74-01-27-ie-bd> = ideia ecológica - scan - domingo, 17 de Novembro de 2002 – para 74 é demais... LEPRA E POLUIÇÃO - QUE CONFUSÃO DE NARIZES(*)
(*) Este texto de Afonso Cautela, foi publicado, com este título, no caderno nº 9 da colecção «Mini-Ecologia», edição «Frente Ecológica», com a astronómica tiragem de 100 exemplares 27/Janeiro/1974 – O Dia Mundial dos Leprosos, celebrado a 27 de Janeiro, é todos os anos moti-vo para uma vaga de vaga retórica que, não mudando nunca o registo, me parece digna de certa atenção crítica.
Salvo o devido respeito que um budista deve manter por todas as confissões religiosas e dado que, neste caso da lepra, evangelistas cristãos, leigos cari-tativos e católicos se disputam entre si a primazia de melhor proteger o leproso, gostaria de alinhar umas palavras de heresia que, em desacordo com aquelas seitas religiosas, pretendem apenas dar o ponto de vista ateu e, ainda, estar em desacordo com a seita dos ateus microbiologistas.
A celebração do leproso teve este ano a consolidá-la o aniversário da "descoberta", por Gerardo Hansen, do bacilo que ficaria com o seu nome e ao qual bacilo, doravante, se "atribuiria" a causa (sic) da lepra.
Heresia, portanto, face aos irmãos desses três campos, é a retórica com que hoje me ocupo em responder à retórica consabida na respectiva data.
Comecemos pelo "apóstolo" da caridade paternalista, Raoul Follereau, fundador do Dia Mundial dos Leprosos e que, segundo o registo, festejou 70 anos em Agosto do ano passado e acha que é a altura de passar à reforma, após tantos anos de apostolado e de discursos.
Follereau cristaliza aquele movimento de reacção que, perante antigos e ancestrais preconceitos, já acha progressivo mudar a atitude moral das pessoas para com o leproso, considerado "gafado" pelas seitas religiosas medievais e comparável por isso ao herege, vaiado e expulso das comunidades, obrigado a fazer-se anunciar por um chocalho.
Embora o chocalho tivesse sido posto de parte, esse horror ao leproso é ainda hoje corrente e persiste na ancestralidade que em todos nós persiste. Mas não admira. Também para com o louco, o nosso comportamento não é muito menos medieval e o tratamento que lhe era dado pelo entourage social e pelas clínicas da especialidade (!), até há pouco tempo, primava pelo barbarismo e pela irracionalidade.
Mas - e é aqui que esta minha retórica quer chegar - não se julgue que a fase paternalista seguinte e em que parcialmente ainda nos encontramos, vem adiantar seja o que for; quer em relação ao leproso, quer em relação ao louco, quer em relação a qualquer outro marginal.
No caso do louco, apenas e por enquanto a anti-psiquiatria veio demonstrar porque era reaccionário o tratamento paternalista dado ao "internado" e tão medieval afinal como o dos tempos medievais propriamente ditos.
No caso do louco, como do leproso - como de todo o marginalizado - atitude não reaccionária é a que recolhe do ambiente a explicação real e radical da "doença". E tão medieval é classificar de "gafado" o leproso e de "possesso" o louco como supor que a verdadeira causa da lepra é um bacilo, aquele bacilo que Hansen "descobriu" e combatendo o qual se julga combater a lepra. Então, se se combate, porque é que continua a haver leprosos e, segundo a OMS, com acentuada tendência para aumentar o seu número? Porquê?
O bacilo de Hansen - e todos os bacilos descobertos ou a descobrir - são outra das supremas manobras que a reacção tem para iludir a causa evidente de doenças tão evidentemente sociais, tão evidentemente políticas, tão evidentemente de causa económica e ecológica e ambiental como são a loucura, a lepra, a cólera, o cancro, a silicose e tantas, tantas outras (acrescentaria: todas).
De acordo: o bacilo está lá, há sempre um bacilo que espera por nós a ver se nos surpreende descalços e hoje, modernamente, somos muito avançados porque já não consideramos o leproso um "gafado", só o tomamos um "doente como os outros" e como quer o apóstolo Follereau.
Mas mais avançados seríamos se puséssemos o dedo na ferida, quer dizer no alvo, diagnosticando a lepra, a loucura, a cólera, o cancro, a silicose, pelas causas radical e obviamente ambientais: promiscuidade, exploração económica, falta de higiene, insalubridade, hipo-alimentação, enfim, que posso eu dizer que não seja evidente aos olhos de todos e aos olhos dos próprios que, depois de reconhecerem todos esses factores determinantes e condicionantes da doença, se voltam de imediato e outra vez para o bacilo, o vírus, a bactéria (ou para o diabo por eles?).
Tamanha alergia à evidência e à inteligibilidade racional do Universo que se pode ler como um livro aberto, eis o que um budista não compreende.
A RETÓRICA EVANGÉLICA
Passemos agora a outro tipo de retórica que o Dia Mundial dos Leprosos normalmente excita e a que tive ocasião de pessoalmente assistir, este ano, no Templo Evangélico da Paróquia de São Paulo, às Janelas Verdes, em Lisboa.
Era orador o reverendo Eduardo H. Moreira, que não se cansou de nos exortar à irmandade fraterna e à comunicação entre todos os filhos do mesmo Pai.
Não sei se um budista estaria debaixo da asa abençoadora do simpático reverendo, mas pressuponho que sim e anichei-me melhor no banco para o ouvir, ungido da mesma domingueira fé na sagrada eucaristia e na camaradagem entre "irmãos separados".
Ouço-o falar no "Cosmos" - palavra que os gregos usaram indistintamente para significar o reino de Deus todo cheio de Luz, o mundo que Deus ama, como o mundo desprezável, o mundo social que o homem tem criado.
E logo aqui a minha alma se assusta: porquê desprezável o mundo que o homem criou? Ou antes: será inevitavelmente desprezável o mundo criado pelo homem? Em suma, a cultura e a civilização serão sempre "desprezáveis"?
Outra pergunta: falando só da doença em causa - a lepra - porque será que só na Baixa Idade Média, como informou o Reverendo, se assistiu a tamanha endemia de lepra? E porque será que a lepra acompanha sempre as narrativas dos Evangelhos, como se confirma pelas várias passagens lidas durante a liturgia que ali foi celebrada? Forque será que a lepra não consta (ou consta?) de outros livros sagrados e de outras civilizações?
Para isso, tinha eu uma resposta de nacionalista estrénue: se a religião cristã recomendou sempre o ódio ao corpo (logo à higiene, à água, ao sol, aos agentes físicos purificadores) qualquer ambientalista mesmo vesgo e não muito exigente, relacionaria essa "promiscuidade" exarada nos princípios com a realidade promíscua e suas terríveis consequências epidémicas.
Como doença do ambiente, como doença social, como doença de certa civilização e de certa moral, a lepra, é, em sentido rigoroso, uma "doença religiosa", típica de um condicionalismo e de um ambiente cultural (e físico, claro) para o qual determinados princípios religiosos muito contribuíram.
Prossigamos, porém, ouvindo atentamente a homilia do Reverendo evangelista, que historiou a lepra, o medo e a repugnância que provocava e o contágio, "mais frequente em certas regiões por causa do clima e da falta de higiene."
Ah! quando não é o bacilo (causa terceira) a desviar a atenção da causa primeira, é a causa segunda do clima.
Claro que o clima, um ambiente climático inóspito (dito insalubre) atiça doenças, prepara o caldo aos vírus, bacilos e bactérias, mas atirar para o clima, unicamente, as culpas que devem ser compartilhadas pelo ambiente social e físico da vítima - e o estado de resistência, de imunização natural aos agentes agressores da mesma vítima –eis outra manobra de distracção a que o budista se recusa.
Gostámos de saber - pela palavra evangélica do Reverendo Moreira - que "a intolerância religiosa tornou o leproso sinónimo de herege e de excomungado", obrigado a fazer-se anunciar com gritos e altas vozes, às vezes com guizos atados aos pés, ou badalos ao pescoço.
Não é de ontem, porém, que a mesma entidade que “provoca" a doença (ou a deixa grassar) seja depois a primeira a "condenar" o doente como se ele fosse doente por sua vontade, ou que fosse de seu alvedrio que o Maligno (sob a forma de doença) o ataca. É de hoje também esta mentalidade medieval, reformista, sintomatológica.
MISTURA DE NARIZES
O mais confuso da prédica, porém, foi quando o pregador, para estar à la page, trouxe a poluição ao discurso:
" A tão falada poluição, é um mal de sempre, para ser combatido sempre."
Valha-nos São Barnabé e São Paulo, santos que o orador evocou, mas esta tese é que é poluição mental e tem, como tal, de ser desmistificada, e muito em especial no que à lepra concerne.
Se se confunde poluição com lixo, houve sempre; mas o que hoje é novo e nunca houve foi a consciência (ecológica) de que entre o homem e o ambiente decorre um perpétuo intercâmbio ora chamado doença, ora chamado saúde.
Saber que estes dois estados - saúde e doença - existem sempre em função do meio ambiente é que é de hoje , e até de amanhã, pois - como se prova - há ainda hoje, quem, falando de poluição, lá não tivesse chegado e estabeleça a grande confusão de narizes.
A "combater com redobrada energia a nova lepra: a poluição" - incita ainda o Reverendo, confundindo causa e efeito, mistura de narizes essa, sim, sintoma de uma gravíssima poluição mental e já que estamos em maré orgíaca de aplicar a palavra "poluição" a tudo e a nada.
Vamos por partes, irmãos em Cristo: a palavra "poluição" serve para o que serve; é generalizável, mas não por aí; quando fala nessa «lepra moderna" que se "revela na orgia dos estupefacientes", "no cinismo erótico até à pornografia, na crítica dúplice ou dogmática, na pirataria, na chantagem, na sabotagem, no boato gratuito, dissolvente, vesgo", a mistura que aí estabelece, nesse cockatil Molotov de palavras, de ideias e de factos é que, não chegando a ser explosiva, é altissimamente mistificante.
Exemplifiquemos com os estupefacientes: o lado da lepra é o do produtor, não o lado do consumidor do produto. O lado da poluição é o do produto, não o do consumidor do produto. Nas palavras deste evangelismo moralizador e anatematizador (sempre à procura do Diabo onde ele não está), porém, é o consumidor o "gafado" e, tal como na Idade Média, o "excomungado", o "herege", o maldito, o Diabo em figura de gente, que o Reverendo Moreira parece incitar a perseguir e a liquidar. Valha-nos outra vez São Barnabé, porque viemos cair, em relação à vitima dos estupefacientes, na mesma atitude medieval que era a das seitas religiosas que obrigavam o leproso a fazer-se anunciar por guizos.
Grande poluição, de facto, lavra nesta matéria das poluições. A lepra não é a poluição de todos os tempos, nem a poluição é a lepra da actualidade. Vamos por partes.
A poluição, enquanto porcaria, é produzida pela ganância e pela estupidez de uns quantos "leprosos" que deste Mundo fazem seu quintal, no seu afã religioso de destruir a vida e no seu ódio ao corpo, à qualidade da vida e a todas a formas amigáveis de vida: mas redobrada estupidez é considerar a lepra, como a poluição, nascida do nada ou caída do céu.
Recusar todas as explicações teológicas da doença - da lepra a Deus - eis a obrigação estrita do budista:
que rejeita o apostolado paternal-reformista de Raoul Follereau;
que rejeita o teologismo (diabolismo) providencialista e sintomatológico dos irmãos evangelistas;
que rejeita a sintomatologia igualmente caritativa, reformista, providencialista e sintomatológica do bacilo e dos senhores Hansen deste mundo.
Bolas: a quantos obscurantismos é preciso fazer frente, na caminhada das Trevas para a Tua Divina Luz, Deus nosso!
Pois como São Paulo dizia: "Deus é luz e não há nele treva nenhuma." Empenhados nisso andamos nós, budistas, há quatro mil anos.
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(*) Este texto de Afonso Cautela, foi publicado, com este título, no caderno nº 9 da colecção «Mini-Ecologia», edição «Frente Ecológica», com a astronómica tiragem de 100 exemplares
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