DEEP ECOLOGY 1973
1-3-73-04-12-ie=ideia ecológica - quarta-feira, 4 de Dezembro de 2002-scan
A CONSCIÊNCIA ORIGINAL DA UNIDADE PERDIDA (*)
["Diário do Alentejo", 12/Abril/1973] - Que o mundo seja, todo ele e em matéria de lucidez crítica, uma imenso deserto , enfim: a gente já conhece, já não liga e passa.
Mas que as minorias, os raríssimos nos quais reside afinal a nossa derradeira esperança de homens ainda humanos, se passem, inopinadamente, para o campo da Abjecção, eis o maior e inominável desespero. Eis o maior motivo de pessimismo. Se as minorias são o sal da Terra, então só nos poetas, nos raros artistas e escritores e em alguns filósofos que tenham ainda um pouco de profetas residiria a nossa única e última esperança.
No meio do fanatismo das ideologias, no meio do obscurantismo que se desculpa de causa política, no meio da estupidez que se vangloria de "combater" tudo quanto seja vivo, se subsiste ainda um resto de esperança seria apenas para acreditar nos poucos e raros e últimos poetas que haja neste tempo e mundo.
Quer dizer: nos últimos que teimam em resistir, em manter a imagem do homem, o rosto humano do homem. "Liberté, couleur d'homme" (André Breton)
CONSCIÊNCIA OU PERSPECTIVA ECOLÓGICA
Ora a condição sine que non desse "rosto humano" e desse rosto vivo da vida, é a consciência ou perspectiva ecológica. É a noção intuitiva e consciente, calma mas exaltante, de que habitamos todos o mesmo planeta e o mesmo universo, de que tão importante é o homem na sua cama, na sua casa, na sua oficina de trabalho, na rua e no seu lugar de ócio, como o sol na sua rota cósmica, a árvore na floresta, o peixe no rio, a ave no céu.
Tão importante é a dor humana como a da ave ou da planta e tão importante o direito à subsistência material como o direito aos imponderáveis afectivos, imaginativos, artísticos, que qualificam a existência.
Poeta, é o que mantém, ainda, apesar de tudo e contra todos, essa consciência original da unidade perdida, o que teima em religar, pela palavra simbólica, esses elementos da mesma unidade e do mesmo esplendor cósmico que uma civilização atomizante, homicida, pulverizou e dilacerou.
Poeta, seria o que ainda não se deixou vencer pelas mitologias estúpidas, pelos alibis, pelos slogans do especialismo, do cientifismo, do tecnicismo, do divisionismo estéril e criminoso (criminoso porque estéril), estes sim, os principais mecanismos ao serviço de todas as ideologias no processo de aviltamento humano e de abjecção.
Ora a forma de colaboracionismo com a Abjecção hoje mais directa é destituir a consciência ecológica do seu lugar prioritário em relação a tudo o que se passa sobre o planeta terráqueo (só há uma maneira de se destituir a ecologia dessa prioridade: é mudar de planeta).
Porque ela (consciência ecológica) unifica onde os outros dividem, pesa e dignifica onde os outros segregam e degradam, porque ela defende a vida onde os outros atulham de química, porque ela respeita a criação onde os outros perpetram sistemático biocídio, porque ela sustenta o amor e a liberdade onde os outros, por um prato de lentilhas, se vendem à escravidão do consumismo e à histeria das violências paternalistas (incluindo a violência das cirurgias, das vacinas ou de outras a quem ninguém alude - porquê?).
Precisamente porque não é a vida de um só homem que me preocupa, mas a vida de todos os homens (incluindo os que morrem na Indochina com desfolhantes) é que me preocupa um metro quadrado de floresta e vice-versa. Porque me preocupa saber, por exemplo, se cada folha de papel em branco que é gasta (que eu gasto) a aproveitei no verdadeiro sentido ou se andei também a desperdiçar, com ela, floresta.
E preocupa-me saber isso, não só pela tal razão do ecossistema (todas as formas de vida são interdependentes, não sou eu que o digo, mas os cientistas); não só pela razão do ecossistema, que é razão mais que suficiente, mas porque só a consciência do Ecocídio é hoje consciência humana do homem, simultaneamente (pre) ocupada a nível universal e a nível individual.
POLUENTES E ANTI-POLUENTES
Quando falo de consciência ecológica (a tal que o “slogan" da palavra "poluição" tenta reduzir demagogicamente e também a um dilemazinho caseiro entre poluentes e anti-poluentes, a um problema portanto doméstico de lixo que se produz e de lixo que logo a seguir se varre, indo todos p’ra casa satisfeitos) penso em todos os homens que morrem porque o ambiente inumano os assassina, a curto ou longo prazo: ambiente que é a casa, a rua, a oficina, a cidade, o país, a cultura, a ideologia, o partido, todos os círculos concêntricos de que o indivíduo é o centro e dentro dos quais está inserido, envolvido e de que fatalmente é função.
Quando falo de meio inumano penso, por exemplo, num dos múltiplos capítulos que os palradores da "poluição" sistemática e cautelosamente omitem: as doenças de ambiente, que são quase todas, quer as congénitas como o mongolismo, quer as infecto-contagiosas como a tuberculose, quer as endémicas como o paludismo e a cólera, quer as degenerativas como o cancro e as cardíacas, quer as traumáticas como os acidentes de viação e os acidentes de trabalho, etc etc.
A causa das causas é sempre de ambiente; os homens sofrem, porque o ambiente os faz sofrer, porque lhes cria carências - desde a fome ao afecto - , porque os aliena, porque os traumatiza, porque os violenta, porque os intoxica, porque os adoece, porque os tiraniza, porque os escraviza, porque centenas de anos de pseudo-civilização em vez de pura e simplesmente lhes humanizar o ambiente natural apenas lho degradou, sem, em troca, lhes dar um ambiente artificial mas humano.
ATENÇÃO SIMULTÂNEA AO TODO UNIVERSAL E AO LOCAL
O que a consciência ecológica permite (e só ela, especìficamente, permite) é a justa hierarquia de todos os seres viventes e da sua relacionação, sem segregações, sem racismos, sem favoritismos, sem padrões ou cânones paternalistas. Só a consciência ecológica é uma interconjugação de criaturas, é uma atenção simultânea ao todo universal e ao local, ao regional, ao individual.
Má fé é acusar a Ecologia de preferir a árvore ao homem, quando a Ecologia é o esforço sobrehumano de resistência à vaga homicida que precisamente pretende sobrepor (e com que sanha, Deus nosso) ao homem e à árvore (aos seres vivos no seu conjunto) o objecto, o inerte, o inorgânico, o químico, o material, o mecânico, o motorizado, enfim, toda a coisa mecânico-tecnicista. Este o dilema e não, e nunca homem contra árvore.
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(*) Este texto de Afonso Cautela, foi publicado no «Diário do Alentejo», (Beja) , em 12 de Abril de 1973, graças à atenção e hospitalidade do meu querido e inesquecível amigo José António Moedas
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A CONSCIÊNCIA ORIGINAL DA UNIDADE PERDIDA (*)
["Diário do Alentejo", 12/Abril/1973] - Que o mundo seja, todo ele e em matéria de lucidez crítica, uma imenso deserto , enfim: a gente já conhece, já não liga e passa.
Mas que as minorias, os raríssimos nos quais reside afinal a nossa derradeira esperança de homens ainda humanos, se passem, inopinadamente, para o campo da Abjecção, eis o maior e inominável desespero. Eis o maior motivo de pessimismo. Se as minorias são o sal da Terra, então só nos poetas, nos raros artistas e escritores e em alguns filósofos que tenham ainda um pouco de profetas residiria a nossa única e última esperança.
No meio do fanatismo das ideologias, no meio do obscurantismo que se desculpa de causa política, no meio da estupidez que se vangloria de "combater" tudo quanto seja vivo, se subsiste ainda um resto de esperança seria apenas para acreditar nos poucos e raros e últimos poetas que haja neste tempo e mundo.
Quer dizer: nos últimos que teimam em resistir, em manter a imagem do homem, o rosto humano do homem. "Liberté, couleur d'homme" (André Breton)
CONSCIÊNCIA OU PERSPECTIVA ECOLÓGICA
Ora a condição sine que non desse "rosto humano" e desse rosto vivo da vida, é a consciência ou perspectiva ecológica. É a noção intuitiva e consciente, calma mas exaltante, de que habitamos todos o mesmo planeta e o mesmo universo, de que tão importante é o homem na sua cama, na sua casa, na sua oficina de trabalho, na rua e no seu lugar de ócio, como o sol na sua rota cósmica, a árvore na floresta, o peixe no rio, a ave no céu.
Tão importante é a dor humana como a da ave ou da planta e tão importante o direito à subsistência material como o direito aos imponderáveis afectivos, imaginativos, artísticos, que qualificam a existência.
Poeta, é o que mantém, ainda, apesar de tudo e contra todos, essa consciência original da unidade perdida, o que teima em religar, pela palavra simbólica, esses elementos da mesma unidade e do mesmo esplendor cósmico que uma civilização atomizante, homicida, pulverizou e dilacerou.
Poeta, seria o que ainda não se deixou vencer pelas mitologias estúpidas, pelos alibis, pelos slogans do especialismo, do cientifismo, do tecnicismo, do divisionismo estéril e criminoso (criminoso porque estéril), estes sim, os principais mecanismos ao serviço de todas as ideologias no processo de aviltamento humano e de abjecção.
Ora a forma de colaboracionismo com a Abjecção hoje mais directa é destituir a consciência ecológica do seu lugar prioritário em relação a tudo o que se passa sobre o planeta terráqueo (só há uma maneira de se destituir a ecologia dessa prioridade: é mudar de planeta).
Porque ela (consciência ecológica) unifica onde os outros dividem, pesa e dignifica onde os outros segregam e degradam, porque ela defende a vida onde os outros atulham de química, porque ela respeita a criação onde os outros perpetram sistemático biocídio, porque ela sustenta o amor e a liberdade onde os outros, por um prato de lentilhas, se vendem à escravidão do consumismo e à histeria das violências paternalistas (incluindo a violência das cirurgias, das vacinas ou de outras a quem ninguém alude - porquê?).
Precisamente porque não é a vida de um só homem que me preocupa, mas a vida de todos os homens (incluindo os que morrem na Indochina com desfolhantes) é que me preocupa um metro quadrado de floresta e vice-versa. Porque me preocupa saber, por exemplo, se cada folha de papel em branco que é gasta (que eu gasto) a aproveitei no verdadeiro sentido ou se andei também a desperdiçar, com ela, floresta.
E preocupa-me saber isso, não só pela tal razão do ecossistema (todas as formas de vida são interdependentes, não sou eu que o digo, mas os cientistas); não só pela razão do ecossistema, que é razão mais que suficiente, mas porque só a consciência do Ecocídio é hoje consciência humana do homem, simultaneamente (pre) ocupada a nível universal e a nível individual.
POLUENTES E ANTI-POLUENTES
Quando falo de consciência ecológica (a tal que o “slogan" da palavra "poluição" tenta reduzir demagogicamente e também a um dilemazinho caseiro entre poluentes e anti-poluentes, a um problema portanto doméstico de lixo que se produz e de lixo que logo a seguir se varre, indo todos p’ra casa satisfeitos) penso em todos os homens que morrem porque o ambiente inumano os assassina, a curto ou longo prazo: ambiente que é a casa, a rua, a oficina, a cidade, o país, a cultura, a ideologia, o partido, todos os círculos concêntricos de que o indivíduo é o centro e dentro dos quais está inserido, envolvido e de que fatalmente é função.
Quando falo de meio inumano penso, por exemplo, num dos múltiplos capítulos que os palradores da "poluição" sistemática e cautelosamente omitem: as doenças de ambiente, que são quase todas, quer as congénitas como o mongolismo, quer as infecto-contagiosas como a tuberculose, quer as endémicas como o paludismo e a cólera, quer as degenerativas como o cancro e as cardíacas, quer as traumáticas como os acidentes de viação e os acidentes de trabalho, etc etc.
A causa das causas é sempre de ambiente; os homens sofrem, porque o ambiente os faz sofrer, porque lhes cria carências - desde a fome ao afecto - , porque os aliena, porque os traumatiza, porque os violenta, porque os intoxica, porque os adoece, porque os tiraniza, porque os escraviza, porque centenas de anos de pseudo-civilização em vez de pura e simplesmente lhes humanizar o ambiente natural apenas lho degradou, sem, em troca, lhes dar um ambiente artificial mas humano.
ATENÇÃO SIMULTÂNEA AO TODO UNIVERSAL E AO LOCAL
O que a consciência ecológica permite (e só ela, especìficamente, permite) é a justa hierarquia de todos os seres viventes e da sua relacionação, sem segregações, sem racismos, sem favoritismos, sem padrões ou cânones paternalistas. Só a consciência ecológica é uma interconjugação de criaturas, é uma atenção simultânea ao todo universal e ao local, ao regional, ao individual.
Má fé é acusar a Ecologia de preferir a árvore ao homem, quando a Ecologia é o esforço sobrehumano de resistência à vaga homicida que precisamente pretende sobrepor (e com que sanha, Deus nosso) ao homem e à árvore (aos seres vivos no seu conjunto) o objecto, o inerte, o inorgânico, o químico, o material, o mecânico, o motorizado, enfim, toda a coisa mecânico-tecnicista. Este o dilema e não, e nunca homem contra árvore.
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(*) Este texto de Afonso Cautela, foi publicado no «Diário do Alentejo», (Beja) , em 12 de Abril de 1973, graças à atenção e hospitalidade do meu querido e inesquecível amigo José António Moedas
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