CPT 1980
80-01-20> medicina-6-cm-s> = contra a medicina - os dossiês do silêncio
LA PALICE TEM QUE SER VACINADO(*)
(*)Este texto de Afonso Cautela foi publicado no jornal «A Capital» (Crónica do Planeta terra), 20/1/1980, com o título «Atenção aos Eco-pietistas»
«A Medicina, como toda a instituição, atravessou duas fases no decorrer deste século: a primeira em 1913, quando foi possível pela primeira vez demonstrar quantitativamente que um doente, tratado por médico diplomado, tinha uma oportunidade em duas de lhe ser prescrito um medicamento que melhora objectivamente o seu estado. A segunda, no decorrer dos anos 50, quando a profissão médica se apropria totalmente do controlo de vida dos homens, criando assim mais males do que bens.
O serviço - a medicina e a escola institucionalizadas, os sistemas de transporte, etc. - pode crescer em eficácia, até atingir certos estádios para lá dos quais inevitavelmente destroi todas as possibilidades de sobrevivência.
Tomou-se consciência desse problema hoje num único domínio: a ecologia. Ninguém ignora mais que o crescimento industrial destroi o nosso meio físico. Mas há outras dimensões, independentes da dimensão ecológica, nas quais os serviços podem crescer para lá da fase crítica.»
IVAN ILLICH
20/1/1980 – Também a Imprensa se preocupa com a saúda dos portugueses - concluem os observadores, num breve balanço às notícias sobre doenças, publicadas em 1979, pelos jornais de Lisboa e Porto.
De facto, não se passa praticamente um dia em que estatísticas e alarmes arrepiantes, não nos anunciem a nossa decadência, ora aguda ora crónica. Doentes disto, daquilo e daqueloutro, nada falta nunca à humilhação e desgraça dos portugueses.
Quem diagnostica as maleitas e moléstias, claro, não são os jornalistas, cuja função deontológica e odontológica (relativa a dor de dentes) é apenas fazerem-se eco das doenças dos outros, especialmente políticos em exercício, quase todos hospitalizáveis.
Mas como eco dos diversos departamentos de saúde, chegam eles, jornalistas, a parecer aves agoirentas, prevendo epidemias, prognosticando curvas de mortalidade, as mais diversas.
Nem só, portanto, a O. M. S. vela por nós e nos trata da saúde; nem só a Direcção-Geral está atenta à difteria, à meningite, ao colibacilo, à tuberculose, à raiva e a todo o bicho careto infecto-contagioso que ataca um país teimoso em não se vacinar, de manhã à noite, como as autoridades sanitárias de manhã à noite mandam; nem só o Serviço Nacional de Saúde se pretende instituir como nosso protector e nosso perpétuo enfermeiro de perpétuas e crónicas doenças nossas; nem só as Multinacionais de Farmácia (que são os Multinacionais do Petróleo & Cosméticos), vigiam as nossas insónias e diarreias; nem só a F. A. O. se ocupa da nossa dieta alimentar, recomendando a percentagem de DDT admissível «per capita»; nem só (Nossa Senhora das Dores nos acuda!) os dispensários da tuberculose estão sempre a prever na nossa tosse a tísica e os Institutos de Oncologia na nossa rouquidão (de gritar pelo Benfica) um cancro: eis que, além deste exército de médicos, enfermeiros, directores-gerais, ministros, «Prémios Nobel da fome», apóstolos de leprosos e diabéticos, atenciosos vendedores de medicamentos, são ainda os jornais que das nossas doenças permanentemente se ocupam, parangona, caixa alta, manchete, primeira página.
DOENÇA LEMBRA LOGO URNAS...
Com tantos amigos de volta, era de calcular que as estatísticas de ano para ano dessem sal-
do positivo. Tanto zelo, remédio, fadiga e vigília è cabeceira das nossas alergias (atchim!), era
de crer que já tivessem erradicado tanto bicho mau e tanta maleita maléfica.
Com tanto medicamento, era de esperar que a própria medicina gozasse já de perfeita saúde: para não falar das suas vítimas, os chamados «pacientes» ou «doentes».
Com tanta vacina, espanta que o capitalismo ainda não tenha sido extirpado como cancro de onde os outros derivam.
É de estranhar, pois, que os jornais, em 1979, continuassem, monótona e monocordicamente, a anunciar a escalada não só das antigas e crónicas, já bem instaladas na vida, mas sempre a proclamar novas doenças agudas (especialmente no preço da consulta) e até, supremo triunfo do progresso, as novas, desconhecidas e até misteriosas calamidades que se abatem sobre este povo submisso.
Como se explica, com sete mil especialidades farmacêuticas à nossa disposição, que os jornais possam, por exemplo, noticiar horrores deste teor:
«Poluição favorece doenças alérgicas» (24-11-79);
«Sinusites crónicas afectam milhares de portugueses» (10-12-79).
«Graves problemas de saúde mental afectam população de Castelo Branco» (18-1179).
«100 crianças diminuídas mentais na lista de espera em Braga» (16-12-79).
«Deficientes mentais são 91 mil no Norte» (19-11-79).
«Há um milhão de deficientes em Portugal» (28-11-79).
«Aumento de casos de tuberculose no País» (6-12-79).
«Saúde dentária em Portugal continua a ser má» (20-11-79).
«No seio da C. E. E., Portugal detém recorde de mortalidade infantil» (29-12-79).
«Elevado índice de mortalidade infantil em Sabrosa» (30-3-79).
«Seiscentos mil portugueses são alcoólicos. (15-10-79).
«Casos de difteria na grande Lisboa - Só a vacina poderá evitar o surto epidémico».
«A deficiência motora por paralisia cerebral: um em cada dez mil portugueses atingido pela doença» (30-12-79).
Pela data em que o anúncio destas desgraças foi feito, e devidamente manchetado nas primeiras páginas-cartaz de grande (ssíssima) imprensa, não é difícil perceber uma predominância concentrada no período eleitoral e pré-eleitoral.
Se a angústia é desestabilizadora, como já defendemos por diversas ocasiões, compreende-se o afã de mostrar aos portugueses que sofrem de todas as doenças e mais uma, num momento em que a angústia funciona perfeitamente como incitadora do voto.
Até porque falar de doenças, lembra logo urnas...
SE LA PALICE NASCESSE, SERIA VACINADO
Deu brado, em 1979, no capítulo da patologia portuguesa, a descoberta feita por eminentes especialistas reunidos, em número de 300, no simpósio da Fundação Gulbenkian, entre 18 e 21 de Novembro.
Segundo a autoridade dessas sumidades, «a doença seria produzida por ambientes patogénicos».
Antes dos ecologistas, já La Palice teria afirmado o mesmo. Se a doença não cai do céu (excepto a doença Skylab); se não é obra de Satanás (como na Idade Média) ou milagre de Nossa Senhora (como no século XX), é óbvio que só pode ser produto do Meio Ambiente que a gera.
Mas por anunciar o óbvio, Galileo foi excomungado e Bruno queimado nas santas fogueiras da Inquisição. Pelo que convém ter alguma cautela ao mostrar o óbvio e ao gritar que o rei vai nu. Pode ser que vá mesmo e lá metem o intruso no chilindró.
Por causa disto, La Palice foi encostado à parede e os ecologistas aspas-aspas. Todos amigos do óbvio.
Vá lá que agora a classe científica já reconhece a génese ambiental de algumas doenças: a água, os alimentos, a poluição, os políticos, o fisco, os químicos alimentares, os medicamentos, o trabalho, a chatice quotidiana de existir em Portugal e ouvir os tecnocratas a ladrar, a propaganda internacional, os hidrocarbonetos, eu sei lá: um rol infindável de factores já são hoje reconhecidos e catalogados como causa das doenças que sofremos.
Bacilos e bactérias andam um tanto desmoralizados por se ter visto que, afinal, nem tudo era obra deles.
No caso dos medicamentos como causa de doenças, os peritos inventaram logo um nome bonito para designar uma coisa que poderá ser feia: iatrogénicos seriam, segundo a terminologia oficial, os medicamentos que provocam doenças.
Claro que a causalidade ambiental reconhecida em simpósio, ficou-se apenas por um ou dois dessas dezenas de factores (sectorizar para reinar é divisa da classe científica), não impedindo, por outro lado, que, na prática, tudo continue na mesma: quer dizer, a aplicar-se uma visão sintomatológica e não causal para apontar terapêuticas.
Sim senhor, a doença tem causas no ambiente mas... receita-se pílula, ou cirurgia, e deixa-se o ambiente na mesma, ou a resistência orgânica a esse ambiente cada vez mais enfraquecida pela toxicomania medicamentosa.
Do simpósio à terapêutica, da teoria à prática - constatam os observadores lapalicianos - continua o abismo habitual.
Se, de facto, reconhecido foi que os arranha-céus criam melancólicos, deprimidos, loucos e ansiosos, é evidente para a lógica do sistema que:
1 - Não vão evacuar-se todos os residentes em arranha-céus;
2 - Não vão derrubar-se os arranha-céus que existem, mas construir mais.
É evidente que, reconhecida a causa, a terapêutica continua a operar, unicamente, sobre o efeito/sintoma e para os ansiosos das «alturas» a ciência receitará medicamentos, divã, massagens, descontração e estupidez natural para a vítima vencer as crises; assim se garante, com vinte andares, vinte vezes mais lucros aos fabricantes de tranquilizantes.
Lapalice disse e os peritos em ambientologia clínica repetiram: mas o povo é que ainda não percebeu, embora tenha jornalistas de manhã à noite a informá-lo.
Só em 1979, artigos sobre Ecologia da Doença para a pia, foram aí uns trinta.
Lapalice não quer ser sacrificado.
Mas nos simpósios da Gulbenkian, o jornalista é benquisto e são capazes de lhe dar um «drink» escocês legítimo e salgadinho a apimentar. Lindas mesas-redondas dão lindas fotografias e o jornalista, desde que respeitador, venerador e obrigado, é sempre benvindo.
Desde que repita, sem crítica, os discursos deles.
PORQUE NÃO VAI O ECOLOGISTA APANHAR BORBOLETAS?
De românticos e utopistas a «caçadores de borboletas», têm os ecologistas sido acusados de quase tudo por causa do seu amor à vida, à Natureza e à saúde, quer de adultos quer de crianças, mesmo antes do ano internacional em que desataram todos a ser amigos delas, sem discriminação de idade ou raça, credo ou conta bancária.
Mas ao realizar, pela imprensa e seus títulos, o balanço do ano patológico e das entidades que nos tratam da saúde, com desvelos maternais, o observador pergunta onde estão os verdadeiros amigos da vida e da saúde dos portugueses tão subdesenvolvidos, como os jornais não se cansaram também de repetir nos 365 dias de 1979.
O Mundo inteiro só se ocupa e preocupa com a saúde dos portugueses. A Europa então nem se fala: constantemente telefona a perguntar como vamos de saúde e se está tudo a postos para o Mercado Comum, porque ela, absentismos não perdoa nem admite.
Só em flúor para a água de beber vão ser umas toneladas: como disse um médico dentista ao Canal 2 da RTP (Tal & Qual), instado pelo Joaquim Letria, o flúor provoca doenças renais, mas num país que se prepara para montar centros de hemodiálise a torto e a direito, dispensando ir largar divisas às clínicas de Barcelona, Cáceres e Badajoz, quanto mais nefríticos e doenças renais e rins para substituir houver, melhor. Oh! santas alminhas de Deus, quem não perceberá isto?
Uma rede de hemodiálise, igual ao melhor que se fabrica na Europa, é claro que implica produção em série de doentes renais que depois usem a dita hemodiálise.
E não foi La Palice que disse...
CAUSALISTAS E REFORMISTAS
Ninguém de bom coração pode negar simpatia a uma cooperativa para educação e reabilitação de crianças inadaptadas.
Ninguém de bom senso poderá dizer que uma liga de luta contra o cancro não é um organismo benfeitor.
Ninguém de sentimento pode considerar indesejável uma associação de protecção a diabéticos pobres.
Nenhum cristão deixará de louvar aquele comité que se destina a levar aos presos um pouco de conforto moral e algumas guloseimas pelo Natal.
Nenhuma consciência bem formada poderá pôr em causa a cadeia de solidariedade com as vítimas do sismo.
Nenhuma alma caridosa se atreverá a proclamar que o combate ao desemprego não é uma campanha lícita.
Nenhum patriota se atreverá a minimizar os esforços de empresas como a Mobil ora em defesa da Natureza e contra a poluição, ora para a poupança e conservação da energia.
Nenhum ser humano diminuirá o mérito de organizações como a O. M. S., sempre em luta contra a cárie, o paludismo, a arterioesclerose, o cancro, a droga, etc.
Nenhum bem alimentado do 1º e 2º Mundo deixará de ter olhos maternais para organizações como a F. A. O. que, há vinte anos, combate a fome, ou antes, alimenta a fome, conseguindo que ela seja hoje maior do que era então.
Ninguém com sangue nas veias poderá deixar de considerar nobre o gesto de dar sangue aos hospitais, esses vampiros que tanto gastam e necessitam do precioso líquido vital, copiosamente derramado por essas estradas e nem só.
Cidadão que se preza está grato e jamais ousará diminuir o mérito de campanhas no combate à morte rodoviária e ofícios correlativos.
Não há ternura que baste para as comissões de planeamento familiar reguladoras da pílula e destinadas a reprimir o aborto.
Enfim, estes poucos exemplos já dão para concluir uma coisa: se é verdade que homem sofre, rodeado de moléstias, miasmas, ameaças, poluições, desastres, calamidades, também é verdade que a sociedade que zelosa e proficuamente produz isso tudo, se encontra bem apetrechada de antídotos, por todo o lado monta postos de socorros, hospitais, bancos de sangue, telefones amarelos, ambulâncias 115, mangueiras, enfim, mecanismos de luta antipoluição a antiadversidade e antidoença por toda a parte.
Se é verdade que a sociedade do crescimento infinito tem de fabricar em escalada tudo isso -cancro, poluição, desemprego, hospitais, medicamentos, extintores, etc. - também é um facto, sobejamente animador, que não faltam empregos e postos de trabalho: cangalheiro, bombeiro, polícia, enfermeiro, sindicatos (para combater o desemprego), bem alimentados (para combater a fome), diabéticos (para combater a diabetes melitus), bomba de cobalto e medicina nuclear (para combater os cancros resultantes do ambiente nuclear...).
Cancros não faltam, graças a Deus, nesta providencial sociedade dita civilizada, mas organismos, instituições, nações unidas, indústria para os combater, também não.
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(*)Este texto de Afonso Cautela foi publicado no jornal «A Capital» (Crónica do Planeta terra), 20/1/1980
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LA PALICE TEM QUE SER VACINADO(*)
(*)Este texto de Afonso Cautela foi publicado no jornal «A Capital» (Crónica do Planeta terra), 20/1/1980, com o título «Atenção aos Eco-pietistas»
«A Medicina, como toda a instituição, atravessou duas fases no decorrer deste século: a primeira em 1913, quando foi possível pela primeira vez demonstrar quantitativamente que um doente, tratado por médico diplomado, tinha uma oportunidade em duas de lhe ser prescrito um medicamento que melhora objectivamente o seu estado. A segunda, no decorrer dos anos 50, quando a profissão médica se apropria totalmente do controlo de vida dos homens, criando assim mais males do que bens.
O serviço - a medicina e a escola institucionalizadas, os sistemas de transporte, etc. - pode crescer em eficácia, até atingir certos estádios para lá dos quais inevitavelmente destroi todas as possibilidades de sobrevivência.
Tomou-se consciência desse problema hoje num único domínio: a ecologia. Ninguém ignora mais que o crescimento industrial destroi o nosso meio físico. Mas há outras dimensões, independentes da dimensão ecológica, nas quais os serviços podem crescer para lá da fase crítica.»
IVAN ILLICH
20/1/1980 – Também a Imprensa se preocupa com a saúda dos portugueses - concluem os observadores, num breve balanço às notícias sobre doenças, publicadas em 1979, pelos jornais de Lisboa e Porto.
De facto, não se passa praticamente um dia em que estatísticas e alarmes arrepiantes, não nos anunciem a nossa decadência, ora aguda ora crónica. Doentes disto, daquilo e daqueloutro, nada falta nunca à humilhação e desgraça dos portugueses.
Quem diagnostica as maleitas e moléstias, claro, não são os jornalistas, cuja função deontológica e odontológica (relativa a dor de dentes) é apenas fazerem-se eco das doenças dos outros, especialmente políticos em exercício, quase todos hospitalizáveis.
Mas como eco dos diversos departamentos de saúde, chegam eles, jornalistas, a parecer aves agoirentas, prevendo epidemias, prognosticando curvas de mortalidade, as mais diversas.
Nem só, portanto, a O. M. S. vela por nós e nos trata da saúde; nem só a Direcção-Geral está atenta à difteria, à meningite, ao colibacilo, à tuberculose, à raiva e a todo o bicho careto infecto-contagioso que ataca um país teimoso em não se vacinar, de manhã à noite, como as autoridades sanitárias de manhã à noite mandam; nem só o Serviço Nacional de Saúde se pretende instituir como nosso protector e nosso perpétuo enfermeiro de perpétuas e crónicas doenças nossas; nem só as Multinacionais de Farmácia (que são os Multinacionais do Petróleo & Cosméticos), vigiam as nossas insónias e diarreias; nem só a F. A. O. se ocupa da nossa dieta alimentar, recomendando a percentagem de DDT admissível «per capita»; nem só (Nossa Senhora das Dores nos acuda!) os dispensários da tuberculose estão sempre a prever na nossa tosse a tísica e os Institutos de Oncologia na nossa rouquidão (de gritar pelo Benfica) um cancro: eis que, além deste exército de médicos, enfermeiros, directores-gerais, ministros, «Prémios Nobel da fome», apóstolos de leprosos e diabéticos, atenciosos vendedores de medicamentos, são ainda os jornais que das nossas doenças permanentemente se ocupam, parangona, caixa alta, manchete, primeira página.
DOENÇA LEMBRA LOGO URNAS...
Com tantos amigos de volta, era de calcular que as estatísticas de ano para ano dessem sal-
do positivo. Tanto zelo, remédio, fadiga e vigília è cabeceira das nossas alergias (atchim!), era
de crer que já tivessem erradicado tanto bicho mau e tanta maleita maléfica.
Com tanto medicamento, era de esperar que a própria medicina gozasse já de perfeita saúde: para não falar das suas vítimas, os chamados «pacientes» ou «doentes».
Com tanta vacina, espanta que o capitalismo ainda não tenha sido extirpado como cancro de onde os outros derivam.
É de estranhar, pois, que os jornais, em 1979, continuassem, monótona e monocordicamente, a anunciar a escalada não só das antigas e crónicas, já bem instaladas na vida, mas sempre a proclamar novas doenças agudas (especialmente no preço da consulta) e até, supremo triunfo do progresso, as novas, desconhecidas e até misteriosas calamidades que se abatem sobre este povo submisso.
Como se explica, com sete mil especialidades farmacêuticas à nossa disposição, que os jornais possam, por exemplo, noticiar horrores deste teor:
«Poluição favorece doenças alérgicas» (24-11-79);
«Sinusites crónicas afectam milhares de portugueses» (10-12-79).
«Graves problemas de saúde mental afectam população de Castelo Branco» (18-1179).
«100 crianças diminuídas mentais na lista de espera em Braga» (16-12-79).
«Deficientes mentais são 91 mil no Norte» (19-11-79).
«Há um milhão de deficientes em Portugal» (28-11-79).
«Aumento de casos de tuberculose no País» (6-12-79).
«Saúde dentária em Portugal continua a ser má» (20-11-79).
«No seio da C. E. E., Portugal detém recorde de mortalidade infantil» (29-12-79).
«Elevado índice de mortalidade infantil em Sabrosa» (30-3-79).
«Seiscentos mil portugueses são alcoólicos. (15-10-79).
«Casos de difteria na grande Lisboa - Só a vacina poderá evitar o surto epidémico».
«A deficiência motora por paralisia cerebral: um em cada dez mil portugueses atingido pela doença» (30-12-79).
Pela data em que o anúncio destas desgraças foi feito, e devidamente manchetado nas primeiras páginas-cartaz de grande (ssíssima) imprensa, não é difícil perceber uma predominância concentrada no período eleitoral e pré-eleitoral.
Se a angústia é desestabilizadora, como já defendemos por diversas ocasiões, compreende-se o afã de mostrar aos portugueses que sofrem de todas as doenças e mais uma, num momento em que a angústia funciona perfeitamente como incitadora do voto.
Até porque falar de doenças, lembra logo urnas...
SE LA PALICE NASCESSE, SERIA VACINADO
Deu brado, em 1979, no capítulo da patologia portuguesa, a descoberta feita por eminentes especialistas reunidos, em número de 300, no simpósio da Fundação Gulbenkian, entre 18 e 21 de Novembro.
Segundo a autoridade dessas sumidades, «a doença seria produzida por ambientes patogénicos».
Antes dos ecologistas, já La Palice teria afirmado o mesmo. Se a doença não cai do céu (excepto a doença Skylab); se não é obra de Satanás (como na Idade Média) ou milagre de Nossa Senhora (como no século XX), é óbvio que só pode ser produto do Meio Ambiente que a gera.
Mas por anunciar o óbvio, Galileo foi excomungado e Bruno queimado nas santas fogueiras da Inquisição. Pelo que convém ter alguma cautela ao mostrar o óbvio e ao gritar que o rei vai nu. Pode ser que vá mesmo e lá metem o intruso no chilindró.
Por causa disto, La Palice foi encostado à parede e os ecologistas aspas-aspas. Todos amigos do óbvio.
Vá lá que agora a classe científica já reconhece a génese ambiental de algumas doenças: a água, os alimentos, a poluição, os políticos, o fisco, os químicos alimentares, os medicamentos, o trabalho, a chatice quotidiana de existir em Portugal e ouvir os tecnocratas a ladrar, a propaganda internacional, os hidrocarbonetos, eu sei lá: um rol infindável de factores já são hoje reconhecidos e catalogados como causa das doenças que sofremos.
Bacilos e bactérias andam um tanto desmoralizados por se ter visto que, afinal, nem tudo era obra deles.
No caso dos medicamentos como causa de doenças, os peritos inventaram logo um nome bonito para designar uma coisa que poderá ser feia: iatrogénicos seriam, segundo a terminologia oficial, os medicamentos que provocam doenças.
Claro que a causalidade ambiental reconhecida em simpósio, ficou-se apenas por um ou dois dessas dezenas de factores (sectorizar para reinar é divisa da classe científica), não impedindo, por outro lado, que, na prática, tudo continue na mesma: quer dizer, a aplicar-se uma visão sintomatológica e não causal para apontar terapêuticas.
Sim senhor, a doença tem causas no ambiente mas... receita-se pílula, ou cirurgia, e deixa-se o ambiente na mesma, ou a resistência orgânica a esse ambiente cada vez mais enfraquecida pela toxicomania medicamentosa.
Do simpósio à terapêutica, da teoria à prática - constatam os observadores lapalicianos - continua o abismo habitual.
Se, de facto, reconhecido foi que os arranha-céus criam melancólicos, deprimidos, loucos e ansiosos, é evidente para a lógica do sistema que:
1 - Não vão evacuar-se todos os residentes em arranha-céus;
2 - Não vão derrubar-se os arranha-céus que existem, mas construir mais.
É evidente que, reconhecida a causa, a terapêutica continua a operar, unicamente, sobre o efeito/sintoma e para os ansiosos das «alturas» a ciência receitará medicamentos, divã, massagens, descontração e estupidez natural para a vítima vencer as crises; assim se garante, com vinte andares, vinte vezes mais lucros aos fabricantes de tranquilizantes.
Lapalice disse e os peritos em ambientologia clínica repetiram: mas o povo é que ainda não percebeu, embora tenha jornalistas de manhã à noite a informá-lo.
Só em 1979, artigos sobre Ecologia da Doença para a pia, foram aí uns trinta.
Lapalice não quer ser sacrificado.
Mas nos simpósios da Gulbenkian, o jornalista é benquisto e são capazes de lhe dar um «drink» escocês legítimo e salgadinho a apimentar. Lindas mesas-redondas dão lindas fotografias e o jornalista, desde que respeitador, venerador e obrigado, é sempre benvindo.
Desde que repita, sem crítica, os discursos deles.
PORQUE NÃO VAI O ECOLOGISTA APANHAR BORBOLETAS?
De românticos e utopistas a «caçadores de borboletas», têm os ecologistas sido acusados de quase tudo por causa do seu amor à vida, à Natureza e à saúde, quer de adultos quer de crianças, mesmo antes do ano internacional em que desataram todos a ser amigos delas, sem discriminação de idade ou raça, credo ou conta bancária.
Mas ao realizar, pela imprensa e seus títulos, o balanço do ano patológico e das entidades que nos tratam da saúde, com desvelos maternais, o observador pergunta onde estão os verdadeiros amigos da vida e da saúde dos portugueses tão subdesenvolvidos, como os jornais não se cansaram também de repetir nos 365 dias de 1979.
O Mundo inteiro só se ocupa e preocupa com a saúde dos portugueses. A Europa então nem se fala: constantemente telefona a perguntar como vamos de saúde e se está tudo a postos para o Mercado Comum, porque ela, absentismos não perdoa nem admite.
Só em flúor para a água de beber vão ser umas toneladas: como disse um médico dentista ao Canal 2 da RTP (Tal & Qual), instado pelo Joaquim Letria, o flúor provoca doenças renais, mas num país que se prepara para montar centros de hemodiálise a torto e a direito, dispensando ir largar divisas às clínicas de Barcelona, Cáceres e Badajoz, quanto mais nefríticos e doenças renais e rins para substituir houver, melhor. Oh! santas alminhas de Deus, quem não perceberá isto?
Uma rede de hemodiálise, igual ao melhor que se fabrica na Europa, é claro que implica produção em série de doentes renais que depois usem a dita hemodiálise.
E não foi La Palice que disse...
CAUSALISTAS E REFORMISTAS
Ninguém de bom coração pode negar simpatia a uma cooperativa para educação e reabilitação de crianças inadaptadas.
Ninguém de bom senso poderá dizer que uma liga de luta contra o cancro não é um organismo benfeitor.
Ninguém de sentimento pode considerar indesejável uma associação de protecção a diabéticos pobres.
Nenhum cristão deixará de louvar aquele comité que se destina a levar aos presos um pouco de conforto moral e algumas guloseimas pelo Natal.
Nenhuma consciência bem formada poderá pôr em causa a cadeia de solidariedade com as vítimas do sismo.
Nenhuma alma caridosa se atreverá a proclamar que o combate ao desemprego não é uma campanha lícita.
Nenhum patriota se atreverá a minimizar os esforços de empresas como a Mobil ora em defesa da Natureza e contra a poluição, ora para a poupança e conservação da energia.
Nenhum ser humano diminuirá o mérito de organizações como a O. M. S., sempre em luta contra a cárie, o paludismo, a arterioesclerose, o cancro, a droga, etc.
Nenhum bem alimentado do 1º e 2º Mundo deixará de ter olhos maternais para organizações como a F. A. O. que, há vinte anos, combate a fome, ou antes, alimenta a fome, conseguindo que ela seja hoje maior do que era então.
Ninguém com sangue nas veias poderá deixar de considerar nobre o gesto de dar sangue aos hospitais, esses vampiros que tanto gastam e necessitam do precioso líquido vital, copiosamente derramado por essas estradas e nem só.
Cidadão que se preza está grato e jamais ousará diminuir o mérito de campanhas no combate à morte rodoviária e ofícios correlativos.
Não há ternura que baste para as comissões de planeamento familiar reguladoras da pílula e destinadas a reprimir o aborto.
Enfim, estes poucos exemplos já dão para concluir uma coisa: se é verdade que homem sofre, rodeado de moléstias, miasmas, ameaças, poluições, desastres, calamidades, também é verdade que a sociedade que zelosa e proficuamente produz isso tudo, se encontra bem apetrechada de antídotos, por todo o lado monta postos de socorros, hospitais, bancos de sangue, telefones amarelos, ambulâncias 115, mangueiras, enfim, mecanismos de luta antipoluição a antiadversidade e antidoença por toda a parte.
Se é verdade que a sociedade do crescimento infinito tem de fabricar em escalada tudo isso -cancro, poluição, desemprego, hospitais, medicamentos, extintores, etc. - também é um facto, sobejamente animador, que não faltam empregos e postos de trabalho: cangalheiro, bombeiro, polícia, enfermeiro, sindicatos (para combater o desemprego), bem alimentados (para combater a fome), diabéticos (para combater a diabetes melitus), bomba de cobalto e medicina nuclear (para combater os cancros resultantes do ambiente nuclear...).
Cancros não faltam, graças a Deus, nesta providencial sociedade dita civilizada, mas organismos, instituições, nações unidas, indústria para os combater, também não.
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(*)Este texto de Afonso Cautela foi publicado no jornal «A Capital» (Crónica do Planeta terra), 20/1/1980
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