo de pensar e é por isso que o teu desafio para escrever sobre unideologia - um texto didáctico... - me deixa em pânico. Cá está. Estamos num mundo onde há que ter medo de tudo - assim convém ao sistema, mas principalmente medo de dizer o interesse que o sistema tem em que a gente tenha medo... «O medo é o que o medo quer» - dizia Alexandre O'Neil. Já viste que grande confusão? Já viste o que era um repositório destas teses loucas? Para que servem, afinal, os internamentos psiquiátricos (vide Gulags) senão para internar os autores de teses assim?
Ideias há que a gente sente medo de pensar. A escrevê-las, um dia, só sob a forma de ficção, de contrário oferecem risco para quem as pense e escreva. Sequer sonhe. Por isso o texto que aí for sobre Unideologia não será didáctico nem publicável, porque no mínimo terá de ser polémico.
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UNIDEOLOGIA: UM TEXTO PRETENSAMENTE EXPLICATIVO
Lisboa, 28/Abril/1992 - J.C.M.: Vais talvez receber um texto pretensamente explicativo do que é unideologia: mas desde já com um aviso prévio. Em nenhuma circunstância seria para publicar, pelo menos sem que seja expurgado de muitos parágrafos.
Só um pedido teu me faria regressar a montes de papel que já prometera a mim próprio nunca mais desatar, pois atados já estavam e metidos em caixotes, a caminho não sei muito bem de onde. De parte nenhuma, provavelmente. É matéria, além do mais, bastante inflamável e, como verás, pouco ou nada tem a ver com os ecologismos que se têm consumido por aqui. O nome de «unideologia» que dei à Sofística que se exala de todo esse conjunto de factos e datas da abjecção contemporânea, foi circunstancial e o mais moderado que encontrei, pois sei que não gostas de nomenclaturas muito escatológicas. O tecnofascismo, por exemplo, costumava indispor o nosso bom amigo Prof. Gomes Guerreiro e, em geral, sempre fui admoestado pela minha linguagem desbragada. Já o Michel Bosquet, o nosso amigo André Gorz, chamou-lhe «ecofascismo» com todas as letras e como ele era um homem delicado! A propósito, que é feito de Bosquet? Sei tão pouco, mesmo daqueles poucos que não queria ignorar nem esquecer!
Definir Unideologia, portanto e como calculas, não é só ter que meter as mãos na merda e perder mais horas a pesquisar os arquivos que cautelosamente fui mantendo, apesar de terem ido toneladas de papel pró lixo. Não é só esse desgosto de voltar a tantas horas e energias desperdiçadas: é reconfirmar o que de perigoso tem a ecologia, quando vista por esse lado ...humano.
Por exemplo: o ciclo do terror tecno-industrial fecha-se quando os bancos e grandes multinacionais de Seguros se aperceberam de que vivemos em um mundo de permanente e crescente insegurança, em uma engrenagem de tecnoterror, em um Gulag sob a forma aparente de uma democracia; trataram então de explorar, por via transversa, esta Mina, este mercado inesgotável. (Creio que já lhe chamei o Mercado da Morte). Os «media» têm o grande papel de amplificadores do Medo, de manter esse estado de sítio psicológico que permite às Seguradoras prosperar. Quem se sente cada vez mais inseguro, tende a procurar refúgio em uma apólice - palavra-chave da Abjecção contemporânea. Quando o semanário «Tal & Qual» vai descobrir (coligindo opiniões de abalizados engenheiros...sempre prontos a estruturar pânico e pontes) que a Ponte sobre o Tejo tem graves fissuras e que, um dia destes, pode cair, está a criar um «estado de sítio» psicológico, desde logo agravado quando se sabe que o Governo decidiu somar ao tabuleiro rodoviário um outro tabuleiro para comboios... Quando as seguradoras descobriram que o pânico sísmico é um dos mais susceptíveis de encolher a população, não cessam de surgir, nos «media», especialmente nos media mais espertos, artigos sobre previsão, prevenção, descrição sísmica, etc.
Os cargueiros afundados servem dois (pelo menos) objectivos:
- lançar no fundo do oceano detritos tóxicos e perigosos que tanto embaraço causam em terra firme;
- a notícia de cargueiros desaparecidos vai intensificar a consciência do medo do consumidor, que se segura bem segurado quando tem mesmo que mandar despachos por mar...
Durante anos, a ponte de S. Luís (?) no Porto - cai, não cai - foi matéria de ameaça para milhares de utilizadores do comboio. Aí, tratava-se de motivar politicamente qualquer governo para empreender a construção de uma nova ponte que logo, na inauguração, se viu rodeada de incidentes «ameaçadores», com esse louco do engenheiro que se julga génio a presidir à encenação . Além de espevitar os dinheiros do Governo para a construção da nova ponte, a periclitante ponte antiga naturalmente estava e está de tão boa saúde como sempre esteve. Mas não faltarão engenheiros abalizados a confirmar o estado «periclitante» da dita...
Uma indústria subsidiária, além dos Seguros, que também ganha com o Medo é a dos Tranquilizantes e a dos Estupefacientes. Etc.
José Carlos: Aqui tens um exemplo, entre outros, de um tema de ecologia humana que, portanto, interfere (faz interface) com outros temas e que por isso é bem um subproduto da tal Unideologia. Mas são hipóteses que eu próprio tenho medo de pensar e é por isso que o teu desafio para escrever sobre unideologia - um texto didáctico... - me deixa em pânico. Cá está. Estamos num mundo onde há que ter medo de tudo - assim convém ao sistema, mas principalmente medo de dizer o interesse que o sistema tem em que a gente tenha medo... «O medo é o que o medo quer» - dizia Alexandre O'Neil. Já viste que grande confusão? Já viste o que era um repositório destas teses loucas? Para que servem, afinal, os internamentos psiquiátricos (vide Gulags) senão para internar os autores de teses assim?
Ideias há que a gente sente medo de pensar. A escrevê-las, um dia, só sob a forma de ficção, de contrário oferecem risco para quem as pense e escreva. Sequer sonhe. Por isso o texto que aí for sobre Unideologia não será didáctico nem publicável, porque no mínimo terá de ser polémico.
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