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2006-04-18

SOCIOLOGIA 1994

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METÁFORA ORGÂNICA NÃO SE USA EM SOCIOLOGIA

Cabo, 18/4/1994 - Pois é, C.F., eu compreendo que a minha linguagem seja chocante. Uma das razões que levou, por exemplo, o Prof. Gomes Guerreiro a cortar diplomaticamente comigo, foi a da linguagem desbragada. E por causa da linguagem muitos jornais («A Cidade de Tomar», por exemplo) me puseram de quarentena.
Mesmo em casa, particularmente em casa, as zangas são por «falar alto» ou truculento. Uma das fortes razões, curiosamente, que me levam à obsessão do suicídio, é esta incapacidade visceral de ser manso e de falas mansas. Odeio-me por isso mais do que por tudo já me odeio. E como não vejo cura, talvez só a cura radical do suicídio acabe por ser solução.
Quando me telefonaste, estava eu pensando nisso. No fundo do mais fundo da minha inseparável depressão. Aliás, levo os dias pensando nisso. Só o sono abre tréguas neste interminável aborrecimento que é hoje a (minha) vida.
Se queres de facto entrevistar-me, aproveita enquanto por cá ando, pois todos os dias rezo a Deus para que me leve depressa. Pois é, Carlos, eu compreendo que fiques chocado com uma linguagem chocante. Existiu, outrora, uma censura que se encarregava de cortar as imagens eventualmente chocantes dos filmes. Com a liberdade, essas imagens eventualmente chocantes podem continuar a chocar-nos, todos os dias, nas televisões. Sem falar das imagens de guerra e de desastres ambientais. Sem falar do napalm e da guerra bactereológica (a que chamam pomposamente sida), sem falar do tecnoterror nos seus mais variados aspectos ( e de que te mandei as centenas de recortes que havia em arquivo).
Claro, na linguagem é que está sempre o busílis, não no tecnoterror propriamente dito. Todos os crimes podem ser facilmente digeridos por requintadas sensibilidades, desde que traduzidos em requintada nomenclatura. Tudo é uma questão vocabular e saber usar as palavras que o sistema quer. Até se podem dizer coisas subversivas, desde que com palavras convencionais. A metáfora - talvez porque mais eloquente - incomoda mais, e se for a metáfora orgânica, incomoda mais ainda.
Por isso, quando uma senhora Susan Sontag publicou há anos um ensaio (de que deve haver recortes nos recortes que levaste) sobre «O Cancro como Metáfora», eu guardei mais essa notícia que me dava razão, sem qualquer euforia, como calculas. Se ter razão nestas matérias pudesse dar algum gozo, talvez me pudesse dar satisfação saber que, finalmente, um nome sonante da sociologia cultural também alinhava por essas ínvias vias do «verbo».
Várias vezes deixei escrito, também, de que a «terminologia trai a ideologia». Por isso te aconselho, Carlos, cautela no discurso que usas para públicos académicos e dentro da estrutura académica. Afinal, não tens que misturar o «livre pensador» com o «sociólogo em início de carreira».
E as mágoas que tiveres de ir coleccionando, como investigador mais interessado nos seres humanos do que nas categorias científicas, guarda-as para um livro de memórias, ou para contar aos teus netinhos. É o que estou fazendo contigo, meu netinho mais dilecto.
Só que não me arrependo da linguagem que utilizei. Antes pelo contrário: acho que não fui suficientemente violento para falar da violência institucionalizada, do terror estabelecido. É da violência que se fala quando se fala de ciência em geral e de ciência médica em particular. E de criminosos violentos os seus praticantes. Só há duas maneiras de falar disto: ou silenciando (a via mais frequente e aquela que te aconselho) ou falando por metáforas que espelhem a dimensão monstruosa da monstruosidade. Não será, evidentemente, a linguagem científica que vai traduzir toda a dimensão das monstruosidades engendradas pela ideologia científica. Isto é óbvio, não te parece? Tudo o resto é o discurso do poder e o discurso do Poder escorre sangue por todos os dedos.
Afonso Cautela
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