OCEANO 1979
79-01-16>petróleo-6> os dossiês do silêncio
PETRÓLEO: A MORTE DO OCEANO(*)
(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no jornal «A Capital» (Opiniões Livres), 16/1/1979
16/1/1979 - Como o peixe também deve ter respeitado o limite das nossas águas territoriais, não há nada a temer quanto às consequências que para as pescarias portuguesas pode trazer o recente acidente com o «Andros Patria»: o petroleiro continuava a largar petróleo (até esgotar, possivelmente), mas - garantem as informações oficiais- tudo se passa do lado de lá das nossas águas.
Nesta fronteira, o direito internacional é absolutamente respeitado: nem os peixes passam para o lado de lá, onde está o petróleo, nem o petróleo passa para o lado de cá, onde estão os peixes.
Os ecolegalistas devem estar satisfeitos.
«PODEM POLUIR, MAS LONGE DE NÓS»
A Grã-Bretanha é que mostra não estar nada satisfeita com as costas dela e os petroleiros que não lhe largam o litoral.
Há dias, no programa «Zoom» (terça-feira, 9/1/1978), a Radiotelevisão mostrou um longo filme com as longas queixas das autoridades inglesas contra os longos petroleiros que lhe chafurdam as longas costas.
Contra aqueles que não cumprem as normas internacionais tantas vezes acordados, a fleuma britânica protesta.
Pergunta um telespectador indiscreto: e a British Petroleum?
Ou serão só os «piratas» que se acoitam sob a liberal bandeira da Libéria?
Estados Unidos e Japão também têm feito ouvir protestos. Eles querem igualmente que se cumpram as normas estabelecidas no acordo de 1954, rectificado em 1964.
Mas estas normas entre Estados soberanos e navios-piratas são uma anedota semelhante à da «linha separatória de águas territoriais»: para lá, todo o mundo pode poluir porque é baldio; para cá da linha divisória, está o nosso peixe, as nossas costas, os nossos brios, as nossas praias, a nossa vida. E os nossos queridos turistas que querem águas limpas.
As normas internacionais dos acordos contra a poluição petrolífera dos oceanos são um problema bairrista: poluir sim, todo o mundo pode,. desde que ,longe da nossa casa.
HUMOR E TERROR
Humorístico é que para um problema planetário - o petróleo mata o Oceano e matará em breve a Terra - as medidas tomadas, a estratégia internacional antipoluição e as tácticas, defensivas ou contra-ofensivas, não vão além das áreas interdomésticas das potências que traficam petróleo.
Tudo se passa como se houvesse, para lá das águas territoriais de cada país, uma espécie de «terra de ninguém» marítima, onde seria lícito, aí sim, despejar toda a porcaria que a marinha mercante transporta.
O direito internacional marítimo só diria respeito à casa de cada um, e não ao planeta, de repente tão pequeno para ser o caixote do lixo de tanta nafta derramada.
Depois, os países queixam-se de o problema não ter solução e de que as leis não tenham o poder de fazer «stop» repentino a um processo que - por todas elas - potências petrolíferas- é alimentado, fomentado, multiplicado.
Ao ver o «Zoom» de terça-feira, alguns telespectadores devem ter ficado comovidos. Pobre Grã-Bretanha tão poluída de ramas piratas!... Coitados dos peixes ingleses, que nem nas águas territoriais são poupados! Lá nisso, os portugueses tiveram mais sorte. Bastou uma ordem emanada do Conselho de Ministros, e os peixes todos se puseram a bom recato junto à costa. O «Andros Patria» só derramou para o lado de lá...
O filme da TV informou ainda da grande diferença entre poluição petrolífera de rotina e poluição acidental.
Aquela, de tão crónica, já nem notícia dá. Esta outra, presta-se a grandes especulações jornalísticas e tem direito a estatística.
Desde o «Torrey Canion», há 10 anos, partidinho em dois, foram apenas 190 petroleiros que se abriram e derramaram óleo nos oceanos.
O que, com os detergentes logo a seguir, contribuiu enormemente para as óptimas pescarias verificadas.
Os cientistas estão em vias de provar que os peixes engordam muito com a nafta dos petroleiros e até se lambem. É devido - diz-se - à proteína.
Articulistas bastante proteicos como Edouard Bonnefous, autor do livro eco-reformista «Sauver l'Humain», querem fazer-nos acreditar que há soluções domésticas para este problema planetário, de que as tácticas reformistas virão a ter algum êxito contra este desastre ecológico de amplitude universal que é a vaga crescente dos derrames no oceano.
Segundo os reformistas do tipo Bonnefous, não fora a cupidez de alguns armadores (tão desonestos, os piratas), não fora a «ilegalidade» das companhias que, sob a bandeira da Libéria, se permitem no mar as maiores libertinagens, não fora portanto a má vontade e a irresponsabilidade de alguns celerados, e o problema ambiental do petróleo não existia. Fixada a culpa na maldade de alguns homens, só a malvada natureza, por outro lado, (desencadeando tempestades, partindo cargueiros, arremessando às costas as «marés negras») impede também que o problema já esteja resolvido.
Eis como - por artes dos Boneffous - um problema ecológico-planetário se transforma num problema moral de consciências mais ou menos poluídas ou, então, num problema legal e policial: cumpridas as leis, estaria - segundo este e outros ambientalistas - tudo bem.
Quem tal idealismo ambientalista prega, no entanto, é quem mais dados fornece para demonstrar a irreversibilidade do processo e a impossibilidade de ser algum dia resolvido com medidas reformistas: sermões morais ou ameaças policiais de fiscalizacão e multas.
Entre a vida e o petróleo, a humanidade, terá de escolher.A chatice é que já escolheu o petróleo.
TRÁFEGO DA MORTE OCEÂNICA
Como lembra o próprio Bonnefous, em 1926 o transporte petroleiro mundial não ultrapassava 60 000 000 (sessenta milhões) de toneladas, enquanto em 1976 é de1500000000 (um bilião e quinhentos milhões) de toneladas.
Em 50 anos, a proporção é portanto de 60 para 1500, proporção a que todos chamam progresso.
Mas há mais números: em 1953, 1570 petroleiros podiam transportar 16 600 000 (dezasseis milhões e seiscentas mil) toneladas.
Vinte anos depois, em 1973, os 2000 petroleiros recenseados no mundo têm uma capacidade de 1 000 000 000 (um bilião) de toneladas.
Em vinte anos, a proporção é de 16 para 1000 (mil). A isto, todos chamam progresso.
Mais números: diariamente e em média, são derramados nos mares 10 000 (dez mil) toneladas de hidrocarbonetos.
Por malvadez ou má vontade?- pergunta a perturbada consciência ecológica da humanidade...
Sabe-se que não.
É a limpeza dos navios que obriga a deitar ao mar 1 por cento da tonelagem em ramas.
Contra esta poluição permanente, obrigatória, não acidental nem contingente, sistemática, que podem as leis? E que podem os ecolegalistas? Que adianta vociferar? Que resolvem os documentários televisivos que a Grã-Bretanha, muito indignada, empresta à TV portuguesa para nos transmitir os seus desgostos com o petróleo?
A ideia que sustenta as teses reformistas é que basta afastar a poluição da nossa casa para o problema ficar resolvido. Se a Grã-Bretanha, os Estados Unidos e o Japão não fossem tão atingidos, de certo que não se lembrariam de teleprotestar.
Existem nos portos do mundo muitas «gás limpo» de porta aberta para que os petroleiros aí «separem» os detritos.
Mas, na prática e na realidade, a permanência num porto custa milhões cada dia. Pelo que, na maior parte dos casos, as empresas depuradoras são só ficção e pouco negócio fazem.
O petróleo continua. E a morte do oceano também.
Amanhã: Morte em segurança
- - - - -
(*) Publicado no jornal « A Capital» (Opiniões Livres), 16/1/1979***
***
PETRÓLEO: A MORTE DO OCEANO(*)
(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no jornal «A Capital» (Opiniões Livres), 16/1/1979
16/1/1979 - Como o peixe também deve ter respeitado o limite das nossas águas territoriais, não há nada a temer quanto às consequências que para as pescarias portuguesas pode trazer o recente acidente com o «Andros Patria»: o petroleiro continuava a largar petróleo (até esgotar, possivelmente), mas - garantem as informações oficiais- tudo se passa do lado de lá das nossas águas.
Nesta fronteira, o direito internacional é absolutamente respeitado: nem os peixes passam para o lado de lá, onde está o petróleo, nem o petróleo passa para o lado de cá, onde estão os peixes.
Os ecolegalistas devem estar satisfeitos.
«PODEM POLUIR, MAS LONGE DE NÓS»
A Grã-Bretanha é que mostra não estar nada satisfeita com as costas dela e os petroleiros que não lhe largam o litoral.
Há dias, no programa «Zoom» (terça-feira, 9/1/1978), a Radiotelevisão mostrou um longo filme com as longas queixas das autoridades inglesas contra os longos petroleiros que lhe chafurdam as longas costas.
Contra aqueles que não cumprem as normas internacionais tantas vezes acordados, a fleuma britânica protesta.
Pergunta um telespectador indiscreto: e a British Petroleum?
Ou serão só os «piratas» que se acoitam sob a liberal bandeira da Libéria?
Estados Unidos e Japão também têm feito ouvir protestos. Eles querem igualmente que se cumpram as normas estabelecidas no acordo de 1954, rectificado em 1964.
Mas estas normas entre Estados soberanos e navios-piratas são uma anedota semelhante à da «linha separatória de águas territoriais»: para lá, todo o mundo pode poluir porque é baldio; para cá da linha divisória, está o nosso peixe, as nossas costas, os nossos brios, as nossas praias, a nossa vida. E os nossos queridos turistas que querem águas limpas.
As normas internacionais dos acordos contra a poluição petrolífera dos oceanos são um problema bairrista: poluir sim, todo o mundo pode,. desde que ,longe da nossa casa.
HUMOR E TERROR
Humorístico é que para um problema planetário - o petróleo mata o Oceano e matará em breve a Terra - as medidas tomadas, a estratégia internacional antipoluição e as tácticas, defensivas ou contra-ofensivas, não vão além das áreas interdomésticas das potências que traficam petróleo.
Tudo se passa como se houvesse, para lá das águas territoriais de cada país, uma espécie de «terra de ninguém» marítima, onde seria lícito, aí sim, despejar toda a porcaria que a marinha mercante transporta.
O direito internacional marítimo só diria respeito à casa de cada um, e não ao planeta, de repente tão pequeno para ser o caixote do lixo de tanta nafta derramada.
Depois, os países queixam-se de o problema não ter solução e de que as leis não tenham o poder de fazer «stop» repentino a um processo que - por todas elas - potências petrolíferas- é alimentado, fomentado, multiplicado.
Ao ver o «Zoom» de terça-feira, alguns telespectadores devem ter ficado comovidos. Pobre Grã-Bretanha tão poluída de ramas piratas!... Coitados dos peixes ingleses, que nem nas águas territoriais são poupados! Lá nisso, os portugueses tiveram mais sorte. Bastou uma ordem emanada do Conselho de Ministros, e os peixes todos se puseram a bom recato junto à costa. O «Andros Patria» só derramou para o lado de lá...
O filme da TV informou ainda da grande diferença entre poluição petrolífera de rotina e poluição acidental.
Aquela, de tão crónica, já nem notícia dá. Esta outra, presta-se a grandes especulações jornalísticas e tem direito a estatística.
Desde o «Torrey Canion», há 10 anos, partidinho em dois, foram apenas 190 petroleiros que se abriram e derramaram óleo nos oceanos.
O que, com os detergentes logo a seguir, contribuiu enormemente para as óptimas pescarias verificadas.
Os cientistas estão em vias de provar que os peixes engordam muito com a nafta dos petroleiros e até se lambem. É devido - diz-se - à proteína.
Articulistas bastante proteicos como Edouard Bonnefous, autor do livro eco-reformista «Sauver l'Humain», querem fazer-nos acreditar que há soluções domésticas para este problema planetário, de que as tácticas reformistas virão a ter algum êxito contra este desastre ecológico de amplitude universal que é a vaga crescente dos derrames no oceano.
Segundo os reformistas do tipo Bonnefous, não fora a cupidez de alguns armadores (tão desonestos, os piratas), não fora a «ilegalidade» das companhias que, sob a bandeira da Libéria, se permitem no mar as maiores libertinagens, não fora portanto a má vontade e a irresponsabilidade de alguns celerados, e o problema ambiental do petróleo não existia. Fixada a culpa na maldade de alguns homens, só a malvada natureza, por outro lado, (desencadeando tempestades, partindo cargueiros, arremessando às costas as «marés negras») impede também que o problema já esteja resolvido.
Eis como - por artes dos Boneffous - um problema ecológico-planetário se transforma num problema moral de consciências mais ou menos poluídas ou, então, num problema legal e policial: cumpridas as leis, estaria - segundo este e outros ambientalistas - tudo bem.
Quem tal idealismo ambientalista prega, no entanto, é quem mais dados fornece para demonstrar a irreversibilidade do processo e a impossibilidade de ser algum dia resolvido com medidas reformistas: sermões morais ou ameaças policiais de fiscalizacão e multas.
Entre a vida e o petróleo, a humanidade, terá de escolher.A chatice é que já escolheu o petróleo.
TRÁFEGO DA MORTE OCEÂNICA
Como lembra o próprio Bonnefous, em 1926 o transporte petroleiro mundial não ultrapassava 60 000 000 (sessenta milhões) de toneladas, enquanto em 1976 é de1500000000 (um bilião e quinhentos milhões) de toneladas.
Em 50 anos, a proporção é portanto de 60 para 1500, proporção a que todos chamam progresso.
Mas há mais números: em 1953, 1570 petroleiros podiam transportar 16 600 000 (dezasseis milhões e seiscentas mil) toneladas.
Vinte anos depois, em 1973, os 2000 petroleiros recenseados no mundo têm uma capacidade de 1 000 000 000 (um bilião) de toneladas.
Em vinte anos, a proporção é de 16 para 1000 (mil). A isto, todos chamam progresso.
Mais números: diariamente e em média, são derramados nos mares 10 000 (dez mil) toneladas de hidrocarbonetos.
Por malvadez ou má vontade?- pergunta a perturbada consciência ecológica da humanidade...
Sabe-se que não.
É a limpeza dos navios que obriga a deitar ao mar 1 por cento da tonelagem em ramas.
Contra esta poluição permanente, obrigatória, não acidental nem contingente, sistemática, que podem as leis? E que podem os ecolegalistas? Que adianta vociferar? Que resolvem os documentários televisivos que a Grã-Bretanha, muito indignada, empresta à TV portuguesa para nos transmitir os seus desgostos com o petróleo?
A ideia que sustenta as teses reformistas é que basta afastar a poluição da nossa casa para o problema ficar resolvido. Se a Grã-Bretanha, os Estados Unidos e o Japão não fossem tão atingidos, de certo que não se lembrariam de teleprotestar.
Existem nos portos do mundo muitas «gás limpo» de porta aberta para que os petroleiros aí «separem» os detritos.
Mas, na prática e na realidade, a permanência num porto custa milhões cada dia. Pelo que, na maior parte dos casos, as empresas depuradoras são só ficção e pouco negócio fazem.
O petróleo continua. E a morte do oceano também.
Amanhã: Morte em segurança
- - - - -
(*) Publicado no jornal « A Capital» (Opiniões Livres), 16/1/1979***
***
<< Home