NOMENKLATURA 1991
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OS NOVOS PROLETÁRIOS DA NOVA NOMENKLATURA DIRIGENTE
3/7/1991 - Os novos proletários da nova nomenklatura dirigente ainda não tinham consciencializado a sua nova situação de classe, ainda se pensavam a girar no vazio pantanoso da classe média, como se os ventos da revolução não tivessem varrido da terra os escalões intermédios para deixar apenas os muito ricos e os muito, muito pobres.
A pouco e pouco, os novos proletários acostumavam-se à lancheira, ao acordar de madrugada, à sonolência nos comboios suburbanos e a todas as sequelas do suburbanismo galopante, de que a princípio não se tinham dado conta nem pintado.
De manhã, à entrada da fábrica, quando tinham dois minutos para olhar o escasso horizonte em volta, iam constatando que eram só pequenas, médias e grandes unidades de gás, químicas, petroquímicas, despetroquímicas, e que tinham afinal mudado, com grande pompa e circunstância, para um barril de pólvora, no meio do qual estavam mergulhados até ao pescoço.
Por isso tudo o que era sinal de civilização -- casas de habitar, restaurantes, supermercados, bancos, correios, se tinham posto a distância considerável, já que, mesmo legalmente e de acordo com os diplomas do Estado-Pai, era terminantemente proibido coabitar com unidades industriais de tão explosiva natureza. Quando os novos proletários procuravam um oásis onde se dessedentar, um bocado de pão e queijo para meter na boca, uma esplanada aprazível onde passar as longas e desnecessárias horas de almoço, não encontravam tábua de salvação naquele desterro, naquele cemitério de vivos. Mais dois anos, pelo menos, iriam decorrer para que eles «consciencializassem» essa sua condição proletarizante e proletarizada.
Mais anos tinham levado -- verdade se diga -- os proletários da velha vaga, aqueles que já tinham duas gerações e meia de habituação e que continuavam, obedientes, de lancheira às costas. As empresas que montaram cantina, exibiam dísticos nas paredes frontais a proclamá-lo, pois isso constituía, para elas, enquanto empresas, um brasão de honra.
As que não haviam montado cantinas, ocultavam dos olhos profanos as formas mais diversas de como os operários se desenrascavam para comer a bucha do meio almoço. É que ninguém os habituara ao regime de comer pelos cantos, de não comer, de comer de manhã muito cedo e à noite muito tarde. Havia quem o fizesse, escondido, na retrete. Havia quem o fizesse, ostensivamente, em cima da banca de trabalho. Havia quem fosse para o banquinho da paragem de autocarro. Havia, enfim, quem tentasse pendurar-se do último galho que restava da última árvore que ainda não fora abatida nas redondezas.
Tudo servia para disfarçar o facto indisfarçável de que o proletário trabalhava subalimentado, embora teoricamente ganhasse o suficiente e tudo estivesse a postos para que os animais de carga se deixassem alimentar a soro, por injecção intravenosa, de modo a adiar, o mais possível, a famigerada e sempre protelada reforma do Estado. É evidente que o Estado -- que não é tolo -- procurava adiar a reforma o mais que podia, a ver se entretanto o trabalhador, em vez de reformado, se transformava em cadáver. E, na maior parte dos casos, o trabalhador fazia a vontade ao Estado. Ficava cadáver, nem que fosse por desidratação compulsiva. O que ia poupar umas dezenas de contos ao Estado-Providência, que bem deles precisava para as obras públicas, para os enormes blocos de cimento armado com que o Poder perpetuava a sua memória e a sua glória.
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OS NOVOS PROLETÁRIOS DA NOVA NOMENKLATURA DIRIGENTE
3/7/1991 - Os novos proletários da nova nomenklatura dirigente ainda não tinham consciencializado a sua nova situação de classe, ainda se pensavam a girar no vazio pantanoso da classe média, como se os ventos da revolução não tivessem varrido da terra os escalões intermédios para deixar apenas os muito ricos e os muito, muito pobres.
A pouco e pouco, os novos proletários acostumavam-se à lancheira, ao acordar de madrugada, à sonolência nos comboios suburbanos e a todas as sequelas do suburbanismo galopante, de que a princípio não se tinham dado conta nem pintado.
De manhã, à entrada da fábrica, quando tinham dois minutos para olhar o escasso horizonte em volta, iam constatando que eram só pequenas, médias e grandes unidades de gás, químicas, petroquímicas, despetroquímicas, e que tinham afinal mudado, com grande pompa e circunstância, para um barril de pólvora, no meio do qual estavam mergulhados até ao pescoço.
Por isso tudo o que era sinal de civilização -- casas de habitar, restaurantes, supermercados, bancos, correios, se tinham posto a distância considerável, já que, mesmo legalmente e de acordo com os diplomas do Estado-Pai, era terminantemente proibido coabitar com unidades industriais de tão explosiva natureza. Quando os novos proletários procuravam um oásis onde se dessedentar, um bocado de pão e queijo para meter na boca, uma esplanada aprazível onde passar as longas e desnecessárias horas de almoço, não encontravam tábua de salvação naquele desterro, naquele cemitério de vivos. Mais dois anos, pelo menos, iriam decorrer para que eles «consciencializassem» essa sua condição proletarizante e proletarizada.
Mais anos tinham levado -- verdade se diga -- os proletários da velha vaga, aqueles que já tinham duas gerações e meia de habituação e que continuavam, obedientes, de lancheira às costas. As empresas que montaram cantina, exibiam dísticos nas paredes frontais a proclamá-lo, pois isso constituía, para elas, enquanto empresas, um brasão de honra.
As que não haviam montado cantinas, ocultavam dos olhos profanos as formas mais diversas de como os operários se desenrascavam para comer a bucha do meio almoço. É que ninguém os habituara ao regime de comer pelos cantos, de não comer, de comer de manhã muito cedo e à noite muito tarde. Havia quem o fizesse, escondido, na retrete. Havia quem o fizesse, ostensivamente, em cima da banca de trabalho. Havia quem fosse para o banquinho da paragem de autocarro. Havia, enfim, quem tentasse pendurar-se do último galho que restava da última árvore que ainda não fora abatida nas redondezas.
Tudo servia para disfarçar o facto indisfarçável de que o proletário trabalhava subalimentado, embora teoricamente ganhasse o suficiente e tudo estivesse a postos para que os animais de carga se deixassem alimentar a soro, por injecção intravenosa, de modo a adiar, o mais possível, a famigerada e sempre protelada reforma do Estado. É evidente que o Estado -- que não é tolo -- procurava adiar a reforma o mais que podia, a ver se entretanto o trabalhador, em vez de reformado, se transformava em cadáver. E, na maior parte dos casos, o trabalhador fazia a vontade ao Estado. Ficava cadáver, nem que fosse por desidratação compulsiva. O que ia poupar umas dezenas de contos ao Estado-Providência, que bem deles precisava para as obras públicas, para os enormes blocos de cimento armado com que o Poder perpetuava a sua memória e a sua glória.
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