moedas-1> 5 estrelas – mein kampf OS TECELÕES DA LIBERDADE (*)
(*)Publicado no «Diário do Alentejo», 25/Abril/1981 25/4/1981 - O 25 de Abril são eles, os trabalhadores da Liberdade.
Os oleiros de Beringel na sua roda, as tecelãs do Lombador no seu tear, os latoeiros de Mértola na sua banca, os cesteiros de Serpa amaciando o vime que o Guadiana entorta com a força da corrente, os moleiros do Açude nas ribeiras de Estremoz resistindo com a roda da sua azenha ao monopólio da Moagem, as tapeceiras de Peroguarda e Arraiolos trabalhando para anónimos monopólios da exportação, os barristas de Estremoz criando a sua galeria de figuras populares, os cesteiros de Odivelas no seu típico tear de bunho, o João Lança Caturra de Alfundão que «não vende só dá» os seus baixos-relevos gravados em madeira, os mobiliaristas de Ferreira do Alentejo ameaçados de extinção por um Estado-Previdência que os persegue enquanto diz que os protege...
São eles, meu caro Zé Moedas, o eterno 25 de Abril que eu sempre festejo. E desculpa se não era isto o que esperavas quando me pediste um artigo para o número do «Diário do Alentejo» especialmente consagrado a essa data.
Desta vez, finalmente, toda a gente vai saber a que partido é que eu pertenço. Ele aí está, o meu «partido», eterno, nas raízes do nosso Baixo Alentejo.
Já o sabia mas tive a felicidade de o comprovar agora nas reportagens que o jornal onde trabalho me permitiu realizar.
O 25 de Abril está aí, eterno, com raízes no passado e olhos no futuro. O 25 de Abril são eles, os «tecelões da Liberdade», meus irmãos e aliados, tinta da minha esferográfica. Últimos baluartes da Liberdade Humana, eles não desistem: resistem com a «arma» do seu artesanato, que o Estrangeiro cobiça, que o Estrangeiro negoceia.
Eles têm nome e rosto. Produzem beleza, que é a outra face da Liberdade.
Nas rugas da sua face e na voz das suas queixas, ouve-se a angústia de um futuro com as portas fechadas. As ameaças à sua arte ribombam como trovões longínquos num céu carregado de tempestade.
Independentes e não alinhados, os artífices e artesãos do Alentejo dão-nos a todos lições de democracia directa: na prática de um trabalho de equipa, na cooperação sem cooperativas, no companheirismo que desconhece a competição.
Eles não vão orar ao Parlamento. Sermões, de comício ou de púlpito, «lixam-se» nisso.
Só se lembram deles para exposições do FAOJ, na FIL. «Derriçam-nos» para manifestações partidárias à partida e eles vão. Empalmam-nos na primeira altura para cartazes de propaganda.
Eles vão fingindo que sim. Inocentes e sábios, mantêm-se incólumes aos jogos de cúpula. Como a copa grandiosa de um sobreiro, com a dureza diamantina do azinho, com a impávida majestade de um montado: neutrais, impassíveis aos slogans telecomandados, à luta pelo poder em que se encarniçam as superestruturas ideológicas, aos aparelhos que comem tudo (oxigénio incluído) e não deixam nada.
Eles, meu caro Zé Moedas, é que são os redactores do teu «Diário do Alentejo». São eles os defensores da profunda liberdade de expressão de pensamento. Não vão à UNESCO fazer discursos, estão-se borrifando no relatório McBride e quanto a Sindicato de jornalistas, desconhecem.
Em vez de palrar, obram. Mal sabem escrever o nome, mas já escreveram os maiores poemas épicos e religiosos da Humanidade. Ligam a Terra ao Céu, a matéria-prima dos seus ofícios à divina luz criadora do génio poético.
Eles, os tecelões da Liberdade, são o realismo da minha utopia ecológica.
Fios da minha trama tântrica de adepto budista, única herança que irei deixar à minha filha Ana Cristina, ternura da minha raiva, eles são também o motivo provocador da minha cólera: contra imbecis e burocratas, contra os vende-pátrias, contra ideólogos e futurólogos, contra todos os tecnofascistas que dizem «proteger» a nossa saúde e a nossa segurança, em amanhãs que cantam mas que por enquanto choram lágrimas de sangue.
Ao volante do último moinho de vento, à banca da última oficina artesanal, à lançadeira do último tear, são eles os meus mestres, são a minha indignação contra Siderurgias, Petroquímicas, Progressos que matam, EPPI's, Electricités de France, Petrogais, Quimigais, monopólios privados e de Estado (ou vice-versa), etc.
Mestres sem descendência, órfãos de discípulos que lhes tomem das mãos o fio da Tradição, eles - os criadores históricos da Indústria - são carne para canhão de uma sociedade que enche a boca de progresso económico para só nos dar retrocesso humano.
Roubados pelo Estado Novo que lhes vendia o artesanato ao turista, mas não menos enganados por posteriores mercados do povo que os quiseram fazer produto de exportação, os moleiros, ferreiros, sapateiros, albardeiros, carpinteiros, tecelões, oleiros, artistas e poetas do Baixo Alentejo são o meu mais lúcido argumento contra as campanhas de intoxicação maciça que sobre este povo desabam como um dilúvio de lama pútrida.
Espero, meu caro Zé Moedas, que o «Diário do Alentejo» celebre condigna e regularmente os eternos autores do 25 de Abril de sempre. Enquanto eles, tecelões da Liberdade, resistirem sem desistir, a Reacção não passará.
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Eu diria que o «Diário do Alentejo» também foi um desses « tecelões da Liberdade» que resistiram sempre que não desistiram nunca.
Também ele se inscreve entre os últimos baluartes da Liberdade Humana. Também ele tem o direito de enfileirar entre os não-alinhados, entre os independentes.
E quem mais pode prezar o não alinhamento, a independência, do que um jornalista no seu trabalho de fidelidade ao quotidiano?
Poder escrever sobre os problemas reais do nosso País concreto, sem o cutelo do assunto-tabu e da entidade intocável, meu caro Zé Moedas: sabes tu melhor do que eu como é esta a nossa grande aspiração de jornalistas.
Mas a verdade é que o assunto «proibido» continua a existir. A entidade intocável continua a telefonar dizendo que não lhe toquem. O assunto tabu fica sistematicamente no buraco, empurrado pela sarna do slogan e da palavra de ordem emanada da cúpula para fechar a boca das massas à chave.
Passa a Heresia tudo o que não afine pela cantiga de qualquer bloco partidário, que não só julga, cada um à sua parte, ter o monopólio da verdade, como pretende ter o monopólio das consciências dos jornalistas. E quem não se vende, anda a pedir emprego.
A própria crítica a esta « partidarização» da verdade nunca chega ao público: se é na televisão, desculpam-se com a falta de tempo; se é na Grande Imprensa, desculpam - se com a falta de espaço. Mas para as histórias de faca e alguidar, ou para a crónica mundana dos senhores políticos que se saracoteiam entre Belém e São Bento, vão logo páginas centrais fora os ameaços na manchete da primeira.
Foi neste contexto de «liberdade vigiada», que o «Diário do Alentejo» constituiu um caso de absoluta excepção. Ele foi um verdadeiro «baluarte da Liberdade», um caso único de independência e amor à verdade, de não alinhamento nos «grupos corais» deste ou daquele aparelho.
Tu, franzino Zé Moedas, foste o grandalhão que aguentaste a barra.
Fizeste sozinho o que os fortalhaços da musculada Imprensa não conseguiram fazer todos juntos.
Artigos que eu não conseguiria publicar em mais parte nenhuma, e que teriam ido dormir para o fundo do tal gavetão (onde dormem ainda tantos) tu os publicaste no teu jornal sem uma beliscadura. Às vezes, até, sem uma gralha, o que se pode considerar o maior recorde em matéria de Imprensa Portuguesa, tão dada aliás à gralha «política».
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A Imprensa espera ainda o seu 25 de Abril. Torna-se cada vez mais difícil ao jornalista abordar as pessoas para uma entrevista de verdade: há uma barreira de legítima desconfiança. Calam-se, não querem expor-se, receiam represálias.
Se na capital do Baixo Alentejo surgir de novo a voz dos eternos explorados e expoliados, dos eternos esquecidos, a voz capaz de desafiar os monopolistas da propaganda, o tema - tabu, o assunto proibido, a entidade intocável coitadinha que é virtuosa e a gente não sabia, o monopólio privado, o monopólio de Estado, o aparelho, o estereotipo, o slogan, enfim, a mentira, então eu digo: viva o 25 de Abril!
A. C.
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(*) Publicado no «Diário do Alentejo»,
25/Abril/1981 ***