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*DEEP ECOLOGY - NOTE-BOOK OF HOPE - HIGH TIME *ECOLOGIA EM DIÁLOGO - DOSSIÊS DO SILÊNCIO - ALTERNATIVAS DE VIDA - ECOLOGIA HUMANA - ECO-ENERGIAS - NOTÍCIAS DA FRENTE ECOLÓGICA - DOCUMENTOS DO MEP

2006-04-24

PROGRESSO 1992

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O PREÇO A PAGAR PELO PROGRESSO [ANDANÇAS DE UM CONSUMIDOR FELIZ – CONFISSÕES DE UM INADAPTADO]

24/Abril/1992

Se me tivessem dado uma carga de porrada, na esquadra do Rossio, não me tinha sentido tão humilhado e ofendido. No entanto, foi apenas um pequeno problema tecnológico, com a impressora Citizen, que não tem parado de me arranjar problemas, desde que, em 21/01/1991, em plena guerra do Golfo, fui compelido a adquirir mais essa unidade tecnológica e, meses mais tarde, terminada a guerra, em 10/12 (ou 12/10) de 1991, me senti igualmente compelido a melhorar a unidade tecnológica com um alimentador automático de papel A4.
Sim, porque o processo de folha contínua, de formato desnormalizado ainda por cima, não é coisa que se use na CEE, além de ser particularmente irritante para quem quer ter arquivos minimamente homogeneizados. Mas a fita de ontem foi apenas mais um capítulo dos muitos que esta odisseia tem tido. É que depois de tanta explicação, dada pelo técnico, depois de várias vezes ter ido e vindo ao vendedor, depois de ter recebido instruções como se eu fosse o Burro Mor da casa, enfim, depois daquelas sevícias menores que um processo de educação tecnológico-informática arrasta, ontem tudo se aproximou do sublime.
É que, tendo-se colocado a hipótese de haver avaria na própria impressora, lá fui carregado com a dita. O técnico queria que eu a deixasse para testes intensivos, mas lá foi acedendo (embora tivesse o tempo muito ocupado, como é normal e várias vezes me fez ver) a testar ali mesmo, à minha frente, a magnífica impressora Citizen.
Pois é. Mal ele acciona a ordem de impressão, a impressora entra imediatamente e entusiasticamente em acção, alimentando o papel como nunca fizera em casa, por mais que eu a programasse para «automatic Sheet Feeder» e seguisse à risca as instruções recebidas. E foi a humilhação completa, inenarrável. Se a impressora dava ali em pleno, porque não dava em minha casa entregue aos meus miseráveis cuidados? Só uma última hipótese - além da minha nabice - poderia subsistir: é porque o software do meu computador não servia para esta impressora. «Mas não fui eu que lhe vendi o software» - repetia-me o técnico da Intelgest, de cinco em cinco minutos, em ar de Pilatos que lava daí as suas mãos.
De facto, não foi a Intelgest que me vendeu o software, que por sinal é uma das duas últimas «versões» do windows. «Temos vendido centenas de impressoras, e nunca houve reclamações. Todo o mundo está satisfeito e feliz. O senhor é o único a protestar.»
Imagine-se como se pode sentir um cidadão consumidor, perante uma sentença destas. Único no Mundo a não conseguir harmonizar uma versão do windows já ultrapassada por duas outras novíssimas versões, com o último grito da tecnologia japonesa que é a Citizen swift 24.
Quem me mandou a mim ter arranjado o programa windows exactamente há três anos e ter vindo a comprar a impressora três anos depois? Quem me mandou a mim não saber, entre mil chances de compatibilidade, que havia uma de incompatibilidade e que logo ela me havia de sair na rifa?
Foi isso: enquanto a sorte grande foi para todos os outros clientes da Intelgest -- que levaram para casa impressoras igualíssimas à minha -- para mim foi a única hipótese de incompatibilidade.
Mas com requintes sofísticos inultrapassáveis: é que, no processo folha a folha (placa de alimentação normal) ou no maldito papel contínuo, ela acabou por funcionar, apesar de algumas peripécias não menos rocambolescas de «adaptação» entre as duas unidades tecnológicas em que me vi rocambolescamente metido. Mas ontem foi sublime. O homem oscilava entre o amável e o grosseiro. Já não sabia se me havia de mandar à merda, zangado, ou se me havia de cofiar o pelo, sugerindo a devolução da impressora e dando-me o dinheiro só para não me ouvir e ver mais na frente.
«Há mil softwares! Como é que eu vou adivinhar o que o senhor tem?» insistia ele, completamente histérico, quase tanto como eu, que estava no papel de crucificado e encostado à parede. «Ou crês ou morres» - ouvia eu, em imaginação, de qualquer Júpiter que sobre mim fazia cair os fulminantes relâmpagos da condenação final.
Se este episódio é trágico-patético, a verdade é que não foi o único no processo de aquisição do magnífico computador. Foi talvez o paroxismo do paroxismo. E eu, não há dúvida, tenho uma especial atracção pelos momentos paroxísticos, talvez porque é o que mais odeio nesta Civilização tecnológica que odeio. E mais sério do que parece é a hipótese de esta civilização voltar, sempre que pode, as garras contra mim.
Um simples vídeo, por exemplo, que também caí na asneira de comprar - a ver se via uns porno em casa para me alegrar - continua a deixar-me tão perplexo como se estivesse frente ao Enigma da Grande Pirâmide. É que, de vez em quando, entra numa de interferências de imagem, cuja causa não consegui localizar ainda e que levei meses a suspeitar que fosse da antena. Utimamente, pareceu-me que o problema também é dos tais que parecem anedota de tão minúsculo: a banana do vídeo que entra no receptor e a banana do receptor que entra no vídeo, parece não se ajustar, o que origina o mais temível de todos os azares e de todas as avarias: a INTERMITENTE. Se eu chamar um técnico, é cem por cento seguro que, frente ao técnico, o aparelho se mostrará perfeito e sem defeito.
Mal o técnico sair porta fora depois de cobrar a vinda, eis que o meu vídeo-projector entrará outra vez na «panne» intermitente. É nestes momentos que a tecnologia parece ter vida e cérebro e intuição e sentido vingativo.
Mas é também com estes exemplos que obtemos o mapa microgravado de toda a engrenagem do consumo. É a chamada e mítica «falha técnica» que tem levado a tão bons desastres como Chernobyl e Three Mile Island, isto quando não se substitui, com vantagem, pela mítica «falha técnica», pela supermítica «falha humana», que é a resposta universal e eterna da Puta desta Civilização aos pequenos nadas da Grande tecnologia.
Acima de tudo, aquela tecnologia que se não controla em casa e que implica chamar logo de imediato o médico, perdão, o Técnico, em cujas mãos repousa essa mesma civilização tecnológica. Quando chamo o engenheiro do esquentador que tenho em casa -- e que também tem uma falha do tal tipo intermitente -- assumo uma postura religiosa e de quase ritual. Um engenheiro de esquentadores não é para brincadeiras.
O mesmo para um engenheiro de sifões de sanita. Sabe-se lá que mistérios envolve! E o último sifão que me foi colocado (salvo seja) também, apesar do preço, tem o seu quê: puxa a água com pouca veemência e não arrasta como devia o material excrementício da sua obrigação. Mas em matéria de pequenos nadas que parasitam a Grande Tecnologia, o último teste que fui compelido a fazer, diz respeito a óculos: desta vez para a Ana Cristina. Lá fomos aviar a receita da médica, eu pressentindo já nesse mercado a tempestade que iria desenrolar-se, no contacto com o Técnico Oculista, que vive em eterno contencioso com o Oftalmologista, e o Consumidor pitosga no meio desta guerra. Ir hoje a uma casa de Óculos é um apelo à paciência búdica e um risco de claudicar em suicídio por desespero total.
Primeiro, os preços inflacionam de tal maneira que a gente fica de olhos esbugalhados a olhar pra aquilo. «Bem visto» diz o Solnado num anúncio televisivo. Depois, a inflação de modelos. Há sempre um melhor que outro. Com o ar mais natural desta vida, o Vendedor diz que há preços entre cinco mil e 150 mil contos. Uma pessoa com uns óculos de 150 contos no Nariz deve sentir-se o Nababo das Arábias.
Mas é claro que para uma criança de 19 anos, umas armações de 30 ou 35 contitos (tipo classe média)já não estão nada mal. Dos óculos abaixo de 10 contos, nem se fala: estão automaticamente na zona do ordinário e com os olhos - precioso bem - não se brinca. Portanto, quem gasta por amor, deverá gastar mais.
Mas pronto, a odisseia sobre armações pode ficar por aqui. Lentes normais, também a coisa é simplesmente complicada: a grande dificuldade é saber se se vai para a Zeiss -- que anuncia por toda a parte -- ou se se cai na Essilor -- que por toda a parte grunhe as virtudes da sua alta qualidade tecnológica. Mas lentes verdadeiramente patéticas são as chamadas «progressivas». Título que lhe deve ter sido posto logo após o 25 de Abril, em que as greves também eram progressivas e era, aliás, quase tudo progressivo, incluindo os que tinham tomado o monopólio do progressismo.
Mas lentes progressivas - meus senhores - são outra loiça, ou antes, outro vidro. Repartida a lente em três zonas, a fronteira entre a zona para perto, a zona para intermédio e a zona para longe é um cabelo fino de senhora. Os técnicos apuram-se e tudo fica perfeito: a cara do Utente é que, evidentemente, pode não ser perfeita. Pode não servir. E nem sempre um Nariz aguenta no milímetro exacto a exactidão desta faustosa e meticulosa tecnologia.
Foi o caso do meu Nariz. Meus senhores: depois de levar um ano a tentar adaptar-me -- porque fora avisado de que a adaptação a progressivas é um pouquinho difícil -- fui forçado a concluir que tinha que me adaptar afinal a ver mal. A grande tecnologia, afinal, não me punha a ver ao menos razoavelmente. E já que o computador é um destruidor de olhos que nem queiram saber. De então para cá, mês a mês, faço romagem ao Oculista, que me aperta os óculos, mas vai dizendo: «olhe que já pouco mais podemos fazer. Porque se lhe facilitamos a vista para perto -- para ler, por exemplo -- lá fica a intermédia -- para ver televisão, por exemplo --prejudicada.
E é nisto que estou. Entre a necessidade de ler e a necessidade de ver a telenovela das oito que me compense de todas estas sevícias diárias na promissora sociedade de Consumo. Se esta história épica não fosse já longa, ainda queria falar de mais alguns pequenos «quês» da grande tecnologia: desde que troquei o fotocopiadora, não têm cessado as melhorias que tive de introduzir para beneficiar de cópias negras. Já não sei quantas peças foram substituídas e quantas vezes, de cada uma, me é garantido que desta vez a cópia vai perdurar negra. Cada peça nova ronda os 10 ou quinze contos, fora os custos dos materiais renováveis e do trabalho do técnico. Que - diga-se - tenho a grande sorte de vir a casa, sorte que em outros domínios já ninguém tem: no computador, por exemplo, técnico a domicílio é coisa que só o Beja Santos, com as campanhas de «assistência pós venda» conhece.
Mas lá que o consumidor é feliz, porra, quem tem dúvidas? E que a tecnologia tem sempre razão. E que a máquina é bem mais inteligente que o consumidor. E que os técnicos é que têm sempre a última palavra. E que as incompatibilidades, nós é que as temos de saber todas na ponta da língua. E que se eu tiver dificuldades, é porque não li, em inglês, o livro de instruções, que para o computador tem umas 500 páginas, para a impressora 400, para o programa windows umas 700, etc, etc.
A culpa é minha - evidente - porque não li as instruções, que não são feitas, aliás, para outra coisa. Aliás, quererei eu ópera por dois tostões? Se tenho este animal doce e dócil que é o computador, se o processador de texto permite uma comodidade e uma flexibilidade estimáveis, porque raio não hei-de eu ter de pagar esses confortos com a moeda da aflição, da impaciência, da perda de tempo, do desespero, da humilhação, do passar por parvo, por estúpido, por desadaptado, por inimigo da civilização?
Porque raio me havia de ser dado de bandeja um instrumento de trabalho que tem algumas vantagens relativamente à esferográfica e à lousa escolar? Ressoa então por todo o Orbe aquela palavra de ordem universal: O PROGRESSO PAGA-SE. E como eu ontem, ao ser vergastado como um criminoso na Idade Média, senti bem o preço a pagar de estar vivo, feliz e contente no meio da GRANDE TRAMPA que é a sociedade de Consumo.
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