marcuse-1> - inédito ac de 1973 (parcialmente publicado?) – os anos cruciais - os dossiês do silêncio – polémicas ac com o meio ambiente – mein kampf – os guardas do gulag – da esquerda à esquerda A CONSCIÊNCIA ECOLÓGICA E A ESQUERDA DISTRAÍDA
12/4/1973 - No debate que, em 13 de Junho de 1972, o semanário Le Nouvel Observateur promoveu sobre Ecologia e Revolução, Herbert Marcuse salientou, muito a propósito, a capacidade que o Sistema tem para recuperar o que o critica. Daí a actualidade que a contestação tomou em todo o mundo, e daí que não haja hoje praticamente parte alguma em que não se fale e pratique o reformismo, que é precisamente a resposta do Sistema às críticas recebidas.
Se a crítica ao Sistema, efectuada por uma certa esquerda, alguma vez foi relevante, em relação às metamorfoses, regra geral subtis, que o Sistema e seus mecanismos de opressão vai tomando, essa crítica encontra-se hoje desactualizada e em adiantado estado de esclerose o comportamento político (que lhe fica) contíguo.
Esquece uma certa esquerda necrófila (entregue às glórias do passado), imobilista (incapaz de acertar o passo prospectivo com os acontecimentos), dogmática ( cristalizada em fórmulas feitas e em lugares comuns), esquece que o Sistema depressa cria imunidade aos ataques vindos do espaço exterior, tal como os insectos saem mais fortes quanto mais fortes são as doses de DDT que lhes aplicam. E os ratos.
Esquece uma certa esquerda, distraída e ultrapassada, que o Sistema para sobreviver lança mão de mecanismos repressivos e opressivos, muito menos claros do que outrora, mais subtis, muito mais enganadores porque se disfarçam sob as formas do proteccionismo, do paternalismo e do reformismo. Mecanismos capazes de enganar, portanto, os próprios esquerdistas, que, mal informados da evolução e das mutações verificadas nos processos contra-ofensivos do Sistema, sem o sentido crítico da História e sem consciência total da Abjecção totalitária (sem consciência ecológica) se deixam enredar neles, deles sendo os primeiros sequazes.
PERDEU VIRULÊNCIA
Se a crítica de certa esquerda teve alguma relevância, há anos, perdeu essa virulência quando perdeu a consciência e a noção do conjunto totalitário em que o Sistema se define e age.
Até, que mais não fosse, por contra-ofensiva à pressão das esquerdas, à existência de um Bloco Socialista, à descolonização do Terceiro Mundo e a todos os fenómenos “esquerdizantes", as direitas tomaram providências e, é evidente, deixaram de querer apanhar moscas com vinagre; começaram a usurpar a terminologia democrática; falam de salários e de justiça social; falam de reivindicações e do direito à greve; a direita chega a fingir que esquece o seu gosto pelo autoritarismo e até fala de diálogo, preconiza formas demoparlamentares, fala de um "partido monárquico' ou de um deputado maurrasiano; enfim, a fome do Mundo liofilizou-se através dos organismos internacionais encarregados disso e, de ajuda com as encíclicas sociais, a direita pode manifestar-se condoída pela sorte dos subdesenvolvidos; inventou-se a democracia cristã, houve mesmo bispos e padres propostos para o Prémio Nobel (que nunca falta nestas manobras recuperadoras do Sistema) que se tornaram famosos pela sua irreverência e, soi disant, inconformismo; celebram-se contratos de trabalho entre classe operária e classe patronal, reconhece-se que a "luta de classes" deve ser adoçada pela convivência das classes; a burguesia, mesmo, gosta de novelistas neo-realistas, lê a obra completa de Jorge Amado e Alves Redol, compra e põe nas estantes, vai ver os filmes inconformistas de Joseph Losey e, de propósito, é capaz de voar a Paris para ver "Decamerone" ou outra estreia aconselhada não pelo Le Figaro mas pelo Le Nouvel Observateur; raro é o dia em que as maiores personalidades mundiais não aludem à reforma educativa, no âmbito da OCDE, da UNESCO, do Conselho da Europa em Estrasburgo, etc; à reforma hospitalar, à reforma assistencial; já se "assiste" o trabalhador, de contrário ele emigra; já não se consente no desemprego, antes pelo contrário, há organismos especializados para garantir o pleno emprego e a procura excede a oferta no mercado do trabalho; a direita vai aprendendo, recuperando, assimilando o que antes fora a crítica feita por certa esquerda ; a tortura bárbara e crua evita-se e só em casos especiais se pratica, mesmo os "progroms" começam a ser mais raros, ninguém quer ver-se comparado a Hitler ou a Estaline, dois nomes que se impopularizaram através das conjunturas; a direita sabe que as formas indirectas, infiltrantes, difusas, são mais eficazes: duram mais tempo, atingem mais fundo, depositam-se no inconsciente colectivo que é a melhor reserva humana de conformismo, não suscitam ódios dos partidos inimigos, nem sequer são notados porque imponderáveis e invisíveis; preconiza-se mesmo, em discursos não menos humanitários e de não menor sentido social, o estímulo ao cooperativismo (agropecuário) e à organização sindical dos trabalhadores.
TRIBUNAIS DO POVO
Mas há uma certa esquerda que ignora toda esta estratégia de recuperação e continua criticando nos termos em que o fazia há muitos anos atrás. E é essa esquerda, (necrófila, saudosista, cristalizada em determinada fase histórica) que entende meter o franco-atirador no gueto, acusando-o de traição e reacção; é essa esquerda paralítica que ameaça de "tribunal sumário" e do povo o homem lúcido e consciente, atento aos factos e às realidades não iludido por mitos e fantasmas, é essa esquerda pequeno-burguesa e revisionista, liberalesca e parlamentar, reformista e pró-sindical, que nada fez para evoluir e actualizar-se (nem sequer ter ideias, que é a única faina patriótica num mundo de tarados e de imbecis), mas que, provocatoriamente, com um desaforo de desvergonha, quer obrigar os outros a ficar tão imóvel e cristalizada como eles.
OLÍMPIO DA DIREITA BAIXA
Eduardo Olímpio surge-me inopinamente dessa outra ala esquerda; ele que escreveu um livro de poemas intitulado O Franco-Atirador , ele que eu supunha perto das minhas preocupações e solidário na mesma segregação sofrida de sacristas e doutores pequeno burgueses, únicos com direito a levantar cabeça, opressores deste lumpen proletariado intelectual a que ele Olímpio e eu Afonso nos orgulhamos de pertencer; ele que eu julgava tão longe da esquerda necrófila, eis que se apresenta, pela direita baixa, acintoso, verrinoso, a querer-me processar (também!) , julgar e condenar. Tudo em processo (muito) sumário.
Só é pena que o Olímpio, ao fim e ao resto, recente foragido para esse campo de mortos, seja tão mau representante dessa outra e certa esquerda necrófila. Mas, ao fim e ao resto, foi ele que se me atirou desta feita às canelas e é a seu pretexto que deverei formular a minha própria defesa.
OS MECANISMOS DE OPRESSÃO
Esquecem os necrófilos passadistas, que os mecanismos de opressão, hoje, passam pelo conforto, como ontem passavam pela fome, pelo desemprego, pelo chicote ou pela violência; ainda se gasta muito disto (à esquerda e à direita) , mas os mecanismos de opressão que conseguem hoje alienar mais profunda e definitivamente os homens, embrutecê-1os e neutralizá-los, não são tão claros, tão evidentes, tão tradicionais.
E é disso, de ignorar as novas e terríveis armas da opressão doce, que se pode acusar, em absoluta consciência, uma certa esquerda distraída. Ela é que será, em tempo próximo, passível de tribunal da história e julgada; não os poucos que se limitam a ser testemunhas de acusação e de defesa do seu tempo, a estar lúcidos no meio do ecocídio generalizado.
Veremos, afinal, quem é que a humanidade vai julgar. Diga-se, aliás, que é esse o único julgamento que espero e desejo. Esse o juízo que estimo e respeito, não as histéricas convulsões da esquerda necrófila dos Eduardos em transe, acusando-me de mirabolâncias que são afinal, apenas, os fantasmas das suas próprias e ensandecidas cabecinhas, contaminadas também pela doença geral, lavadas pelos subtis processos de manipulação intensiva.
Ignora a esquerda distraída que dos próprios instrumentos de prosperidade, do próprio desenvolvimento económico, do próprio crescimento tecnológico e da própria explosão industrial (instrumentos em princípio muito solicitados pela esquerda necrófila) faz a direita (disfarçada de esquerda coexistente e progressista) os seus instrumentos de ataque, a sua arma de guerra.
A grande descoberta das direitas( que a esquerda ainda não conseguiu assimilar, provando a tese de Marcuse que a direita tem uma capacidade de encaixe e recuperação muito maior e mais veloz) foi utilizar o desafio das críticas, dizer que ia fazer e, fazendo ou fingindo, conseguir objectivos precisamente opostos aos , em princípio, preconizados pela esquerda.
É isso que a esquerda míope nunca mais vê, miopia que neste caso se pode ir classificando de crime.
A TOTALIDADE UNIDIMENSIONAL DA ABJECÇÃO
Além da característica enunciada por Marcuse - o chamado poder de encaixe, capacidade de recuperação e rapidez de resposta que tem o Sistema para aquilo que o critica - têm de comum ainda os mecanismos de opressão as circunstâncias seguintes:
1 - atingem, indiscriminadamente todas as classes, todos os seres humanos, todos os que se encontram economicamente mais débeis e numa dependência maior do meio ambiente e que, portanto, são os mais sensíveis: a água dos oceanos envenenada, o ar poluído, a hecatombe automóvel, o biocídio químico dos solos, a violência da alopatia e da cirurgia, todos os sectores do ambiente, em suma, levam de comum terem abolido as classes... Ou melhor, instaurado uma nova luta de classes entre sensíveis e insensíveis. De facto, a matança é indiscriminada, independente de raça, classe, idade, sexo ou crença religiosa; como soe dizer-se;
2 - a não espectacularidade do homicídio ambiente, é outro factor típico, específico desta opressão que certa critica ainda não atingiu: a infiltração lenta e insidiosa ( e nem só da radioactividade, a mais insidiosa de todas), a contaminação subterrânea e clandestina, característica típica e específica do homicídio ambiente, explica que não se torne visível ao observador de rotina que é sempre o observador prejudicado por pré conceitos e pré-juízos de grupo, partido, tertúlia ou escola de pensamento e ideologia; como é insidiosa e lenta, ninguém dá pela invasão, pela infiltração, pela contaminação (palavra que, por isso, se prefere à marota palavra "poluição");
3 - Absoluta generalidade, para lá de blocos, ideologias, regimes;
4 - Economia absoluta deste tipo de opressão: a opressão ambiente, com efeito, não precisa de burocracias, serviços, dactilógrafas, funcionários, policiamento ou cacetete; está estabelecida e age por si, a qualquer hora, sempre, em todas as circunstâncias; a opressão pelo ruído, por exemplo, que é só por si um programa que nem o mais requintado arquitecto de concentracionários poderia inventar, não precisa de nada nem de ninguém para se exercer; melhor, são as próprias vítimas da opressão pelo ruído que o produzem, ficando assim completamente gratuitos estes belos servidos prestados à comunidade...
5 - A opressão ambiente acirra a guerra civil entre os homens porque, sendo a fonte da opressão ambiente, abstracta (embora manifestada a níveis concretos, locais) e o carrasco um alvo invisível, ou tão vasto que se torna inalcançável, que deixa de ser alvo, a revolta dos indivíduos ainda não completamente condicionados dentro da jaula vira-se contra os próprios, que se entredevoram na mesma jaula, num canibalismo ecológico que foi a grande invenção dos concentracionários nazis: como se sabe, bastava deixar que, nos campas de morte, os prisioneiros se esfacelassem uns aos outros, sem suplementares despesas com a exterminação.
6 - A principal característica da opressão ambiente, porém, além das cinco enunciadas, é passar despercebida ao pretensamente mais evoluído, mais crítico e mais lúcido, mas que no entanto continua condicionado, até certo ponto, pela totalidade “unidimensional" da Abjecção.
Resulta daqui que essa totalidade unidimensional pode continuar a usar o crítico, sem qualquer oposição da esquerda necrófila (anterior à consciência ecológica), que dorme a sono solto e repetindo a espaços, com um olho aberto e outro fechado, os slogans da mitologia tecnocrática, já repetidos há vinte anos, no alvor da matança, quando começou o ecocídio acelerado e a opressão/repressão ambiente em escala planetária.
***