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*DEEP ECOLOGY - NOTE-BOOK OF HOPE - HIGH TIME *ECOLOGIA EM DIÁLOGO - DOSSIÊS DO SILÊNCIO - ALTERNATIVAS DE VIDA - ECOLOGIA HUMANA - ECO-ENERGIAS - NOTÍCIAS DA FRENTE ECOLÓGICA - DOCUMENTOS DO MEP

2006-08-08

E.F.SCHUMACHER 1985

1-3 - schumach-4-ls> segunda-feira, 30 de Dezembro de 2002-scan

TEMPO DE VIRAGEM (*)

[«Crónica do Planeta Terra», «A Capital», 10-8-1985]


Na esteira de E. F. Schumacher, pensador e economista falecido em 1977, multiplicam-se os simpósios e as mesas-redondas para estudar a sua obra e desenvolver as premissas do seu sistema filosófico.

As consequências deste pensador rebelde são tanto mais tremendas quanto, até hoje, ainda não foi possível recuperá-lo e pô-lo ao serviço do sistema que combateu. O seu ensaio sobre «economia budista», caindo como um raio sobre os meios científicos académicos da época, suscitou os inevitáveis engulhos, mas desencadeou também uma atenção crescente dos investigadores que compreenderam encontrar-se aí a viragem necessária.

E não falo dos místicos que há muito se converteram à sabedoria primordial, falo dos cientistas de cuja «positividade» não se poderá duvidar nem pôr em causa. Tão-pouco falo de escritores, artistas e pensadores que assumem hoje a radicalidade contra o sistema. É fácil, contra esses, ao cientista ortodoxo atirar-lhes o anátema de «místicos» com toda a carga pejorativa que o cientista coloca nesta palavra.

Já a meio da década de 80, estamos em Portugal na mesma situação intelectual que acolheu, durante os anos 50 e 60, as ideias revolucionárias de E. F. Schumacher sobre a economia e o crescimento económico erigido em deus dos planificadores.

«Louco idealista» foi o menos que chamaram então a Schumacher.

Mas é ainda o que lhe chamam em Portugal os pretensos vanguardistas, exactamente quando os seus livros se tornaram «best-sellers» mundiais, quando por toda a parte se formam sociedades para estudar a sua obra, quando o seu ensaio «Economia Budista» se tornou um
clássico e quando a sua palavra de ordem «small is beautiful» se tornou bandeira de importantes movimentos sociais.

Regularmente, o Grupo de Desenvolvimento de Tecnologia Intermédia, de Londres, ao mesmo tempo que publica a revista «Resurgence» promove colóquios sobre a obra de Schumacher para os quais convida cientistas de nomeada. Um desses simpósios foi coligido em volume, intitulado «The Schumacher Lectures».

NO GUETO E À MARGEM

Portugal, no seu habitual borralhinho cultural, continua à margem disto tudo. As questiúnculas internas do País, devidamente salgadas com os rigores da austeridade, não deixam os responsáveis (pelos principais pelouros da administração) perceber que o mundo intelectual de vanguarda marcha agora a outra velocidade, num outro comprimento de onda, movido por outras metas, inspirado por outros princípios, orientado por outra moral.

Imutáveis, monolíticos, imobilistas, indefectíveis, os discursadores oficiais do Reino consideram-se estrelas da última hora, campeões do progresso e da modernidade. Quando falam em modernizar o País, eles referem-se a coisas que deixaram de ser modernas há uns bons vinte anos. Os fósseis do nosso meio científico, intelectual e cultural são, com os seus pretensos modernismos, apenas risíveis, se vistos à luz da dinâmica tomada pelas correntes de fundo que agitam, de facto, a cultura contemporânea.

Uns porque agarrados à vulgata marxista, outros porque agarrados à bíblia estruturalista, outros porque eurocratas e europeístas, outros porque assim, outros porque assado, não é a sua figura de múmias o preocupante, já que o problema é deles.

Preocupante, para o País, é que são estas luminárias/alimárias quem continua a mandar aqui, através das chamadas tecno-estruturas, a decretar as escalas de valor onde os outros terão que ser aferidos.

As elites intelectuais em Portugal estão a conduzir-nos para uma espécie de gueto, para um buraco sem esperança nem horizontes, literalmente à margem da vanguarda europeia.

FIM DA VIA ÚNICA

A sociedade foi, durante séculos, impregnada por uma visão do mundo que, partindo da observação analítica da realidade - o método científico -, acabaria por institucionalizar e eternizar essa visão. A imagem estática da vida e do mundo acabaria por imobilizar a própria vida e o próprio Mundo, mumificado e paralisado na sua dinâmica natural. A realidade degradou-se e mutilou-se à medida dessa visão, que o método científico e a observação analítica impuseram.

O «drama», que fundamentalmente se traduz na crise ecológica de hoje, é que se tornou ontológico o que era metodológico, se fez definitivo o que era provisório, se instituiu em dogma o que começou por ser uma teoria. A sociedade passou a ser unidireccional e unidimensional. O que era uma das várias vias possíveis para essa sociedade, tornou-se a única que, ainda por, cima e como provam os factos (a crise ecológica), nem sequer era a melhor.

Até se modificar a raiz, a visão do mundo que está na origem da crise actual, vai um complexo processo de autocrítica, difícil de assumir principalmente pelos que têm uma profissão vinda directamente das ciências que essa visão do mundo sustenta. Não é das ciências em si que o impulso detonador para a mudança pode hoje partir, mas de uma posição filosófica, de uma visão do mundo- que se lhes antecipe e que tenha independência crítica em relação a elas.

É para esse salto em frente, para essa mutação qualitativa, para essa revisão da visão do mundo que apontam as eco-alternativas em geral e as tecnologias leves em particular.

A inércia dos meios científicos ortodoxos oferece uma resistência quase infinita a esta inovação crítica. E os próprios funcionários das ciências que materialmente beneficiam deste estado de coisas - estático e imobilista - constroem periodicamente teorias tendentes a conservar o «status», a manter o imobilismo, a prorrogar o sistema que hoje se encontra em guerra aberta com os ecossistemas.

Inclusive, o sistema adoptará e recuperará qualquer dinâmica nascente que ameace pô-lo em questão e em causa: a ecologia, por exemplo, já foi recuperada, esvaziada da sua radicalidade, posta ao serviço de tudo o que em princípio deveria contestar.
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(*) Este texto de Afonso Cautela, 5 estrelas sobre o novo paradigma, foi publicado, sabe-se lá com que habilidades, na «Crónica do Planeta Terra», «A Capital» , 10-8-1985
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ABJECÇÃO 1972

1-3 - 72-08-10-ie = ideia ecológica - abjecção-1-ie


ESTRUTURA(S) DA ABJECÇÃO(*)

10-8-1972

[(*) Este texto de Afonso Cautela, obviamente 5 estrelas, até pela data em que foi escrito, continua rigorosamente inédito. Nem como manifesto abjeccionista foi publicado...]

Há factos que, pela força do hábito, já não notamos como anómalos. Foram-no sempre, não temos distanciamento crítico para percebermos, pois, que o foram. As maiores evidências são, assim, para nós, um dia, as maiores surpresas.
Mas se reflectirmos um pouco e um pouco distanciadamente sobre a quantidade de objectos, de produtos, de dados, eventos e mitos que nos cercam, que constituem o nosso habitat tradicional, indiscutível, começamos a perceber como são, por exemplo, absurdamente excessivos ( em quantidade) e proliferantes.
Como sofremos constantemente de gigantismo.
Como a inflação e o supérfluo são norma diária na política, na economia, na cultura, na arte, em suma, em tudo o que consumimos.
Começamos a perceber como a quantidade esmaga a qualidade, como se analisa e fragmenta, como se pulveriza e desintegra, como tudo, centrifugamente, tende para a dispersão e a multiplicação desordenada, anárquica, cancerosa. E como toda essa euforia multiplicante significa morte, já que morte significa sempre uma multiplicação de quantidade que devora uma qualidade, uma invasão de nadas e supérfluos, um afogamento do espiritual no material.
A estatística, então, será a obsessão dos especialistas que melhor servem o sistema. Os recordes apaixonam os cidadãos não só nos estádios como nos laboratórios, ganhar prémios e primeiros lugares é a constante de uma estrutura hieráraquica onde alguém submete sempre alguém, onde alguém explora sempre alguém, onde alguém oprime sempre alguém.
Constantes de uma organização hierárquica onde, a restabelecer a ordem, intervém sempre como inevitável, salvadora e providencial, a Autoridade, temos não só o paternalismo e o colonialismo, como todos os outros nomes que assumem: opressão, exploração, racismo, segregação.
Depois, para produzir coisas tão diversas e tão levadas à minúcia da especialização, é preciso técnicos, especialistas. O homem (o indivíduo) , o cidadão, o consumidor, o utente, o munícipe, o contribuinte, o paciente, o doente, etc., etc, fica então dependente do especialista, do técnico, pois ele nunca será especialista de nada, ou se for, tanto dá, porque em tudo o mais ficará na dependência dos mil e um especialistas.
Apercebemo-nos (mas aperceber-nos-emos mesmo?) a pouco e pouco de que uma profunda anomalia reside na origem e na estrutura de tudo isto.
Logo vem um funcionário do Sistema dizer que não, desculpar uma falha ou erro, prometer o paraíso para depois de amanhã, pedir-nos que esperemos mais uns tempos e, então, a ciência e a técnica tudo resolverão.
Com ajuda de bons especialistas na Economia, na Política, na Educação, na Medicina, tudo se resolverá em bem,
O aleatório entra assim em cena como componente indispensável da estrutura que tenho vindo a descrever. Esperar, esperar, esperar sempre, até que os especialistas se conjuguem e da sua acção conjugada nasça enfim a felicidade do cidadão!
Felicidade quantitativa, claro, já que de quantidade se tratou unica e simplesmente desde sempre, desde o início até ao termo (?) do processo.
O desperdício não caracteriza apenas uma estrutura de produção que se designa por capitalista: o gigantismo, a proliferação desordenada de objectos, produtos, dejectos, dados e signos caracteriza toda a estrutura cultural apoiada na indústria, esta na técnica e esta na ciência.
A análise ou desintegração da realidade não é apenas característica do capitalismo nem deste é específica a dualidade estabelecida por todo o esforço inicial de conquistar a Natureza: é de toda a ordem cultural vigente, Tecnocracia lhe chamam uns, outros Industriocracia, outros Sociedade de Consumo, e outros Abjecção.
Desde que a análise (e não a síntese das vias iniciáticas) preside ao conhecimento do mundo, está implicado nela, desde logo, um processo inevitável de violência e violentação desse mundo, dessa natureza, dessa realidade.
Domínio, violência e violentação que se estende automaticamente à realidade humana. Automatica e logicamente, constituindo um básico, radical domínio do homem pelo homem, uma básica e radical luta de classes.
Desperdício, proliferação, análise e violência andam interligados no modus vivendi tecno-burocrático.
Querem alguns ingénuos que o desperdício e o suicídio da humanidade pelo desperdício de recursos naturais e pela violentação do equilíbrio ecológico podem ser evitados com um modo de produção socialista.
Não vejo muito bem como e se se preconiza a industrialização (com o alibi do terceiro mundo e do subdesenvolvimento que o desenvolvimento foi pilhar através dos séculos dos séculos, amen), se a industrialização se baseia na técnica e se a técnica nasce da ciência analítica, não vejo como todos os mitos desta ciência, desta técnica e desta indústria miraculosamente deixam de ser perniciosos para passarem a benéficos, e de destruidores da natureza passam a seus protectores.
"Dominar a Natureza" continua a ser o leit-motiv de todos os funcionários que garantem a ordem "cultural" estabelecida e não vejo como desse domínio possa resultar mais do que depredação, anarquia, violência e morte.
Quer dizer: nenhumas alternativas ficam para esta civilização, que não sejam outros padrões de civilização diferentes, ou, pelo menos, diferentes num ponto-base, num ponto-chave. Se o indivíduo, na civilização do aleatório, nunca se autobasta, precisa sempre da organização dita social, fica sempre na dependência da política, da economia, da educação, em suma, da estrutura, do sistema, do Establishment.
Se está doente, ele automaticamente será um doente que precisado fica de médico toda a vida.
Se está educando, será educando toda a vida e toda a vida precisando educador.
Se está peão precisado de transporte, consumidor precisado de mercados, toda a vida ele ficará na dependência  de entidades, instituições, funcionários. Nunca se autobastará.
No dia em que fosse revelada por um Lovecraft qualquer existência de comunidades onde o indivíduo se auto-baste, sem esperar que venha o técnico desta e daquela especialidade satisfazer-lhe esta e aquela necessidade, esse dia seria o princípio do fim para a brilhante civilização da tecnicidade.
Porque, como se vê, a tecnicidade joga aqui em relação muito íntima com os outros componentes da estrutura: hierarquia, autoridade, paternalismo, inflação, aleatório, análise e desperdício.
Todos estes componentes (e alguns mais, não enumerados agora) formam uma estrutura inamovível que é a do sistema cultural em que estamos.
Revolução só se poderá definir por outra estrutura cultural em que todos aqueles componentes nem intervenham nem joguem entre si como interdependentes. Pela sua inamovibilidade, aliás, é que constituem uma estrutura.
Relações aparentemente inexistentes tornam-se a esta luz óbvias e claras: Paternalismo e aleatório, por exemplo, desconhecidos os elos intermédios, podem considerar-se sem relação de causa e efeito, relação que logo se torna óbvia a um exame dos encadeados.
Reparemos, por exemplo, que entrando na engrenagem ou inércia inflacionária, é impossível deter o surto daí resultante: é impossível evitar que proliferem, desordenada e superfluamente, produtos que acabam por ser inúteis, signos, objectos e dados que atravancam o espaço, o silêncio, o tempo e a existência. Acabam, então, por se deteriorar.
Produzem-se bombas e é impossível que a produção de bombas não siga uma trajectória exponencial.  Resultado: inventam-se guerras para dar saída ao excesso de bombas.
Produzem-se medicamentos, inflacionária, excessiva! ultra-superfluamente. Resultado: é impossível que a lógica vá impedir de inventar doenças, multiplicar doenças, sub-dividir doenças para dar saída e consumo a esses medicamentos.
Produzem-se automóveis para 1á do necessário. Resultado: os acidentes de viação tornam-se virtualmente uma necessidade e todas as campanhas de segurança rodoviária uma manifestação de reformismo.
Por outro lado, as verdadeiras necessidades não são nunca satisfeitas, porque de qualidade.
Autoridade e paternalismo chegam assim para assegurar ao doente a ilusão de que não pode passar sem médico e sem medicamentos, o aluno não pode passar sem professor, o governado não pode passar sem governante, o peão sem polícia, o motorista sem código de estradas.
Isto é um mito criado pelo Sistema para garantir um intérmino paternalismo, uma autoridade indiscutível e uma exploração do indivíduo. Não se faz de cada doente um médico de si próprio, nem de cada educando um professor, nem de cada governado um cidadão, porque a dependência da autoridade é uma garantia de estabilidade do Sistema e porque se proclamará sempre a necessidade de mais médicos, mais técnicos, mais especialistas.
Mais, sempre mais. A carência em número será ainda um alibi para todos os fracassos qualitativos da política da Quantidade.
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(*) Este texto de Afonso Cautela, obviamente 5 estrelas, continua rigorosamente inédito. Nem como manifesto abjeccionista foi publicado...
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