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*DEEP ECOLOGY - NOTE-BOOK OF HOPE - HIGH TIME *ECOLOGIA EM DIÁLOGO - DOSSIÊS DO SILÊNCIO - ALTERNATIVAS DE VIDA - ECOLOGIA HUMANA - ECO-ENERGIAS - NOTÍCIAS DA FRENTE ECOLÓGICA - DOCUMENTOS DO MEP

2006-02-01

DEEP ECOLOGY 1980

escalada-2-ie = ideia ecológica do ac - os dossiês do silêncio - *****

ADIVINHOS E PROFETAS (*)


2/2/1980 – Fora das bancadas, estrangeiros no seu próprio país, aos 8 milhões de portugueses só resta divertirem-se com o discurso da classe ideológica dominante e seus cronistas adjacentes.
Só lhes (nos) resta extrair desse discurso, o piadético e o contraditório, o arrogante e o mimético, o supersticioso, anedótico e charlatanesco. Acima de tudo, o ar de vanglória sobresuficiente, de predestinação iluminada, de vanguarda histórica que estes pais da Pátria ostentam quando a ordem do dia são as questões da próxima actualidade futura.
De facto, é na aposta prospectiva, no ensaio futurológico, na especulação para a próxima década, no que se promete ou ameaça, é na vidência e bruxaria que o discurso dominante revela, ao mesmo tempo, todas as suas taras de paranóia elitista, todos os sintomas de delirium tremens para uso e abuso colectivo.
Em suma: só os da classe (científica) dominante e seus agentes aplicados na Economia, na Política, no Futebol e na Medicina, se arrogam o direito de fazer prognósticos sobre as doenças e contradições dos outros. Nunca se auto-analisam e autoprognosticam as suas próprias mazelas.
Semanalmente, também, e para descontrair dos aumentos do custo de vida, convida-se o povo e prognosticar a sua fortuna pessoal, mediante apostas desportivas mútuas, sendo condição sine que non, para que haja totalistas, uns milhares de milhões de errantes. Tratando-se de batota, o sistema autoriza a previsão e dá-lhe foros de científica.
No campo da análise clínica, aspas-aspas: é corrente, é sangue nosso de cada dia, prognosticar amigdalites e apendicites onde nunca houve nem uma coisa nem outra. Mas a engrenagem das amigdalectomias a apendicectomias exige, exactamente, aqueles prognósticos. Cirurgia oblige.

A ARMA DO PROGNÓSTICO

Adivinhar o futuro, portanto, nesta culta sociedade comandada por cientistas experimentais, só a quem possua cartão de adivinho é dado e autorizado.
Tudo o mais vai para o cesto das iniquidades e da perigosa superstição.
O espaço dedicado nos jornais às antevisões dos astrólogos para 1980 não tem outro objectivo do que evidenciar, por contraste, esta bipolarização ideológica: de um lado, só charlatães, bruxos, astrólogos, miniprofetas e videntes imprevidentes, sem carteira profissional de 400 paus; do outro lado, os que estão autorizados (e diplomados) para fazer todo o género de adivinhações, profecias, prognósticos, ameaças, planos (de médio prazo) mediante estatísticas, curvas, gráficos, nomenclatura arrevesada, etc. que os 8 milhões de portugueses aceitarão exactamente e na medida em que não perceberem patavina.
De um lado, a superstição medieval e, mesmo, a mais degradante miséria intelectual (a fé dos profetas); do outro lado, os intelectuais da miséria, mas todos formados nas grandes universidades estrangeiras.
Quem está de fora da bancada - 8 milhões de portugueses - queda-se boquiaberto com a sobresuficiência da inteligência destas eminências: eles, sim, que foram fadados para os altos voos (de abutre) visionando os horizontes dos cenários futuros, como na sua linguagem teatral o tecnoprevisor gosta de dizer; nós, classe baixa, só nos resta a miséria da ignorância sem (cenários de) futuro, impotentes que somos para prognosticar além do totobola semanal que eles, previdentes, nos reservam.
Em suma: como o sistema reserva para si todas as armas (deixando o povo desarmado), a classe ideológica dominante usa (e abusa) da prospectiva como arma ideológica da sua dominação. Óbvio.
De psicologia prática e técnicas de marketing percebem eles: e sabem que o bruxo tem na mão o cliente, quanto mais negro e sombrio for o futuro que lhe prognosticar. Um futuro de crises petrolíferas (para açodar os investimentos no nuclear). Um futuro de cancros-mísseis. Um futuro de guerra e fim do mundo. Um futuro de terror sísmico-nuclear, semana um, semana outro. Um futuro armado até aos dentes, que sorriem sempre clorofila e flúor. Um futuro super-fascista de super-toneladas, de super-regeneradores alimentados a plutónio.
A classe ideológica dominante tem os seus funcionários universitariamente bem preparados para fabricar os futuros que à sua própria estratégia interessa impingir nas massas. Bolas de cristal, só os computadores do M. I. T., depois contestados pelos da Sibéria. Cartomâncias só as que pelas suas garras forem distribuídas sobre o pano (vermelho) das matanças sísmicas (e nem só).
Ao mesmo tempo que, pelos canais legitimamente eleitos, se prognostica à dextra, à sinistra e ao centro, expede-se um batalhão de cronistas para dizer todo o mal possível da profecia clássica. O povo que tome boa nota e ouça bem o bom advogado do povo: nada de embarcar no alarmismo.

AVISO AO POVO

Já quando foi o primeiro milénio, o mundo se encheu de profecias e alarmes falsos. Afinal, cá vamos a caminho do segundo (ano 2000), sãos e salvos, sem que as bruxarias medievais se tivessem concretizado.
Um verdadeiro habitante do século XX, verdadeiro século das luzes, no dealbar da gloriosa década de 80 (auge da escalada do plutónio), em que se promete a cura química e/ou radioactiva do cancro (provocado exactamente pela química e pela radioactividade), bem como a transplantação de órgãos sexuais e cérebros (dado o estado a que eles chegaram), um homem cibernético e frenético desta civilização astro-espacial não vai em boatos, crenças, suerstições. Não embarca em alarmismos.
E o cronista «dernier cri» toma precauções: não se confessando embora um crente dos tecno-previsores (nunca fiando) e sem «embarcar no alarmismo» do estilo Herman Khan, o que visa principalmente, nos seus articulados, é depreciar a corrente profética. A que chamará, então, «pessimista», «alarmista», «catastrofista».
Árbitro na grande questão de saber se os amanhãs vão cantar ou chorar, se a burguesia vai perder e o proletariado ganhar, pairando acima da polémica entre «pessimistas» e «optimistas», um bom escriba ao serviço da classe dominante deve ser «neutral» e «objectivo», não tomar partido.
Mete então tudo no mesmo saco: os do Plano, os maltusianos da mentira demográfica, os bruxos e astrólogos, os profetas e visionários, os ecologistas e vates. Para esse articulista, Fernando Pessoa e William Blake estariam ao mesmo nível de Herman Khan e dos Planos Quinquenais. Ninguém poderia «ler no futuro», porque o «futuro a Deus pertence». Ao infeliz do século XX só restaria esborrachar o nariz no muro opaco do imediato.
Panglosses de todas as cores rotulam assim de «pessimista» toda e qualquer antecipação que não quadre aos interesses do negócio da classe ideológica dominante.
Os grandes profetas da tradição, de Buda a Jesus, passando por João, seriam apenas uns místicos bem intencionados para o seu tempo, cujos símbolos cabalísticos alguns piedosos fiéis, hoje, tentariam decifrar, mas sem êxito (claro). A estes fiéis aplica-se, então, além de «pessimista» todo o rótulo que signifique indigência intelectual.
Mas a gente percebe o jogo.
Pondo os profetas e ecologistas ao nível da astrologia barata, só ficaria ao povo um caminho: acreditar nas previsões dos bruxos diplomados pelo ensino superior curto.
O cronista adestrado sabe - neutral que se farta - que é preciso retirar crédito aos ecoprofetas, para que entre, de roldão, toda a pacotilha dos adivinhos de pataco: os tecnofuturólogos.
Acreditar, sim, mas nos «fins do mundo» que a eles lhes apraz pintar, para que, aterrorizada, a humanidade se renda melhor às exigências deles, enquanto cobaia das suas (deles) experiências.

ESCALADA DAS CONTRADIÇÕES, A ÚNICA CATÁSTROFE

Se bem que o ecologismo tenha sido o flanco por onde a sociedade industrial sofreu maiores golpes, e por mais que se tenha alargado o alcance da crítica ecológica, é evidente que o sistema ultrapassa uma análise meramente ambiental.
O que está fundamentalmente em causa, para ecologistas e não ecologistas, são as contradições da sociedade industrial, contradições que a estrangulam, asfixiam e empurram para uma situação que só pode classificar-se de catastrófica.
A um observador que examine, com independência e sem preconceitos,a marcha da tecnoestrutura, a sua escalada de destruição, as suas insanáveis tensões, a sua cancerosa autocorrosão, não é necessário invocar argumentos de ordem ecológica. Uma análise meramente económica basta para, sem eufemismos nem ilusões, mostrar que esta «sociedade está condenada». E que as alternativas «revolucionárias» que porventura a história assinalou, ou acabaram recuperadas pelo infernal sistema (o que significa não terem sido «revolucionárias» até ao fim), ou - caso da Albânia - têm tão pouca força no contexto mundial, que dificilmente se poderá acreditar que se tornem um rastilho suficientemente forte para evitar que a sociedade da catástrofe mergulhe todo o planeta no abismo final.
E, em tal caso, as alternativas «revolucionárias» porventura existentes, iriam igualmente arrastadas.
Se a revolução islâmica abre uma brecha na sociedade industrial, que tem mais a ver com uma renascença religiosa do que com uma crítica ecológica aos crimes, abusos e contradições dessa sociedade, ela própria (revolução islâmica) se apoia, paradoxalmente, num dos cancros mais poderosos da sociedade ocidental e um dos sintomas mais infalíveis da sua incurável doença: o petróleo.
Esta contradição - uma revolução que pretende ser alternativa à sociedade industrial apoiando-se num dos cancros dessa mesma sociedade industrial - nada indica que irá ser ultrapassada.
A revolução islâmica está longe de ficar vitoriosa.

ACTUALIDADE DOS PROFETAS, ESSE MOMENTO HISTÓRICO SINGULAR

A dúvida dos profetas sobre a imortalidade da história e da civilização, é um momento singular na história europeia da evolução humana.
Segundo os peritos, até que a pregação dos grandes profetas bíblicos se fizesse ouvir, todos os homens estavam seguros de que a Terra é imutável e o mundo continuará sendo eternamente. Ninguém, no Ocidente, duvidava de que a civilização continuaria.
No Extremo Oriente, porém, havia séculos que as religiões do movimento, a dialéctica do «yin-yang» (na nomenclatura chinesa), a sabedoria do «Tao», se tinha espalhado e criado raízes na consciência colectiva.
No Ocidente, porém, quando as vozes de Isaías, Daniel, Jeremias, João, Mateus, Cristo se fizeram ouvir, algo de «novo» surgia sobre este lado da Terra.
Tremia a força dos poderosos e a violência deixava de ser o único sentido para a História. O Reino de Deus anunciado pressupunha uma reviravolta qualitativa, a que hoje talvez se chamasse revolução, reviravolta que fazia passar os acontecimentos da Terra a reflexos da realidade de Deus.
Para os profetas, «os imperadores são simples instrumentos nas mãos de Deus» e os acontecimentos, simples reflexos ou ecos da Sua Vontade.
Para os profetas, o lugar do homem está na História e a sua preocupação central é o que sucede nela. Tanto a Natureza como a História estão sujeitas ao domínio de Deus. Assim como a palavra é o instrumento para a sua revelação, a história é o instrumento para a sua acção e o material para o êxito do homem.
Contra a idolatria e o monopólio do Poder e dos Impérios, surge, com os profetas, a voz da alma, dos valores subtis ou imponderáveis, a nobreza do imperativo moral pairando acima dos desejos e domínios materiais.
Também foi o profeta o primeiro «homem universal», o primeiro que concebeu pela primeira vez, no Ocidente, a unidade de todos os homens.

DESPERTAR DO PESADELO

É como se tudo, incluindo a crise ecológica, incluindo o clima de apocalipse que vivemos, nos empurrasse para uma única saída. E como se o fechar de todas as portas, de todas as saídas, de todas as soluções - nota dominante do nosso tempo de absurdo -nos conduzisse para a via única e estreita da fé.
Dizer-se que um ecologista cultiva o desespero, o niilismo, o desencanto, a desmoralização, é uma meia verdade, meia mentira. A lucidez ecologista, como todas as posições lúcidas deste tempo de mentiras e ilusões, pesadelos e fantasmas, aporta necessariamente a um limiar de dúvida. De angústia. De interrogação. Mas é tudo isso que torna inevitável - e com uma força positiva idêntica ao impacto negativo - o termo dialéctico complementar. Vivermos uma época infindável de trevas e caos, tem de significar, forçosamente - e tão necessariamente como uma lei física - o advento da grande fé, da grande ordem e da grande Iluminação. O tempo está perto.
E é por esta inevitabilidade física que eu penso o tempo ter chegado com as vozes contemporâneas da mais antiga tradição primordial viva: as vozes do budismo. Porque uma resposta às mil perguntas e inquietações tinha de surgir. E não vejo outra que tanto se assemelhe à única resposta, como a que nos trazem os irmãos do Dharma budista tibetano
Tudo - gurus incluídos- o que cava mais fundo o desespero dos homens, e a sua crença ridícula e irrisória na matéria e no fim do mundo material, é o que se pode considerar as «forças do mal».
Muitos «profetas», hoje, estão ao serviço das forças do mal, porque se servem da «fé» para cavar mais fundo o desespero dos homens. É maquiavélico, mas é assim: e corresponde ao supremo paroxismo de cinismo e contradição e engano e mentira, atingido pela nossa época. Por isso a fé é o maior tesouro. Por ela eu sei como tudo o que não for o Dharma, é irrisório e passageiro. Que as maiores calamidades são grãos de areia ou gotas de água sem importância. Que, ao fim e ao cabo, a maior e única desgraça é perder a fé, ou não a ter ainda reconquistado. Quer dizer, continuar dormindo. Não ter ainda despertado.
Despertar é a grande riqueza, a grande força, a grande alegria, e frente ao fogo da fé todo o rancor, todo o desespero, toda a indecisão, todo o ódio, toda a ignorância, toda a inveja, toda a ambição, se fundem. Tudo se hierarquiza em função do fundamental. O relativo assume o seu justo lugar de relativo face ao absoluto. E nós percebemos que os mil e um pontos da mandala, são afinal um único ponto: o centro da mandala. O diverso já não nos assusta, quando sentimos estar no centro do Universo. Quer dizer: quando o nosso coração bate ao ritmo e no comprimento de onda do coração de Buda, a maior Energia, a Idade sem Limite, o Matulasém do Espírito, entendendo-se espírito por isso que não morre, que não perece, que não se desvia, que não se dissipa, que não morre. Frente à certeza de que «não se pode morrer», como se poderá acreditar em suicídio? E, no entanto, só indo até à falsa saída do suicídio, sabendo que não é saída, se chega no nosso tempo a um limiar de entrada possível na fé. Quando se desespera de tudo, surge a fé.
E só os demónios estão interessados em nos tirar a fé.
A irreversibilidade é um dos atributos do Ser Infinito e Fundamental. Nenhuma força humana, telúrica ou cósmica o desgasta ou erosiona. Não volta atrás, não sofre entropia. Cresce sempre: a isso se chama a força do espírito. Não se queima, nem quebra nem dilui ou dissolve. Tem um poder acumulativo crescente e constante e eterno. A eternidade é mesmo isso: o sinónimo da irreversibilidade.
Mas com esta irreversibilidade, há uma expansão do Dharma sobre o carma, expansão também imparável e irreversível, pelo que a salvação e libertação de todos os homens é inevitável: apenas pode levar mais ou menos tempo, mais ou menos sofrimento.
Aqui desenha-se uma das ambiguidades mais vibrantes do Conhecimento último a Primeiro: por um lado, saber que tudo irá dar, sempre, à inevitável e fatal libertação, parece um convite à Indiferença. Mas, por outro lado, saber que ela é fatal, pode robustecer um certo voluntarismo: porque, com essa certeza fatatística, se robustece a fé. A fé na Ordem e de que tudo tem um sentido preciso orientado para um preciso e precioso fim ou objectivo.
E a ambiguidade das zonas mais subtis da Prática: fazer ou não fazer é indiferente. Mas não é inteiramente indiferente.
Por isso, não é indiferente que um procedimento se faça no sentido de acrescentar mais ser ao ser ou no sentido inverso da entropia e da morte perpetuada. Se é verdade que tudo está certo e que tudo acontece quando e como e porque tem de acontecer, é verdade também que está sempre presente a oportunidade de acrescentar ao grande ser mais um pouco do nosso ser, quer dizer, da nossa vontade exercida em função da Grande Vontade e, portanto, apesar do ego voluntarista ou voluntarioso que a limitaria. A vontade junto da Vontade Universal não «engorda» o ego mas ultrapassa-o.
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(*)Este texto de Afonso Cautela foi publicado no jornal « A Capital» (Crónica do Planeta Terra), 2/2/1980
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DEEP ECOLOGY 1974

74-02-02-ie> = ideia ecológica - quarta-feira, 4 de Dezembro de 2002-scan

A IMAGINAÇÃO É UMA ARMA(*)

(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no livro edição do autor, «Contributo à Revolução Ecológica», Paço de Arcos, 1976

2/Fevereiro/1974 - Gurus que "dão o conhecimento" e mestres indianos que ensinam, para exportação, as técnicas de meditação transcendental, estão na moda. Ao mesmo tempo que, no Ocidente, os chacais do petróleo desencadearam a grande ofensiva para estrangular de vez os povos e, se possível, oprimi-los ainda mais, o refúgio na vida interior, a escolha de uma via mística apresenta-se como alternativa individual para as situações intoleráveis, para os becos sem saída cada vez mais apertados para onde o sistema atira as pessoas até que apodreçam.
Em que medida, porém, a vida interior, a meditação, o ioga e o zen, podem ser técnicas ao serviço do homem para o livrar de servidões, inquisições, opressões, explorações e ditaduras que sobre ele se tem abatido como praga através dos séculos?
À primeira vista o esoterismo significa uma fuga à realidade e, portanto, do ponto de vista social e político, uma covardia, se não mesmo uma traição. Mas o que esta nota procura demonstrar é que apenas um certo misticismo é mistificante e alienante da sórdida realidade. Apenas uma certa embriaguês romântico-celestial é um adormecimento da consciência, em vez de estados dela cada vez mais despertos e lúcidos e conscientes.
O conceito que no Ocidente se espalhou de vida interior, por culpa dos místicos cristãos, é de fuga, alienação e obscurantismo, mas a "terceira visão" dos orientais, o ioga e o satori são formas vigilantes e hiperdespertas de estar atento à realidade, de manter a unidade perante um mundo desintegrado e em processo acelerado de apodrecimento, porque formas de estar em harmonia com as leis do Universo.
Não é nos místicos cristãos que a mística oriental encontra os seus similares do Ocidente, mas em movimentos que, como o surrealismo, a alquimia, a psicanálise e a arte fantástica têm por finalidade o desenvolvimento da imaginação e da capacidade inventiva dos indivíduos.

"NECESSIDADE MESTRA DE ENGENHO"

Parafraseando aquele mote da sabedoria popular que diz a "necessidade mestra de engenho", compreendemos então o papel de sobrevivência, profundamente realista, que a imaginação e as técnicas de vida interior podem ter em tempos difíceis de praga ou penúria, de epidemia ou catástrofe, de medo ou angústia, como são os de hoje e como têm vindo a ser mais ou menos os desta civilização de morte, comandada por chacais ensandecidos, embriagados, intoxicados, dormentes de poder ou de uísque ou de morfina.

A imaginação é uma arma.
A imaginação é uma força.
A imaginação é o que fica ao homem quando o espoliam de tudo.
A imaginação conquistará o poder.
Por isso imaginar formas, alternativas de sobrevivência, é tarefa urgente. A mais urgente.
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(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no livro edição do autor, «Contributo à Revolução Ecológica», Paço de Arcos, 1976
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DEEP ECOLOGY 1972

alqueva-anexos> domingo, 1 de Dezembro de 2002-scan

GRANDES BARRAGENS E OUTRAS MEGALOMANIAS (*)

(*) Este texto , de que não consegui identificar o autor, saiu publicado no semanário «Vida Mundial», Lisboa, 2 de Fevereiro de 1972

[2 de Fevereiro de 1972] - Fundir a calota polar, unir os continentes, inverter os cursos dos rios, criar mares inteiros - todos estes projectos são tecnicamente possíveis. Mas são, também, operações que podem alterar o equilíbrio global do planeta. Os grandes trabalhos em escala. planetária - e já se fala numa nova especialidade, a engenharia planetária - podem ser, hoje, separados em três categorias:
1. manipulação das águas (barragens, inversão dos cursos dos rios, lagos artificiais);
2 .projectos nucleares de movimentação de terras;
3. remodelação das regiões polares.

1. manipulação das águas (barragens, inversão dos cursos dos rios, lagos artificiais);
Foi a construção da barragem de Assuão que levantou, pela primeira vez, as mais graves questões à volta da engenharia planetária. Destinada a mobilizar o esforço de todo o povo egípcio, essa represa iria permitir-lhe, também, abrir caminhos no sentido da modernização e desenvolvimento.. Assuão é, até hoje, o mais espectacular trabalho já levado a efeito no planeta; antes mesmo da sua entrada definitiva em serviço, em Julho de 1970, já se colocava em dúvida se os efeitos negativos - não previstos no projecto - não torrariam a construção da barragem mais arriscada do que vantajosa. Só então se deu conta de que, se a barragem ia fazer com que surgissem 800 mil hectares de novas terras cultiváveis, em compensação as perdas por evaporação do lago artificial, as modificações climáticas provocadas por enormes massas de vapor de água e as infiltrações incontroláveis punham em risco tornar essa gigantesca realização menos rentável que a pequena barragem já anteriormente existente...
O professor Roubaud (presidente da Comissão das Minas da Organização de Energia Atómica da França, autor do livro "É possível prever as Catástrofes Naturais?") deu indicações precisas a respeito da barragem de Assuão: - o enorme peso representado pelos milhões de metros cúbicos de água retidos por uma grande barragem pode provocar, sobre os leitos sedimentares e os leitos inferiores, fenómenos de abatimento e de ruptura de Elasticidade. E, a um máximo de dois quilómetros de profundidade, o suficiente para provocar abalos sísmicos.
A história da construção das grandes barragens tem sido geralmente marcada por sismos, como os de Cariba, na Rodésia, região africana até então virgem de qualquer acontecimento sísmico. A construção do maior lago artificial do mundo (175 biliões de metros cúbicos) começou em 1960 e por várias vezes a terra tem tremido em Cariba... De um modo geral, parece que o reequilíbrio da crosta terrestre sob o peso das águas de uma barragem pode demorar muitas gerações; nos Estados Unidos, os tremores de terra provocados pela barragem do lago Mead têm sido frequentes desde 1936.
Os efeitos perigosos das grandes barragens não se limitam à geologia. Há também a alteração, em grande escala, do equilíbrio biológico. O desaparecimento das sardinhas no Mediterrâneo é consequência directa de Assuão. Esse mar, por si só pobre em substâncias orgânicas, recebia enormes quantidades de limo bastante rico despejado pelo Nilo, que em seguida o espalhava. As suas sardinhas dele se alimentavam. Antes de as águas serem retidas pelas comportas, em 1964, os pescadores egípcios, conseguiam capturar 18 mil toneladas de sardinha por ano. Actualmente, a quota total não chega a 500 toneladas, isto é, 36 vezes menos.

Apesar dos resultados negativos, os grandes países, sobretudo os Estados Unidos e a União Soviética, continuam a estudar e a executar projectos cada vez mais gigantescos.
A U.R.S.S., por exemplo, prepara-se para um remodelamento geográfico colossal da Sibéria ocidental e central: uma completa rede hidrográfica artificial, compreendendo a construção de muitas dezenas de barragens, de centenas de canais e da inversão de cursos de rios, devendo unificar as bacias do mar de Aral, do lago Baical e do mar Cáspio - este, na verdade, ultimamente bastante ameaçado. Após um período de entusiasmo, os soviéticos resolveram adiar a execução do projecto, esperando a avaliação total de todas as consequências geológicas, climáticas e biológicas.
Os norte-americanos não ficam para trás. O Hudson Institute continua a trabalhar num projecto para a construção de uma grande barragem na Amazónia: um mar interior de 200 mil quilómetros, acompanhado por um conjunto de lagos artificiais (alguns dos quais atingiriam 350 Km de extensão), permitiria fornecer energia eléctrica à maior parte da América Latina. As consequências de um projecto desse porte são ainda de difícil previsão, mas é possível calcular que os ciclos naturais da região seriam totalmente desequilibrados.
A manipulação da água em escala planetária traria consequências imediatas e visíveis, pelo na parte de acomodação de camadas continentais e na mudança climática brusca, consequência lógica da evaporação.

2.PROJECTOS NUCLEARES DE MOVIMENTAÇÃO DE TERRAS

De resultantes quase tão graves como a manipulação das águas são os trabalhos de subsolo efectuados sob a nova técnica das explosões nucleares. Trata-se de "arrumar" enormes cavidades subterrâneas, onde seriam depositados resíduos ou carburantes; também na superfície as obras abertas a explosões atómicas multiplicar-se-iam quando fosse necessário rasgar canais através de montanhas ou preparar o terreno para a implantação de portos.
A agência americana de energia atómica prepara há anos o seu programa experimental "Plowshare"; trata-se de abrir uma cavidade subterrânea de 30 mil metros cúbicos e fazer com que aí se aqueça o vapor de água. A experiência foi um fracasso, produziram-se fenómenos inesperados de condensação e de corrosão. Os resultados mais aparentes das explosões de Sedan, Hardhat se e Dany Boy foram acidentes em que a violência da radioactividade se tornou incontrolável. Se a radioactividade residual começa a ser controlada, isso não quer dizer que estará eliminada a possibilidade de acidentes.
Um projecto que previa a preparação de um terreno para se construir um porto na Austrália teve de ser abandonado, em 71, porque não foi possível esclarecer os efeitos sobre o ambiente (o projecto incluía uma explosão atómica). Sem contar a abertura de minas e de jazidas de petróleo que não pode ser feita pelos meios tradicionais, a explosão atómica deverá ser empregada também na abertura do novo canal do Panamá; a força explosiva necessária seria de cerca de 165 megatoneladas, repartidas em secções.
O cientista Gordon Taylor estuda longamente as implicações gerais do projecto:
"Os especialistas prevêem uma fonte de nuvens radioactivas estendendo-se no sentido Leste-Oeste. A radioactividade daí desprendida seria bastante grande, uma quantidade realmente imprevisível. As regiões ameaçadas incluem a Costa Rica, o Panamá, o norte da Colômbia e o noroeste da Venezuela.. Outros especialistas lembram que os tremores de terra e ondas de choque se estenderão por centenas de quilómetros, enquanto o sistema de correntes, de ventos e a regularidade do Gulf Stream podem ser afectados".

3. REMODELAÇÃO DAS REGIÕES POLARES

A conquista das terras polares para a agricultura é uma grande motivação para soviéticos e americanos. Mas a geografia dos polos condiciona a geografia de todo o planeta.
O actual projecto russo neste campo consiste em estabelecer uma barragem ao longo dos 75 quilómetros do estreito de Bhering antes de bombardear as águas do Árctico; os gelos do Árctico derreter-se-iam em três anos e as terras geladas do Canadá e do norte da Rússia transformar-se-iam em extensas pastagens.
Por outro lado, surgiriam alterações climáticas em todo o hemisfério do Norte, o nível dos oceanos elevar-se-ia em todo o mundo, inundando um grande número de idades, nomeadamente na Europa Ocidental
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(*) Este texto , de que não consegui identificar o autor, saiu publicado no semanário «Vida Mundial», Lisboa, 2 de Fevereiro de 1972
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IDEOLOGIA 1980

escalada-2-ie = ideia ecológica do ac - os dossiês do silêncio

ADIVINHOS E PROFETAS (*)


2/2/1980 – Fora das bancadas, estrangeiros no seu próprio país, aos 8 milhões de portugueses só resta divertirem-se com o discurso da classe ideológica dominante e seus cronistas adjacentes.
Só lhes (nos) resta extrair desse discurso, o piadético e o contraditório, o arrogante e o mimético, o supersticioso, anedótico e charlatanesco. Acima de tudo, o ar de vanglória sobresuficiente, de predestinação iluminada, de vanguarda histórica que estes pais da Pátria ostentam quando a ordem do dia são as questões da próxima actualidade futura.
De facto, é na aposta prospectiva, no ensaio futurológico, na especulação para a próxima década, no que se promete ou ameaça, é na vidência e bruxaria que o discurso dominante revela, ao mesmo tempo, todas as suas taras de paranóia elitista, todos os sintomas de delirium tremens para uso e abuso colectivo.
Em suma: só os da classe (científica) dominante e seus agentes aplicados na Economia, na Política, no Futebol e na Medicina, se arrogam o direito de fazer prognósticos sobre as doenças e contradições dos outros. Nunca se auto-analisam e autoprognosticam as suas próprias mazelas.
Semanalmente, também, e para descontrair dos aumentos do custo de vida, convida-se o povo e prognosticar a sua fortuna pessoal, mediante apostas desportivas mútuas, sendo condição sine que non, para que haja totalistas, uns milhares de milhões de errantes. Tratando-se de batota, o sistema autoriza a previsão e dá-lhe foros de científica.
No campo da análise clínica, aspas-aspas: é corrente, é sangue nosso de cada dia, prognosticar amigdalites e apendicites onde nunca houve nem uma coisa nem outra. Mas a engrenagem das amigdalectomias a apendicectomias exige, exactamente, aqueles prognósticos. Cirurgia oblige.

A ARMA DO PROGNÓSTICO

Adivinhar o futuro, portanto, nesta culta sociedade comandada por cientistas experimentais, só a quem possua cartão de adivinho é dado e autorizado.
Tudo o mais vai para o cesto das iniquidades e da perigosa superstição.
O espaço dedicado nos jornais às antevisões dos astrólogos para 1980 não tem outro objectivo do que evidenciar, por contraste, esta bipolarização ideológica: de um lado, só charlatães, bruxos, astrólogos, miniprofetas e videntes imprevidentes, sem carteira profissional de 400 paus; do outro lado, os que estão autorizados (e diplomados) para fazer todo o género de adivinhações, profecias, prognósticos, ameaças, planos (de médio prazo) mediante estatísticas, curvas, gráficos, nomenclatura arrevesada, etc. que os 8 milhões de portugueses aceitarão exactamente e na medida em que não perceberem patavina.
De um lado, a superstição medieval e, mesmo, a mais degradante miséria intelectual (a fé dos profetas); do outro lado, os intelectuais da miséria, mas todos formados nas grandes universidades estrangeiras.
Quem está de fora da bancada - 8 milhões de portugueses - queda-se boquiaberto com a sobresuficiência da inteligência destas eminências: eles, sim, que foram fadados para os altos voos (de abutre) visionando os horizontes dos cenários futuros, como na sua linguagem teatral o tecnoprevisor gosta de dizer; nós, classe baixa, só nos resta a miséria da ignorância sem (cenários de) futuro, impotentes que somos para prognosticar além do totobola semanal que eles, previdentes, nos reservam.
Em suma: como o sistema reserva para si todas as armas (deixando o povo desarmado), a classe ideológica dominante usa (e abusa) da prospectiva como arma ideológica da sua dominação. Óbvio.
De psicologia prática e técnicas de marketing percebem eles: e sabem que o bruxo tem na mão o cliente, quanto mais negro e sombrio for o futuro que lhe prognosticar. Um futuro de crises petrolíferas (para açodar os investimentos no nuclear). Um futuro de cancros-mísseis. Um futuro de guerra e fim do mundo. Um futuro de terror sísmico-nuclear, semana um, semana outro. Um futuro armado até aos dentes, que sorriem sempre clorofila e flúor. Um futuro super-fascista de super-toneladas, de super-regeneradores alimentados a plutónio.
A classe ideológica dominante tem os seus funcionários universitariamente bem preparados para fabricar os futuros que à sua própria estratégia interessa impingir nas massas. Bolas de cristal, só os computadores do M. I. T., depois contestados pelos da Sibéria. Cartomâncias só as que pelas suas garras forem distribuídas sobre o pano (vermelho) das matanças sísmicas (e nem só).
Ao mesmo tempo que, pelos canais legitimamente eleitos, se prognostica à dextra, à sinistra e ao centro, expede-se um batalhão de cronistas para dizer todo o mal possível da profecia clássica. O povo que tome boa nota e ouça bem o bom advogado do povo: nada de embarcar no alarmismo.

AVISO AO POVO

Já quando foi o primeiro milénio, o mundo se encheu de profecias e alarmes falsos. Afinal, cá vamos a caminho do segundo (ano 2000), sãos e salvos, sem que as bruxarias medievais se tivessem concretizado.
Um verdadeiro habitante do século XX, verdadeiro século das luzes, no dealbar da gloriosa década de 80 (auge da escalada do plutónio), em que se promete a cura química e/ou radioactiva do cancro (provocado exactamente pela química e pela radioactividade), bem como a transplantação de órgãos sexuais e cérebros (dado o estado a que eles chegaram), um homem cibernético e frenético desta civilização astro-espacial não vai em boatos, crenças, suerstições. Não embarca em alarmismos.
E o cronista «dernier cri» toma precauções: não se confessando embora um crente dos tecno-previsores (nunca fiando) e sem «embarcar no alarmismo» do estilo Herman Khan, o que visa principalmente, nos seus articulados, é depreciar a corrente profética. A que chamará, então, «pessimista», «alarmista», «catastrofista».
Árbitro na grande questão de saber se os amanhãs vão cantar ou chorar, se a burguesia vai perder e o proletariado ganhar, pairando acima da polémica entre «pessimistas» e «optimistas», um bom escriba ao serviço da classe dominante deve ser «neutral» e «objectivo», não tomar partido.
Mete então tudo no mesmo saco: os do Plano, os maltusianos da mentira demográfica, os bruxos e astrólogos, os profetas e visionários, os ecologistas e vates. Para esse articulista, Fernando Pessoa e William Blake estariam ao mesmo nível de Herman Khan e dos Planos Quinquenais. Ninguém poderia «ler no futuro», porque o «futuro a Deus pertence». Ao infeliz do século XX só restaria esborrachar o nariz no muro opaco do imediato.
Panglosses de todas as cores rotulam assim de «pessimista» toda e qualquer antecipação que não quadre aos interesses do negócio da classe ideológica dominante.
Os grandes profetas da tradição, de Buda a Jesus, passando por João, seriam apenas uns místicos bem intencionados para o seu tempo, cujos símbolos cabalísticos alguns piedosos fiéis, hoje, tentariam decifrar, mas sem êxito (claro). A estes fiéis aplica-se, então, além de «pessimista» todo o rótulo que signifique indigência intelectual.
Mas a gente percebe o jogo.
Pondo os profetas e ecologistas ao nível da astrologia barata, só ficaria ao povo um caminho: acreditar nas previsões dos bruxos diplomados pelo ensino superior curto.
O cronista adestrado sabe - neutral que se farta - que é preciso retirar crédito aos ecoprofetas, para que entre, de roldão, toda a pacotilha dos adivinhos de pataco: os tecnofuturólogos.
Acreditar, sim, mas nos «fins do mundo» que a eles lhes apraz pintar, para que, aterrorizada, a humanidade se renda melhor às exigências deles, enquanto cobaia das suas (deles) experiências.

ESCALADA DAS CONTRADIÇÕES, A ÚNICA CATÁSTROFE

Se bem que o ecologismo tenha sido o flanco por onde a sociedade industrial sofreu maiores golpes, e por mais que se tenha alargado o alcance da crítica ecológica, é evidente que o sistema ultrapassa uma análise meramente ambiental.
O que está fundamentalmente em causa, para ecologistas e não ecologistas, são as contradições da sociedade industrial, contradições que a estrangulam, asfixiam e empurram para uma situação que só pode classificar-se de catastrófica.
A um observador que examine, com independência e sem preconceitos,a marcha da tecnoestrutura, a sua escalada de destruição, as suas insanáveis tensões, a sua cancerosa autocorrosão, não é necessário invocar argumentos de ordem ecológica. Uma análise meramente económica basta para, sem eufemismos nem ilusões, mostrar que esta «sociedade está condenada». E que as alternativas «revolucionárias» que porventura a história assinalou, ou acabaram recuperadas pelo infernal sistema (o que significa não terem sido «revolucionárias» até ao fim), ou - caso da Albânia - têm tão pouca força no contexto mundial, que dificilmente se poderá acreditar que se tornem um rastilho suficientemente forte para evitar que a sociedade da catástrofe mergulhe todo o planeta no abismo final.
E, em tal caso, as alternativas «revolucionárias» porventura existentes, iriam igualmente arrastadas.
Se a revolução islâmica abre uma brecha na sociedade industrial, que tem mais a ver com uma renascença religiosa do que com uma crítica ecológica aos crimes, abusos e contradições dessa sociedade, ela própria (revolução islâmica) se apoia, paradoxalmente, num dos cancros mais poderosos da sociedade ocidental e um dos sintomas mais infalíveis da sua incurável doença: o petróleo.
Esta contradição - uma revolução que pretende ser alternativa à sociedade industrial apoiando-se num dos cancros dessa mesma sociedade industrial - nada indica que irá ser ultrapassada.
A revolução islâmica está longe de ficar vitoriosa.

ACTUALIDADE DOS PROFETAS, ESSE MOMENTO HISTÓRICO SINGULAR

A dúvida dos profetas sobre a imortalidade da história e da civilização, é um momento singular na história europeia da evolução humana.
Segundo os peritos, até que a pregação dos grandes profetas bíblicos se fizesse ouvir, todos os homens estavam seguros de que a Terra é imutável e o mundo continuará sendo eternamente. Ninguém, no Ocidente, duvidava de que a civilização continuaria.
No Extremo Oriente, porém, havia séculos que as religiões do movimento, a dialéctica do «yin-yang» (na nomenclatura chinesa), a sabedoria do «Tao», se tinha espalhado e criado raízes na consciência colectiva.
No Ocidente, porém, quando as vozes de Isaías, Daniel, Jeremias, João, Mateus, Cristo se fizeram ouvir, algo de «novo» surgia sobre este lado da Terra.
Tremia a força dos poderosos e a violência deixava de ser o único sentido para a História. O Reino de Deus anunciado pressupunha uma reviravolta qualitativa, a que hoje talvez se chamasse revolução, reviravolta que fazia passar os acontecimentos da Terra a reflexos da realidade de Deus.
Para os profetas, «os imperadores são simples instrumentos nas mãos de Deus» e os acontecimentos, simples reflexos ou ecos da Sua Vontade.
Para os profetas, o lugar do homem está na História e a sua preocupação central é o que sucede nela. Tanto a Natureza como a História estão sujeitas ao domínio de Deus. Assim como a palavra é o instrumento para a sua revelação, a história é o instrumento para a sua acção e o material para o êxito do homem.
Contra a idolatria e o monopólio do Poder e dos Impérios, surge, com os profetas, a voz da alma, dos valores subtis ou imponderáveis, a nobreza do imperativo moral pairando acima dos desejos e domínios materiais.
Também foi o profeta o primeiro «homem universal», o primeiro que concebeu pela primeira vez, no Ocidente, a unidade de todos os homens.

DESPERTAR DO PESADELO

É como se tudo, incluindo a crise ecológica, incluindo o clima de apocalipse que vivemos, nos empurrasse para uma única saída. E como se o fechar de todas as portas, de todas as saídas, de todas as soluções - nota dominante do nosso tempo de absurdo - nos conduzisse para a via única e estreita da fé.
Dizer-se que um ecologista cultiva o desespero, o niilismo, o desencanto, a desmoralização, é uma meia verdade, meia mentira. A lucidez ecologista, como todas as posições lúcidas deste tempo de mentiras e ilusões, pesadelos e fantasmas, aporta necessariamente a um limiar de dúvida. De angústia. De interrogação. Mas é tudo isso que torna inevitável - e com uma força positiva idêntica ao impacto negativo - o termo dialéctico complementar. Vivermos uma época infindável de trevas e caos, tem de significar, forçosamente - e tão necessariamente como uma lei física - o advento da grande fé, da grande ordem e da grande Iluminação. O tempo está perto.
E é por esta inevitabilidade física que eu penso o tempo ter chegado com as vozes contemporâneas da mais antiga tradição primordial viva: as vozes do budismo. Porque uma resposta às mil perguntas e inquietações tinha de surgir. E não vejo outra que tanto se assemelhe à única resposta, como a que nos trazem os irmãos do Dharma budista tibetano
Tudo - gurus incluídos- o que cava mais fundo o desespero dos homens, e a sua crença ridícula e irrisória na matéria e no fim do mundo material, é o que se pode considerar as «forças do mal».
Muitos «profetas», hoje, estão ao serviço das forças do mal, porque se servem da «fé» para cavar mais fundo o desespero dos homens. É maquiavélico, mas é assim: e corresponde ao supremo paroxismo de cinismo e contradição e engano e mentira, atingido pela nossa época. Por isso a fé é o maior tesouro. Por ela eu sei como tudo o que não for o Dharma, é irrisório e passageiro. Que as maiores calamidades são grãos de areia ou gotas de água sem importância. Que, ao fim e ao cabo, a maior e única desgraça é perder a fé, ou não a ter ainda reconquistado. Quer dizer, continuar dormindo. Não ter ainda despertado.
Despertar é a grande riqueza, a grande força, a grande alegria, e frente ao fogo da fé todo o rancor, todo o desespero, toda a indecisão, todo o ódio, toda a ignorância, toda a inveja, toda a ambição, se fundem. Tudo se hierarquiza em função do fundamental. O relativo assume o seu justo lugar de relativo face ao absoluto. E nós percebemos que os mil e um pontos da mandala, são afinal um único ponto: o centro da mandala. O diverso já não nos assusta, quando sentimos estar no centro do Universo. Quer dizer: quando o nosso coração bate ao ritmo e no comprimento de onda do coração de Buda, a maior Energia, a Idade sem Limite, o Matulasém do Espírito, entendendo-se espírito por isso que não morre, que não perece, que não se desvia, que não se dissipa, que não morre. Frente à certeza de que «não se pode morrer», como se poderá acreditar em suicídio? E, no entanto, só indo até à falsa saída do suicídio, sabendo que não é saída, se chega no nosso tempo a um limiar de entrada possível na fé. Quando se desespera de tudo, surge a fé.
E só os demónios estão interessados em nos tirar a fé.
A irreversibilidade é um dos atributos do Ser Infinito e Fundamental. Nenhuma força humana, telúrica ou cósmica o desgasta ou erosiona. Não volta atrás, não sofre entropia. Cresce sempre: a isso se chama a força do espírito. Não se queima, nem quebra nem dilui ou dissolve. Tem um poder acumulativo crescente e constante e eterno. A eternidade é mesmo isso: o sinónimo da irreversibilidade.
Mas com esta irreversibilidade, há uma expansão do Dharma sobre o carma, expansão também imparável e irreversível, pelo que a salvação e libertação de todos os homens é inevitável: apenas pode levar mais ou menos tempo, mais ou menos sofrimento.
Aqui desenha-se uma das ambiguidades mais vibrantes do Conhecimento último a Primeiro: por um lado, saber que tudo irá dar, sempre, à inevitável e fatal libertação, parece um convite à Indiferença. Mas, por outro lado, saber que ela é fatal, pode robustecer um certo voluntarismo: porque, com essa certeza fatatística, se robustece a fé. A fé na Ordem e de que tudo tem um sentido preciso orientado para um preciso e precioso fim ou objectivo.
E a ambiguidade das zonas mais subtis da Prática: fazer ou não fazer é indiferente. Mas não é inteiramente indiferente.
Por isso, não é indiferente que um procedimento se faça no sentido de acrescentar mais ser ao ser ou no sentido inverso da entropia e da morte perpetuada. Se é verdade que tudo está certo e que tudo acontece quando e como e porque tem de acontecer, é verdade também que está sempre presente a oportunidade de acrescentar ao grande ser mais um pouco do nosso ser, quer dizer, da nossa vontade exercida em função da Grande Vontade e, portanto, apesar do ego voluntarista ou voluntarioso que a limitaria. A vontade junto da Vontade Universal não «engorda» o ego mas ultrapassa-o.
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(*)Este texto de Afonso Cautela foi publicado no jornal «A Capital» (Crónica do Planeta Terra), 2/2/1980