IDEOLOGIA 1980
escalada-2-ie = ideia ecológica do ac - os dossiês do silêncio
2/2/1980 – Fora das bancadas, estrangeiros no seu próprio país, aos 8 milhões de portugueses só resta divertirem-se com o discurso da classe ideológica dominante e seus cronistas adjacentes.
Só lhes (nos) resta extrair desse discurso, o piadético e o contraditório, o arrogante e o mimético, o supersticioso, anedótico e charlatanesco. Acima de tudo, o ar de vanglória sobresuficiente, de predestinação iluminada, de vanguarda histórica que estes pais da Pátria ostentam quando a ordem do dia são as questões da próxima actualidade futura.
De facto, é na aposta prospectiva, no ensaio futurológico, na especulação para a próxima década, no que se promete ou ameaça, é na vidência e bruxaria que o discurso dominante revela, ao mesmo tempo, todas as suas taras de paranóia elitista, todos os sintomas de delirium tremens para uso e abuso colectivo.
Em suma: só os da classe (científica) dominante e seus agentes aplicados na Economia, na Política, no Futebol e na Medicina, se arrogam o direito de fazer prognósticos sobre as doenças e contradições dos outros. Nunca se auto-analisam e autoprognosticam as suas próprias mazelas.
Semanalmente, também, e para descontrair dos aumentos do custo de vida, convida-se o povo e prognosticar a sua fortuna pessoal, mediante apostas desportivas mútuas, sendo condição sine que non, para que haja totalistas, uns milhares de milhões de errantes. Tratando-se de batota, o sistema autoriza a previsão e dá-lhe foros de científica.
No campo da análise clínica, aspas-aspas: é corrente, é sangue nosso de cada dia, prognosticar amigdalites e apendicites onde nunca houve nem uma coisa nem outra. Mas a engrenagem das amigdalectomias a apendicectomias exige, exactamente, aqueles prognósticos. Cirurgia oblige.
A ARMA DO PROGNÓSTICO
Adivinhar o futuro, portanto, nesta culta sociedade comandada por cientistas experimentais, só a quem possua cartão de adivinho é dado e autorizado.
Tudo o mais vai para o cesto das iniquidades e da perigosa superstição.
O espaço dedicado nos jornais às antevisões dos astrólogos para 1980 não tem outro objectivo do que evidenciar, por contraste, esta bipolarização ideológica: de um lado, só charlatães, bruxos, astrólogos, miniprofetas e videntes imprevidentes, sem carteira profissional de 400 paus; do outro lado, os que estão autorizados (e diplomados) para fazer todo o género de adivinhações, profecias, prognósticos, ameaças, planos (de médio prazo) mediante estatísticas, curvas, gráficos, nomenclatura arrevesada, etc. que os 8 milhões de portugueses aceitarão exactamente e na medida em que não perceberem patavina.
De um lado, a superstição medieval e, mesmo, a mais degradante miséria intelectual (a fé dos profetas); do outro lado, os intelectuais da miséria, mas todos formados nas grandes universidades estrangeiras.
Quem está de fora da bancada - 8 milhões de portugueses - queda-se boquiaberto com a sobresuficiência da inteligência destas eminências: eles, sim, que foram fadados para os altos voos (de abutre) visionando os horizontes dos cenários futuros, como na sua linguagem teatral o tecnoprevisor gosta de dizer; nós, classe baixa, só nos resta a miséria da ignorância sem (cenários de) futuro, impotentes que somos para prognosticar além do totobola semanal que eles, previdentes, nos reservam.
Em suma: como o sistema reserva para si todas as armas (deixando o povo desarmado), a classe ideológica dominante usa (e abusa) da prospectiva como arma ideológica da sua dominação. Óbvio.
De psicologia prática e técnicas de marketing percebem eles: e sabem que o bruxo tem na mão o cliente, quanto mais negro e sombrio for o futuro que lhe prognosticar. Um futuro de crises petrolíferas (para açodar os investimentos no nuclear). Um futuro de cancros-mísseis. Um futuro de guerra e fim do mundo. Um futuro de terror sísmico-nuclear, semana um, semana outro. Um futuro armado até aos dentes, que sorriem sempre clorofila e flúor. Um futuro super-fascista de super-toneladas, de super-regeneradores alimentados a plutónio.
A classe ideológica dominante tem os seus funcionários universitariamente bem preparados para fabricar os futuros que à sua própria estratégia interessa impingir nas massas. Bolas de cristal, só os computadores do M. I. T., depois contestados pelos da Sibéria. Cartomâncias só as que pelas suas garras forem distribuídas sobre o pano (vermelho) das matanças sísmicas (e nem só).
Ao mesmo tempo que, pelos canais legitimamente eleitos, se prognostica à dextra, à sinistra e ao centro, expede-se um batalhão de cronistas para dizer todo o mal possível da profecia clássica. O povo que tome boa nota e ouça bem o bom advogado do povo: nada de embarcar no alarmismo.
AVISO AO POVO
Já quando foi o primeiro milénio, o mundo se encheu de profecias e alarmes falsos. Afinal, cá vamos a caminho do segundo (ano 2000), sãos e salvos, sem que as bruxarias medievais se tivessem concretizado.
Um verdadeiro habitante do século XX, verdadeiro século das luzes, no dealbar da gloriosa década de 80 (auge da escalada do plutónio), em que se promete a cura química e/ou radioactiva do cancro (provocado exactamente pela química e pela radioactividade), bem como a transplantação de órgãos sexuais e cérebros (dado o estado a que eles chegaram), um homem cibernético e frenético desta civilização astro-espacial não vai em boatos, crenças, suerstições. Não embarca em alarmismos.
E o cronista «dernier cri» toma precauções: não se confessando embora um crente dos tecno-previsores (nunca fiando) e sem «embarcar no alarmismo» do estilo Herman Khan, o que visa principalmente, nos seus articulados, é depreciar a corrente profética. A que chamará, então, «pessimista», «alarmista», «catastrofista».
Árbitro na grande questão de saber se os amanhãs vão cantar ou chorar, se a burguesia vai perder e o proletariado ganhar, pairando acima da polémica entre «pessimistas» e «optimistas», um bom escriba ao serviço da classe dominante deve ser «neutral» e «objectivo», não tomar partido.
Mete então tudo no mesmo saco: os do Plano, os maltusianos da mentira demográfica, os bruxos e astrólogos, os profetas e visionários, os ecologistas e vates. Para esse articulista, Fernando Pessoa e William Blake estariam ao mesmo nível de Herman Khan e dos Planos Quinquenais. Ninguém poderia «ler no futuro», porque o «futuro a Deus pertence». Ao infeliz do século XX só restaria esborrachar o nariz no muro opaco do imediato.
Panglosses de todas as cores rotulam assim de «pessimista» toda e qualquer antecipação que não quadre aos interesses do negócio da classe ideológica dominante.
Os grandes profetas da tradição, de Buda a Jesus, passando por João, seriam apenas uns místicos bem intencionados para o seu tempo, cujos símbolos cabalísticos alguns piedosos fiéis, hoje, tentariam decifrar, mas sem êxito (claro). A estes fiéis aplica-se, então, além de «pessimista» todo o rótulo que signifique indigência intelectual.
Mas a gente percebe o jogo.
Pondo os profetas e ecologistas ao nível da astrologia barata, só ficaria ao povo um caminho: acreditar nas previsões dos bruxos diplomados pelo ensino superior curto.
O cronista adestrado sabe - neutral que se farta - que é preciso retirar crédito aos ecoprofetas, para que entre, de roldão, toda a pacotilha dos adivinhos de pataco: os tecnofuturólogos.
Acreditar, sim, mas nos «fins do mundo» que a eles lhes apraz pintar, para que, aterrorizada, a humanidade se renda melhor às exigências deles, enquanto cobaia das suas (deles) experiências.
ESCALADA DAS CONTRADIÇÕES, A ÚNICA CATÁSTROFE
Se bem que o ecologismo tenha sido o flanco por onde a sociedade industrial sofreu maiores golpes, e por mais que se tenha alargado o alcance da crítica ecológica, é evidente que o sistema ultrapassa uma análise meramente ambiental.
O que está fundamentalmente em causa, para ecologistas e não ecologistas, são as contradições da sociedade industrial, contradições que a estrangulam, asfixiam e empurram para uma situação que só pode classificar-se de catastrófica.
A um observador que examine, com independência e sem preconceitos,a marcha da tecnoestrutura, a sua escalada de destruição, as suas insanáveis tensões, a sua cancerosa autocorrosão, não é necessário invocar argumentos de ordem ecológica. Uma análise meramente económica basta para, sem eufemismos nem ilusões, mostrar que esta «sociedade está condenada». E que as alternativas «revolucionárias» que porventura a história assinalou, ou acabaram recuperadas pelo infernal sistema (o que significa não terem sido «revolucionárias» até ao fim), ou - caso da Albânia - têm tão pouca força no contexto mundial, que dificilmente se poderá acreditar que se tornem um rastilho suficientemente forte para evitar que a sociedade da catástrofe mergulhe todo o planeta no abismo final.
E, em tal caso, as alternativas «revolucionárias» porventura existentes, iriam igualmente arrastadas.
Se a revolução islâmica abre uma brecha na sociedade industrial, que tem mais a ver com uma renascença religiosa do que com uma crítica ecológica aos crimes, abusos e contradições dessa sociedade, ela própria (revolução islâmica) se apoia, paradoxalmente, num dos cancros mais poderosos da sociedade ocidental e um dos sintomas mais infalíveis da sua incurável doença: o petróleo.
Esta contradição - uma revolução que pretende ser alternativa à sociedade industrial apoiando-se num dos cancros dessa mesma sociedade industrial - nada indica que irá ser ultrapassada.
A revolução islâmica está longe de ficar vitoriosa.
ACTUALIDADE DOS PROFETAS, ESSE MOMENTO HISTÓRICO SINGULAR
A dúvida dos profetas sobre a imortalidade da história e da civilização, é um momento singular na história europeia da evolução humana.
Segundo os peritos, até que a pregação dos grandes profetas bíblicos se fizesse ouvir, todos os homens estavam seguros de que a Terra é imutável e o mundo continuará sendo eternamente. Ninguém, no Ocidente, duvidava de que a civilização continuaria.
No Extremo Oriente, porém, havia séculos que as religiões do movimento, a dialéctica do «yin-yang» (na nomenclatura chinesa), a sabedoria do «Tao», se tinha espalhado e criado raízes na consciência colectiva.
No Ocidente, porém, quando as vozes de Isaías, Daniel, Jeremias, João, Mateus, Cristo se fizeram ouvir, algo de «novo» surgia sobre este lado da Terra.
Tremia a força dos poderosos e a violência deixava de ser o único sentido para a História. O Reino de Deus anunciado pressupunha uma reviravolta qualitativa, a que hoje talvez se chamasse revolução, reviravolta que fazia passar os acontecimentos da Terra a reflexos da realidade de Deus.
Para os profetas, «os imperadores são simples instrumentos nas mãos de Deus» e os acontecimentos, simples reflexos ou ecos da Sua Vontade.
Para os profetas, o lugar do homem está na História e a sua preocupação central é o que sucede nela. Tanto a Natureza como a História estão sujeitas ao domínio de Deus. Assim como a palavra é o instrumento para a sua revelação, a história é o instrumento para a sua acção e o material para o êxito do homem.
Contra a idolatria e o monopólio do Poder e dos Impérios, surge, com os profetas, a voz da alma, dos valores subtis ou imponderáveis, a nobreza do imperativo moral pairando acima dos desejos e domínios materiais.
Também foi o profeta o primeiro «homem universal», o primeiro que concebeu pela primeira vez, no Ocidente, a unidade de todos os homens.
DESPERTAR DO PESADELO
É como se tudo, incluindo a crise ecológica, incluindo o clima de apocalipse que vivemos, nos empurrasse para uma única saída. E como se o fechar de todas as portas, de todas as saídas, de todas as soluções - nota dominante do nosso tempo de absurdo - nos conduzisse para a via única e estreita da fé.
Dizer-se que um ecologista cultiva o desespero, o niilismo, o desencanto, a desmoralização, é uma meia verdade, meia mentira. A lucidez ecologista, como todas as posições lúcidas deste tempo de mentiras e ilusões, pesadelos e fantasmas, aporta necessariamente a um limiar de dúvida. De angústia. De interrogação. Mas é tudo isso que torna inevitável - e com uma força positiva idêntica ao impacto negativo - o termo dialéctico complementar. Vivermos uma época infindável de trevas e caos, tem de significar, forçosamente - e tão necessariamente como uma lei física - o advento da grande fé, da grande ordem e da grande Iluminação. O tempo está perto.
E é por esta inevitabilidade física que eu penso o tempo ter chegado com as vozes contemporâneas da mais antiga tradição primordial viva: as vozes do budismo. Porque uma resposta às mil perguntas e inquietações tinha de surgir. E não vejo outra que tanto se assemelhe à única resposta, como a que nos trazem os irmãos do Dharma budista tibetano
Tudo - gurus incluídos- o que cava mais fundo o desespero dos homens, e a sua crença ridícula e irrisória na matéria e no fim do mundo material, é o que se pode considerar as «forças do mal».
Muitos «profetas», hoje, estão ao serviço das forças do mal, porque se servem da «fé» para cavar mais fundo o desespero dos homens. É maquiavélico, mas é assim: e corresponde ao supremo paroxismo de cinismo e contradição e engano e mentira, atingido pela nossa época. Por isso a fé é o maior tesouro. Por ela eu sei como tudo o que não for o Dharma, é irrisório e passageiro. Que as maiores calamidades são grãos de areia ou gotas de água sem importância. Que, ao fim e ao cabo, a maior e única desgraça é perder a fé, ou não a ter ainda reconquistado. Quer dizer, continuar dormindo. Não ter ainda despertado.
Despertar é a grande riqueza, a grande força, a grande alegria, e frente ao fogo da fé todo o rancor, todo o desespero, toda a indecisão, todo o ódio, toda a ignorância, toda a inveja, toda a ambição, se fundem. Tudo se hierarquiza em função do fundamental. O relativo assume o seu justo lugar de relativo face ao absoluto. E nós percebemos que os mil e um pontos da mandala, são afinal um único ponto: o centro da mandala. O diverso já não nos assusta, quando sentimos estar no centro do Universo. Quer dizer: quando o nosso coração bate ao ritmo e no comprimento de onda do coração de Buda, a maior Energia, a Idade sem Limite, o Matulasém do Espírito, entendendo-se espírito por isso que não morre, que não perece, que não se desvia, que não se dissipa, que não morre. Frente à certeza de que «não se pode morrer», como se poderá acreditar em suicídio? E, no entanto, só indo até à falsa saída do suicídio, sabendo que não é saída, se chega no nosso tempo a um limiar de entrada possível na fé. Quando se desespera de tudo, surge a fé.
E só os demónios estão interessados em nos tirar a fé.
A irreversibilidade é um dos atributos do Ser Infinito e Fundamental. Nenhuma força humana, telúrica ou cósmica o desgasta ou erosiona. Não volta atrás, não sofre entropia. Cresce sempre: a isso se chama a força do espírito. Não se queima, nem quebra nem dilui ou dissolve. Tem um poder acumulativo crescente e constante e eterno. A eternidade é mesmo isso: o sinónimo da irreversibilidade.
Mas com esta irreversibilidade, há uma expansão do Dharma sobre o carma, expansão também imparável e irreversível, pelo que a salvação e libertação de todos os homens é inevitável: apenas pode levar mais ou menos tempo, mais ou menos sofrimento.
Aqui desenha-se uma das ambiguidades mais vibrantes do Conhecimento último a Primeiro: por um lado, saber que tudo irá dar, sempre, à inevitável e fatal libertação, parece um convite à Indiferença. Mas, por outro lado, saber que ela é fatal, pode robustecer um certo voluntarismo: porque, com essa certeza fatatística, se robustece a fé. A fé na Ordem e de que tudo tem um sentido preciso orientado para um preciso e precioso fim ou objectivo.
E a ambiguidade das zonas mais subtis da Prática: fazer ou não fazer é indiferente. Mas não é inteiramente indiferente.
Por isso, não é indiferente que um procedimento se faça no sentido de acrescentar mais ser ao ser ou no sentido inverso da entropia e da morte perpetuada. Se é verdade que tudo está certo e que tudo acontece quando e como e porque tem de acontecer, é verdade também que está sempre presente a oportunidade de acrescentar ao grande ser mais um pouco do nosso ser, quer dizer, da nossa vontade exercida em função da Grande Vontade e, portanto, apesar do ego voluntarista ou voluntarioso que a limitaria. A vontade junto da Vontade Universal não «engorda» o ego mas ultrapassa-o.
- - - - -
(*)Este texto de Afonso Cautela foi publicado no jornal «A Capital» (Crónica do Planeta Terra), 2/2/1980
ADIVINHOS E PROFETAS (*)
2/2/1980 – Fora das bancadas, estrangeiros no seu próprio país, aos 8 milhões de portugueses só resta divertirem-se com o discurso da classe ideológica dominante e seus cronistas adjacentes.
Só lhes (nos) resta extrair desse discurso, o piadético e o contraditório, o arrogante e o mimético, o supersticioso, anedótico e charlatanesco. Acima de tudo, o ar de vanglória sobresuficiente, de predestinação iluminada, de vanguarda histórica que estes pais da Pátria ostentam quando a ordem do dia são as questões da próxima actualidade futura.
De facto, é na aposta prospectiva, no ensaio futurológico, na especulação para a próxima década, no que se promete ou ameaça, é na vidência e bruxaria que o discurso dominante revela, ao mesmo tempo, todas as suas taras de paranóia elitista, todos os sintomas de delirium tremens para uso e abuso colectivo.
Em suma: só os da classe (científica) dominante e seus agentes aplicados na Economia, na Política, no Futebol e na Medicina, se arrogam o direito de fazer prognósticos sobre as doenças e contradições dos outros. Nunca se auto-analisam e autoprognosticam as suas próprias mazelas.
Semanalmente, também, e para descontrair dos aumentos do custo de vida, convida-se o povo e prognosticar a sua fortuna pessoal, mediante apostas desportivas mútuas, sendo condição sine que non, para que haja totalistas, uns milhares de milhões de errantes. Tratando-se de batota, o sistema autoriza a previsão e dá-lhe foros de científica.
No campo da análise clínica, aspas-aspas: é corrente, é sangue nosso de cada dia, prognosticar amigdalites e apendicites onde nunca houve nem uma coisa nem outra. Mas a engrenagem das amigdalectomias a apendicectomias exige, exactamente, aqueles prognósticos. Cirurgia oblige.
A ARMA DO PROGNÓSTICO
Adivinhar o futuro, portanto, nesta culta sociedade comandada por cientistas experimentais, só a quem possua cartão de adivinho é dado e autorizado.
Tudo o mais vai para o cesto das iniquidades e da perigosa superstição.
O espaço dedicado nos jornais às antevisões dos astrólogos para 1980 não tem outro objectivo do que evidenciar, por contraste, esta bipolarização ideológica: de um lado, só charlatães, bruxos, astrólogos, miniprofetas e videntes imprevidentes, sem carteira profissional de 400 paus; do outro lado, os que estão autorizados (e diplomados) para fazer todo o género de adivinhações, profecias, prognósticos, ameaças, planos (de médio prazo) mediante estatísticas, curvas, gráficos, nomenclatura arrevesada, etc. que os 8 milhões de portugueses aceitarão exactamente e na medida em que não perceberem patavina.
De um lado, a superstição medieval e, mesmo, a mais degradante miséria intelectual (a fé dos profetas); do outro lado, os intelectuais da miséria, mas todos formados nas grandes universidades estrangeiras.
Quem está de fora da bancada - 8 milhões de portugueses - queda-se boquiaberto com a sobresuficiência da inteligência destas eminências: eles, sim, que foram fadados para os altos voos (de abutre) visionando os horizontes dos cenários futuros, como na sua linguagem teatral o tecnoprevisor gosta de dizer; nós, classe baixa, só nos resta a miséria da ignorância sem (cenários de) futuro, impotentes que somos para prognosticar além do totobola semanal que eles, previdentes, nos reservam.
Em suma: como o sistema reserva para si todas as armas (deixando o povo desarmado), a classe ideológica dominante usa (e abusa) da prospectiva como arma ideológica da sua dominação. Óbvio.
De psicologia prática e técnicas de marketing percebem eles: e sabem que o bruxo tem na mão o cliente, quanto mais negro e sombrio for o futuro que lhe prognosticar. Um futuro de crises petrolíferas (para açodar os investimentos no nuclear). Um futuro de cancros-mísseis. Um futuro de guerra e fim do mundo. Um futuro de terror sísmico-nuclear, semana um, semana outro. Um futuro armado até aos dentes, que sorriem sempre clorofila e flúor. Um futuro super-fascista de super-toneladas, de super-regeneradores alimentados a plutónio.
A classe ideológica dominante tem os seus funcionários universitariamente bem preparados para fabricar os futuros que à sua própria estratégia interessa impingir nas massas. Bolas de cristal, só os computadores do M. I. T., depois contestados pelos da Sibéria. Cartomâncias só as que pelas suas garras forem distribuídas sobre o pano (vermelho) das matanças sísmicas (e nem só).
Ao mesmo tempo que, pelos canais legitimamente eleitos, se prognostica à dextra, à sinistra e ao centro, expede-se um batalhão de cronistas para dizer todo o mal possível da profecia clássica. O povo que tome boa nota e ouça bem o bom advogado do povo: nada de embarcar no alarmismo.
AVISO AO POVO
Já quando foi o primeiro milénio, o mundo se encheu de profecias e alarmes falsos. Afinal, cá vamos a caminho do segundo (ano 2000), sãos e salvos, sem que as bruxarias medievais se tivessem concretizado.
Um verdadeiro habitante do século XX, verdadeiro século das luzes, no dealbar da gloriosa década de 80 (auge da escalada do plutónio), em que se promete a cura química e/ou radioactiva do cancro (provocado exactamente pela química e pela radioactividade), bem como a transplantação de órgãos sexuais e cérebros (dado o estado a que eles chegaram), um homem cibernético e frenético desta civilização astro-espacial não vai em boatos, crenças, suerstições. Não embarca em alarmismos.
E o cronista «dernier cri» toma precauções: não se confessando embora um crente dos tecno-previsores (nunca fiando) e sem «embarcar no alarmismo» do estilo Herman Khan, o que visa principalmente, nos seus articulados, é depreciar a corrente profética. A que chamará, então, «pessimista», «alarmista», «catastrofista».
Árbitro na grande questão de saber se os amanhãs vão cantar ou chorar, se a burguesia vai perder e o proletariado ganhar, pairando acima da polémica entre «pessimistas» e «optimistas», um bom escriba ao serviço da classe dominante deve ser «neutral» e «objectivo», não tomar partido.
Mete então tudo no mesmo saco: os do Plano, os maltusianos da mentira demográfica, os bruxos e astrólogos, os profetas e visionários, os ecologistas e vates. Para esse articulista, Fernando Pessoa e William Blake estariam ao mesmo nível de Herman Khan e dos Planos Quinquenais. Ninguém poderia «ler no futuro», porque o «futuro a Deus pertence». Ao infeliz do século XX só restaria esborrachar o nariz no muro opaco do imediato.
Panglosses de todas as cores rotulam assim de «pessimista» toda e qualquer antecipação que não quadre aos interesses do negócio da classe ideológica dominante.
Os grandes profetas da tradição, de Buda a Jesus, passando por João, seriam apenas uns místicos bem intencionados para o seu tempo, cujos símbolos cabalísticos alguns piedosos fiéis, hoje, tentariam decifrar, mas sem êxito (claro). A estes fiéis aplica-se, então, além de «pessimista» todo o rótulo que signifique indigência intelectual.
Mas a gente percebe o jogo.
Pondo os profetas e ecologistas ao nível da astrologia barata, só ficaria ao povo um caminho: acreditar nas previsões dos bruxos diplomados pelo ensino superior curto.
O cronista adestrado sabe - neutral que se farta - que é preciso retirar crédito aos ecoprofetas, para que entre, de roldão, toda a pacotilha dos adivinhos de pataco: os tecnofuturólogos.
Acreditar, sim, mas nos «fins do mundo» que a eles lhes apraz pintar, para que, aterrorizada, a humanidade se renda melhor às exigências deles, enquanto cobaia das suas (deles) experiências.
ESCALADA DAS CONTRADIÇÕES, A ÚNICA CATÁSTROFE
Se bem que o ecologismo tenha sido o flanco por onde a sociedade industrial sofreu maiores golpes, e por mais que se tenha alargado o alcance da crítica ecológica, é evidente que o sistema ultrapassa uma análise meramente ambiental.
O que está fundamentalmente em causa, para ecologistas e não ecologistas, são as contradições da sociedade industrial, contradições que a estrangulam, asfixiam e empurram para uma situação que só pode classificar-se de catastrófica.
A um observador que examine, com independência e sem preconceitos,a marcha da tecnoestrutura, a sua escalada de destruição, as suas insanáveis tensões, a sua cancerosa autocorrosão, não é necessário invocar argumentos de ordem ecológica. Uma análise meramente económica basta para, sem eufemismos nem ilusões, mostrar que esta «sociedade está condenada». E que as alternativas «revolucionárias» que porventura a história assinalou, ou acabaram recuperadas pelo infernal sistema (o que significa não terem sido «revolucionárias» até ao fim), ou - caso da Albânia - têm tão pouca força no contexto mundial, que dificilmente se poderá acreditar que se tornem um rastilho suficientemente forte para evitar que a sociedade da catástrofe mergulhe todo o planeta no abismo final.
E, em tal caso, as alternativas «revolucionárias» porventura existentes, iriam igualmente arrastadas.
Se a revolução islâmica abre uma brecha na sociedade industrial, que tem mais a ver com uma renascença religiosa do que com uma crítica ecológica aos crimes, abusos e contradições dessa sociedade, ela própria (revolução islâmica) se apoia, paradoxalmente, num dos cancros mais poderosos da sociedade ocidental e um dos sintomas mais infalíveis da sua incurável doença: o petróleo.
Esta contradição - uma revolução que pretende ser alternativa à sociedade industrial apoiando-se num dos cancros dessa mesma sociedade industrial - nada indica que irá ser ultrapassada.
A revolução islâmica está longe de ficar vitoriosa.
ACTUALIDADE DOS PROFETAS, ESSE MOMENTO HISTÓRICO SINGULAR
A dúvida dos profetas sobre a imortalidade da história e da civilização, é um momento singular na história europeia da evolução humana.
Segundo os peritos, até que a pregação dos grandes profetas bíblicos se fizesse ouvir, todos os homens estavam seguros de que a Terra é imutável e o mundo continuará sendo eternamente. Ninguém, no Ocidente, duvidava de que a civilização continuaria.
No Extremo Oriente, porém, havia séculos que as religiões do movimento, a dialéctica do «yin-yang» (na nomenclatura chinesa), a sabedoria do «Tao», se tinha espalhado e criado raízes na consciência colectiva.
No Ocidente, porém, quando as vozes de Isaías, Daniel, Jeremias, João, Mateus, Cristo se fizeram ouvir, algo de «novo» surgia sobre este lado da Terra.
Tremia a força dos poderosos e a violência deixava de ser o único sentido para a História. O Reino de Deus anunciado pressupunha uma reviravolta qualitativa, a que hoje talvez se chamasse revolução, reviravolta que fazia passar os acontecimentos da Terra a reflexos da realidade de Deus.
Para os profetas, «os imperadores são simples instrumentos nas mãos de Deus» e os acontecimentos, simples reflexos ou ecos da Sua Vontade.
Para os profetas, o lugar do homem está na História e a sua preocupação central é o que sucede nela. Tanto a Natureza como a História estão sujeitas ao domínio de Deus. Assim como a palavra é o instrumento para a sua revelação, a história é o instrumento para a sua acção e o material para o êxito do homem.
Contra a idolatria e o monopólio do Poder e dos Impérios, surge, com os profetas, a voz da alma, dos valores subtis ou imponderáveis, a nobreza do imperativo moral pairando acima dos desejos e domínios materiais.
Também foi o profeta o primeiro «homem universal», o primeiro que concebeu pela primeira vez, no Ocidente, a unidade de todos os homens.
DESPERTAR DO PESADELO
É como se tudo, incluindo a crise ecológica, incluindo o clima de apocalipse que vivemos, nos empurrasse para uma única saída. E como se o fechar de todas as portas, de todas as saídas, de todas as soluções - nota dominante do nosso tempo de absurdo - nos conduzisse para a via única e estreita da fé.
Dizer-se que um ecologista cultiva o desespero, o niilismo, o desencanto, a desmoralização, é uma meia verdade, meia mentira. A lucidez ecologista, como todas as posições lúcidas deste tempo de mentiras e ilusões, pesadelos e fantasmas, aporta necessariamente a um limiar de dúvida. De angústia. De interrogação. Mas é tudo isso que torna inevitável - e com uma força positiva idêntica ao impacto negativo - o termo dialéctico complementar. Vivermos uma época infindável de trevas e caos, tem de significar, forçosamente - e tão necessariamente como uma lei física - o advento da grande fé, da grande ordem e da grande Iluminação. O tempo está perto.
E é por esta inevitabilidade física que eu penso o tempo ter chegado com as vozes contemporâneas da mais antiga tradição primordial viva: as vozes do budismo. Porque uma resposta às mil perguntas e inquietações tinha de surgir. E não vejo outra que tanto se assemelhe à única resposta, como a que nos trazem os irmãos do Dharma budista tibetano
Tudo - gurus incluídos- o que cava mais fundo o desespero dos homens, e a sua crença ridícula e irrisória na matéria e no fim do mundo material, é o que se pode considerar as «forças do mal».
Muitos «profetas», hoje, estão ao serviço das forças do mal, porque se servem da «fé» para cavar mais fundo o desespero dos homens. É maquiavélico, mas é assim: e corresponde ao supremo paroxismo de cinismo e contradição e engano e mentira, atingido pela nossa época. Por isso a fé é o maior tesouro. Por ela eu sei como tudo o que não for o Dharma, é irrisório e passageiro. Que as maiores calamidades são grãos de areia ou gotas de água sem importância. Que, ao fim e ao cabo, a maior e única desgraça é perder a fé, ou não a ter ainda reconquistado. Quer dizer, continuar dormindo. Não ter ainda despertado.
Despertar é a grande riqueza, a grande força, a grande alegria, e frente ao fogo da fé todo o rancor, todo o desespero, toda a indecisão, todo o ódio, toda a ignorância, toda a inveja, toda a ambição, se fundem. Tudo se hierarquiza em função do fundamental. O relativo assume o seu justo lugar de relativo face ao absoluto. E nós percebemos que os mil e um pontos da mandala, são afinal um único ponto: o centro da mandala. O diverso já não nos assusta, quando sentimos estar no centro do Universo. Quer dizer: quando o nosso coração bate ao ritmo e no comprimento de onda do coração de Buda, a maior Energia, a Idade sem Limite, o Matulasém do Espírito, entendendo-se espírito por isso que não morre, que não perece, que não se desvia, que não se dissipa, que não morre. Frente à certeza de que «não se pode morrer», como se poderá acreditar em suicídio? E, no entanto, só indo até à falsa saída do suicídio, sabendo que não é saída, se chega no nosso tempo a um limiar de entrada possível na fé. Quando se desespera de tudo, surge a fé.
E só os demónios estão interessados em nos tirar a fé.
A irreversibilidade é um dos atributos do Ser Infinito e Fundamental. Nenhuma força humana, telúrica ou cósmica o desgasta ou erosiona. Não volta atrás, não sofre entropia. Cresce sempre: a isso se chama a força do espírito. Não se queima, nem quebra nem dilui ou dissolve. Tem um poder acumulativo crescente e constante e eterno. A eternidade é mesmo isso: o sinónimo da irreversibilidade.
Mas com esta irreversibilidade, há uma expansão do Dharma sobre o carma, expansão também imparável e irreversível, pelo que a salvação e libertação de todos os homens é inevitável: apenas pode levar mais ou menos tempo, mais ou menos sofrimento.
Aqui desenha-se uma das ambiguidades mais vibrantes do Conhecimento último a Primeiro: por um lado, saber que tudo irá dar, sempre, à inevitável e fatal libertação, parece um convite à Indiferença. Mas, por outro lado, saber que ela é fatal, pode robustecer um certo voluntarismo: porque, com essa certeza fatatística, se robustece a fé. A fé na Ordem e de que tudo tem um sentido preciso orientado para um preciso e precioso fim ou objectivo.
E a ambiguidade das zonas mais subtis da Prática: fazer ou não fazer é indiferente. Mas não é inteiramente indiferente.
Por isso, não é indiferente que um procedimento se faça no sentido de acrescentar mais ser ao ser ou no sentido inverso da entropia e da morte perpetuada. Se é verdade que tudo está certo e que tudo acontece quando e como e porque tem de acontecer, é verdade também que está sempre presente a oportunidade de acrescentar ao grande ser mais um pouco do nosso ser, quer dizer, da nossa vontade exercida em função da Grande Vontade e, portanto, apesar do ego voluntarista ou voluntarioso que a limitaria. A vontade junto da Vontade Universal não «engorda» o ego mas ultrapassa-o.
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(*)Este texto de Afonso Cautela foi publicado no jornal «A Capital» (Crónica do Planeta Terra), 2/2/1980
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