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2006-01-20

ECOS 1989

89-01-20> mec-1-ecc> = ecos da capoeira - os dossiês do silêncio - inédito 1989

A GÍRIA VÍDEO-CLIP -O CASO DE MIGUEL ESTEVES CARDOSO

Sumário: O cinismo vende bem - A vingança do Pai

20/1/1989 - Não sei se a sintonia das novas gerações pelo estilo Miguel Esteves Cardoso não tem uma explicação "crucial" nesse comum ponto de partida, os "vídeo-clips".
Há uma cultura dos "vídeo-clips", inflacionária, que as gerações imediatamente anteriores não conseguem acompanhar, por mais esforços que façam e por mais que leiam "O Independente" todas as semanas.
É a vingança do filho contra o pai caturra.
O êxito editorial de Miguel Esteves Cardoso tem, a meu ver, essa explicação de fundo. O semanário "O Independente" glosa, em muitos aspectos, essa cultura do "vídeo-clip".
Veja-se, por exemplo, o lugar de relevo que se dedica à análise dos spots publicitários (elevados à categoria de matéria informativa regular). Um sector crucial da economia - a publicidade - fica abrangido sob a palavra crucial "Vida", nome dado à revista separata .

"O Independente" reagiu ao esquerdismo que impregnava o teste experimental de acesso à Universidade, realizado para 600 alunos de várias escolas do País, em 198 (?)
Foi uma reacção baseada num modelo cultural completamente hostil aos modelos do Maio 68 e da "New Left" norte-americana dos mesmos anos 60.
Fidelino de Figueiredo, autor do livro "Música e Pensamento", que queria dar à música na educação o lugar que a filosofia perdera, encontra-se entre os escritores portugueses colocados no índex pelo marketing literário e é um dos muitos que a barragem dos best-sellers pré-fabricados parece ter lançado em eclipse de esquecimento.
É de referir autores que esta barragem do marketing tem lançado no esquecimento e no ostracismo, desde Maria Archer a Irene Lisboa, passando por António Sérgio, José Bacelar, José Marinho, Leonardo Coimbra, Álvaro Ribeiro, Fialho, Pascoaes.
A moda, artimanha crucial, unificante do caos, impõe-se espontaneamente, tanto como a publicidade. Tenho visto miúdos repetirem os slogans publicitários da rádio e da televisão como quem reza as letras de uma oração, acto que já teve a sua crucialidade em outros contextos culturais.
Os quadros de best-sellers - artimanha crucial, tanto como as sondagens de opinião - impõem a sua lei, apoiados na inflexível lei do marketing.
Qualquer frivolidade de momento barra a publicitação de autores ou temas de fundo.
Ainda não ouvi falar disto, desta injustiça que é a desinformação sobre o essencial feita pela overdose de informação sobre o acessório.
Se a cultura vídeo-clip é um facto, como tal se deve aceitar. Porque a aceitação conformista e sem crítica é o dogma número dessa cultura-religião dos novos tempos visuais.
O erro que a nova prova de acesso à Universidade cometeu é dessa ordem: desvincula-se da cultura visual dominante, baseando-se numa cultura livresca e da imprensa escrita a qual, exigindo um esforço de leitura, está literalmente fora de moda.
Se o livro sofreu um processo sistemático de exílio - apenas agora sustentado pelos balões de oxigénio dos best-sellers pré-fabricados - é insólito que um Ministério da Educação apele agora à cultura literária (a que vem através da leitura) e às motivações que do livro derivam, quando sabe perfeitamente não haver tempo nenhum para ler.
Além da dominante televisiva sobre o cérebro das novas gerações, a dominante informática( a que outros chamam a barbárie dos computadores) é também uma nascente ou derivante crucial.
São muitas dominantes a competir no cérebro e no espaço mental das novas gerações.
Que tempo lhes fica para cultivarem a alma, se a alma é a primeira coisa que a tirania audio-visual lhes tira?
A ofensiva do Mercado Único - outro mito crucial - significa a violência decisiva (ela também crucial, enquanto violência) sobre a disponibilidade interior mínima das novas gerações.
O teste de cultura, nos termos em que está concebido e nos termos em que foi experimentado, ignora tudo isto, faz tábua rasa dessa crucial e cruciante condicionante da cultura individual: o tempo que os "cronóvoros" ou "cronófagos" nos deixam livre.

OBJECTOS CRUCIAIS

Objectos cruciais na vida doméstica são o fogão e eventualmente o esquentador, com certeza a torneira.
Mas a já citada chave é, de todos os objectos domésticos e pessoais, o mais crucial, visto que dá ou tira o acesso a todos os outros.
Mas também são cruciais a caneta, o papel onde escrevo.
O receptor de rádio como o receptor de televisão, eles próprios cruciais, têm o ponto crucial no botão, tanto como as grandes potências têm no botão o ponto crucial para desencadear um holocausto nuclear e no botão da barguilha o homem tem um dos seus pontos fracos, caso se esqueça de o abotoar.
Nos objectos de uso pessoal ou doméstico, o relógio é crucial.
Faz-se hoje uma mitologia do relógio, como objecto de consumo, mas também como ponto de passagem e de cruzamento de várias correntes do quotidiano.
Ter em casa um relógio parado dá azar.
Entre parar o relógio e parar o coração, o ponto crucial comum é claro.
O relógio mede o tempo, categoria ontológica decisiva e sine qua non, a montante de toda a nossa existência.
A ideia de nascente e a ideia de matriz completam a ideia de passagem crucial, a que não é alheia a ideia de passagem iniciática ou, na Bíblia, o símbolo da "porta estreita", ou do "fundo da agulha".

ACESSÓRIO E ESSENCIAL

A noção de crucial obriga-nos a distinguir o acessório do essencial, a separar o dispensável do indispensável, o que desempenha uma função crítica crucial, por sua vez, face à pulverização de dados, conhecimentos, ciências, solicitações, consumos, frivolidades, passatempos, que requisitam o homem das sociedades urbanas, escravo da televisão, centro crucial de todas as dispersões.

O número de pontos cruciais assinala a condicionante esquizofrénica da cultura inculta moderna, disparando em mil acessórios que desatendem o consumidor audio-visual do essencial, baralhando todos os valores e pervertendo todas as escolhas.
O que foi o racionalismo, epigonizado pelo positivismo, senão o esforço histórico de criar uma superestrutura estruturante a partir de uma entidade crucial, a razão?
Mas o racionalismo gera automaticamente o seu contrário, os irracionalismos, oscilando a cultura europeia entre esses dois contrários que eternamente se combatem pelo mesmo objectivo : a unidade.

A CONTAMINAÇÃO: CONCEITO CRUCIAL DA MODERNIDADE

A contaminação ou dispersão em fluido de poluentes é forma sui-generis de unidade, sintoma crucial. Uma "laranja" de Plutónio pode contaminar todo o Globo, tal como uma cápsula de Césio (Brasil) ia contaminando todo o continente sul-americano.
Um pingo de tinta pode colorir dezenas de litros de água.
São sintomas a jusante, tão cruciais, porém, enquanto efeitos e consequências, como a nascente é enquanto causa.

OS CLÁSSICOS

Os clássicos falaram de causa rerum, conceito próximo, se não mesmo sinónimo, do que decidi designar aqui por crucial.
A Bíblia é exemplo de livro crucial (o livro dos livros, chamado) mas também "Os Lusíadas" ou"Hamlet" ou "A La Recherche du Tempo Perdu" ou o "Fausto".
Mas toda a actividade artística será crucial porque globalizaste, ou tanto mais crucial quanto mais globalizante, o que é costume designar por "universalidade" da obra de arte.
Mas a música seria, de todas as artes, a mais crucial pelas suas características de unificação fácil , "união espontânea com o todo", aspecto que explica a vaga de paixão, posteriormente aproveitada pela sociedade do marketing, que a música suscita nas novas gerações.
Canais de televisão nos EUA debitam as 24 horas do dia torrentes de vídeo-clips musicais, submersão esta de matéria "líquida" a que se pode associar uma homogeneidade de clima, um "ar" que se respira, indispensáveis ao mínimo do equilíbrio emocional.
Os jovens respiram vídeo-clips: porque não deixar que eles sejam mais um tóxico agradável e potente criando dependência, numa sociedade que decidiu tornar a toxico-dependência uma das suas artimanhas cruciais?
Tal como escreve Allan Bloom, na sua obra um tanto chatarrona "A Cultura Inculta", " a música afecta a vida muito profundamente". No entanto, qual é o conteúdo ínformacional da música? Eis o que literalmente não interessa nada para a cultura do video-clip.
Em todo o caso, deverá fazer-se a distinção da grelha formal - a música e a matemática, por exemplo - e da grelha informacional, como Antígona, Fausto, Hamlet, Ulisses, ou qualquer outro mito literário carregado de informação e significado.
A música teve artes de tomar na alma das novas gerações um lugar que dificilmente a religião, a matemática, a crítica ou a poesia - campos genéricos concorrentes - dificilmente poderiam ocupar.
Talvez porque a música é, de todas essas grelhas unitárias, a que exige menos esforço do consumidor. Basta beber.

GREVES CRUCIAIS

Em caso de greve geral, ficam bem nítidas as profissões cruciais, aquelas que têm maior poder reivindicativo, dada a sua posição estratégica a montante na rede de interdependências e na correlação de forças.
Basta que parem os transportes, por exemplo, para parar quase tudo o resto por arrasto.
Basta que parem as telecomunicações, para que sectores os mais variados parem também ou andem a retardador.
O grau de crucialidade dos transportes e telecomunicações é máximo relativamente à crucialidade dos jornalistas ou mesmo de algumas profissões liberais como a dos advogados, perfeitamente dispensáveis no funcionamento da sociedade.
A indispensabilidade aumenta o poder.
Um colector ou esgoto ou cano goza de idêntico poder pelo seu alto teor de crucialidade. Se entope, está tudo entupido.
Já se têm valido desse poder os trabalhadores do lixo, com demonstrações monumentais do seu poder decisório, empunhando a sua principal arma na emergência, o cheiro, que deixam exalar dos contentores por despejar.
Quanto mais centralizada é uma organização ou uma energia, mais crucial e indispensável tende a tornar-se.
Se a Electricidade de Portugal faz exigências de dinheiro ao Governo, o mais certo é conseguir o que pede - se a EDP se zanga, e pára, todo o Pais pára, ou fica às escuras. Durante o PREC os disparos na estação do Pocinho ficaram históricos...
Mas se todas as celuloses pararem, o país nem dará por isso. Ou só dará , pela ausência do mau cheiro.
O poder e a importância da EDP - ou de outros estados dentro do Estado - advém-lhe deste posicionamento crucial.
Aliás, quando Vasco Gonçalves nacionalizou a torto e a direito, sabia o que fazia, tinha bem quem o aconselhasse, bons avaliadores dos índices de crucialidade dos diversos sectores económicos.
A Reforma Agrária, por exemplo era a chave dos nossos estômagos.
A secção "a par-impar" dá, no semanário "O Independente" o toque de um moderno cinismo relativamente a valores, na certeza de que a nova juventude se está nas tintas para valorizar seja o que for, ou para se preocupar por algo mais do que os tropismos do seu ego.
Vendo bem, o que vende bem hoje é uma arrogância distante relativamente a qualquer compromisso ou mesmo ao que acontece à nossa volta, e uma tomada de não-posição ou uma não-tomada de posição seja com o que for: dividir o mundo entre o que é piroso e o que o não é, eis o máximo da axiologia desta não filosofia de uma não-ética que se quer dar como dominante da nova juventude.
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