RUÍDO 1974
1-12 - 74-03-15-ie-et>sexta-feira, 29 de Novembro de 2002-scan
A INDÚSTRIA DO RUÍDO (*)
(*) Estes dois textos de Afonso Cautela foram publicados, com o mesmo título, no livro «A Indústria do Ruído», nº 3 da colecção Dossier Zero, por ele dirigida, na editora Arcádia (Lisboa), Março de 1974 , data da tipografia
«O silêncio é uma das principais necessidades do homem, assim como o recolhimento, porque não podemos criar nada de válido quando estamos constantemente cercados de ruídos de toda a espécie. Espero que o direito ao silêncio seja reconhecido tão importante como odireito à água e ao ar puro.»
Yehudi Menuhin, violinista americano de renome internacional
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[Março de 1974] - Falar em direitos humanos, a propósito de Ruído, é um contra-senso.
O Ruído industrializou-se e as indústrias fizeram-se para produzir, cada vez mais e melhor, não se fizeram para respeitar direitos humanos, nem para se ocupar ou preocupar com saúde, bem-estar, sono ou paz do cidadão, nem para lhe suavizar a existência, para diminuir tensões sociais, para facilitar relações e comunicação, para civilizar, enfim, para humanizar.
As indústrias não se fizeram para servir os homens mas para se servir deles.
Bem longe das armas convencionais - varapau, pistola, fisga, florete, sílex, bazuca, faca, adaga, forca, tesoura ou sovelão - que normalmente e ao abrigo dos códigos ainda levam a tribunal quem delas se sirva para agredir ou simplesmente liquidar, e ombreando com as armas mais modernas para as quais os códigos ainda não criaram recompensas - o automóvel, as radiações, a talidomida, o napalm, o antibiótico, o fósforo e outros desfolhantes, a transplantologia, o aditivo cancerígeno, o DDT, o medicamento tóxico, o ar poluído, a ignorância ecológica, etc etc (armas perigosíssimas estes etc ) - o Ruído está para lá do Bem e do Mal, goza de perfeita impunidade, fica acima de toda a suspeita. É adorado em vez de temido. Manejado pela própria vítima em vez de odiado. Crime perfeito, sem resíduos, sem impressões digitais, o Ruído reina soberano e encontra-se actualmente na fase de expansionismo imperialista.
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A indústria do Ruído é um tipo de poluição invulnerável à demagogia dos que falam de poluição para não falar de ecocídio. Não se conhece antipoluente para o Ruído, logo não interessa sequer falar dele como poluente. Se toda a indústria poluente cria e implica outra indústria antipoluente, tão poluente como a primeira, o Ruído é absoluto, não tem contra-ofensiva, nem vacina, nem penso, nem reforma do Mal. A não ser uns ridículos auscultadores que filtram frequências (e deixam entrar o ruído), a não ser umas bolas de cauchu que facilmente podem rebentar a membrana do tímpano e que para isso foram feitas, fornecendo um belo contingente de acidentados à pequena cirurgia, a não ser umas bolas pegajosas de cera que se amoldam e que, permitindo uma certa defesa durante o sono, são impraticáveis na vida corrente, no trabalho, etc - o Ruído não tem anti-poluente que mereça o nome e o gabarito de indústria válida.
Daí que seja, portanto, a indústria absoluta porque absolutamente poluente.
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WOODSTOCK
Woodstock convenceu o Mundo de que era concentração de fraternidade juvenil a 70 por cento. E talvez fosse. Os milionários que o promoveram talvez não tivessem interesse imediato, directo em promover o Ruído, o disco, o estereofónico, a coluna de alta fidelidade, o auscultador especial, a percussão dita «musical» como as mais belas formas de corromper o sistema nervoso da juventude e, portanto, o melhor da melhor juventude. Se o aparelho auditivo fosse o único a corromper-se, do mal ao menos: surdo é menos pior do que atrasado mental e a juventude intoxicada na orgia do Ruído é fatalmente uma juventude de atrasados mentais.
Mas a verdade é que dezenas de outros festivais - esses, sim, única e exclusivamente festivais do Ruído - se multiplicaram por todos os recantos do mundo «livre» (livre de imbecilizar a humanidade até aos limites do ilimitado) e a indústria, já sem boa fé a cobri-la, apareceu próspera aos olhos de todos. E ouvidos. Menos os das vítimas, que continuaram ingorgitando roks, pops e outras vogas, convencidos de que consomem «progressismo».
A isca foi mordida. Sabido que a juventude já não consome reacção, porque lê nas entrelinhas dos jornais e nas horas vagas que lhe ficam do consumo até raciocina, à média vertiginosa de um raciocínio por mês, - a indústria do Ruído a três dimensões recuperou sem remorsos Bob Dylan, sem custo recuperou José Afonso e sem esforço recuperou Paco Ibañez, fornecendo depois, com posters do Che, o melhor Ruído que se fabricava no mercado em títulos e subtítulos do mais variegado e pintalgado «inconformismo».
Levado pela onda pútrida do Ruído, o jovem passou a consumir «progressismo», «inconformismo», «esquerdismo», como consome cinturões, peúgas, gadgets, automóveis, motorizadas.
De caminho, porém, e principalmente o que ele consome é Ruído. Porque se o «gadget» tem apenas reflexos na «saúde» da bolsa paternal (o que sendo lucro para a indústria não é assim por aí além para a classe), o Ruído tem uma acção corrosiva, permanente, autocontrolada sobre a saúde mental, nervosa, afectiva, erótica e neurótica e física do jovem, «homem de amanhã».
O que caracteriza as novas indústrias como a do Ruído, como as indústrias da Distracção (hipódromos, autódromos, exposições caninas, desportos motorizados, etc.), como a indústria Nuclear, como a indústria Química( cosméticos, antibióticos, tranquilizantes, pesticidas, aditivos), como as indústrias alimentares, como as indústrias farmacêutica e cirúrgica, é que são indústrias maternalmente protectoras, amigas, e ao serviço do público. Não bélicas. Tratam da saúde ao cidadão, ao consumidor, atingem-no não já e não só no estatuto sócio-económico mas no seu edifício biológico e genético, no mais profundo da vida e da morte - a célula.
O que além de aprofundar a influência manipulatória sobre o consumidor (com direito então ao título de «homem unidimensional»), torna a indústria invulnerável à crítica de esquerda, toda ela, sem excepção, única e exclusivamente preocupada com o estatuto sócio-económico, incapaz de compreender portanto, onde e como as indústrias maternalistas corrompem a vida e a qualidade da vida.
Para os que o industrializaram, é evidente a função política do Ruído. Só a esquerda clássica, que nenhum ruído consegue de facto acordar da sua ancestral letargia, só essa feliz e alegre comadre ignora a função política do Ruído, porque o industrializaram, e porque se industrializou igualmente a alimentação, a medicina, a educação, a cirurgia, etc, etc.
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O Ruído é, por excelência, o terror anónimo, irresponsável, difuso. Não se sabe quem o produz, não se pode apelar para lei, árbitro, polícia, regulamento, tribunal.
Acima de tudo, o Ruído resolve o grande problema da indústria que é um problema de (má) consciência. Que é o de evitar «sujar as mãos». Colocando nas mãos das próprias vítimas o instrumento agressor, a indústria do Ruído nem de guarda-costas precisa.
No caso dos transistores e das motorizadas, esse instrumento ainda por cima vem disfarçado de instrumento útil e de factor de diversão. Um transistor é um utensílio de «prazer» para o consumidor, assim como a motorizada, o cão, o automóvel.
O ruído de um jacto, de um comboio, de uma cadeia de montagem numa fábrica, já são mais obviamente odiosos e já se podem imputar, mais clara e perigosamente, a uma empresa ou companhia. Pelo contrário, o «inocente» transistor, a «inocente» motorizada, a «inocente» cadelinha de luxo (conforto da dona viúva) são manejados pelo próprio consumidor.
(Facto que dá ao Ruído, além do mais, um poder de infiltração praticamente infinito e permanente. Até aos mais remotos interstícios do espaço e do tempo de cada um.)
Em decibéis, o ruído do jacto ou do comboio ou da máquina pesada podem parecer agressões mais violentas. Em quantidade, em valor absoluto, talvez; não em valor relativo: porque no ruído há que considerar principalmente, com a assiduidade, a frequência com que acorre ao limiar auditivo, e a qualidade desse Ruído. O jacto passa em local e em hora determinados, mas a motoreta passa em todos os lugares e a qualquer hora das 24 do dia, da noite, da madrugada; a cadela berra não importa onde, como, quando e provam os factos que pode ladrar as 24 horas do dia, ininterruptamente, e que de facto o faz.
Entre um jacto que passou uma vez sobrevoando a cabeça do utente, durante vinte e quatro horas, e a cadela de luxo que ladrou as vinte e quatro horas por baixo da mesma cabeça, quem não achará esta última a mais estupenda forma de alienação moderna?
Com tal instrumento de tortura a domicílio, como irá prescindir dele quem dele tanto proveito aufere em degradação da «pessoa humana»? É evidente que nada se fará para neutralizar, sequer apaziguar um factor tão útil de aviltamento.
Sabendo-se que a eliminação do Ruído nem sequer põe problemas técnicos, porque é apenas questão de se querer ou não querer eliminar, salta à vista de que o Ruído existe onde, quando, enquanto e até quando se queira que ele exista.
Se houvesse algum interesse em eliminá-lo (o que não é o caso) custaria muito menos do que um viaduto para automóveis.
Voltando ao odioso.
Como toda a poluição deixa na opinião pública (?) um rastro de odioso contra o foco poluente, o ruído a domicílio inventou, entre outros veículos dele, a motoreta, para que o odioso recaia sobre o operário que normalmente a utiliza.
Ë evidente que o padeiro, o empregado da mercearia, o distribuidor de gás butano, o operário que vai para a fábrica, etc não podem comprar automóvel e é evidente que os automóveis, embora pela lógica da maior dimensão devessem ser mais ruidosos, são no que monta a ruídos umas plumas, uma perfeita alcatifa de quatro rodas.
Excepto, claro, nos casos em que o dono se arma em Fangio de bairro e retira o escape para maior prazer sexual no ronco produzido pelos gases de combustão, o automóvel é poluidor de ar mas não ganharia nenhuma medalha entre os poluidores acústicos.
Já o claxon é, por excelência, o ruído para consumo da média e grande burguesia. Dá classe, tom, charme. O claxon espevita, anuncia que vai ali alguém, chama a dama à janela, permite mostrar o peito. Pelo contrário, o escape, o ronco do motor avilta, esmurra, esgota a paciência, irrita, em vez de espevitar mete a dama dentro de casa, é portanto o ruído próprio da classe operária, para que sobre ela recaia o odioso.
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Ainda quanto à motorizada, já foi explicado a raiz profundamente sexual do interesse que por ela nutre o jovem.
Fellini dedicou o clímax final do seu filme Roma a estes «anjos do Apocalipse» que todas as noites acordam milhares de cidadãos e para os quais, evidentemente, nenhuma lei ou repressão se exerce. Seria assaz contraditório que a indústria do Ruído consentisse em adoptar medidas que viessem limitar ou coarctar a máxima produtividade, que estimulasse a sua própria repressão.
Seria tão contraditório como pedir à Medicina que curasse, se a indústria terapêutica está feita, evidentemente, para produzir doentes e não para os evitar.
Seria tão contraditório haver medidas legais limitando o ruído, reprimindo ou castigando, como uma lei proibindo o DDT, os antibióticos, as vacinas, as drogas.
Para lá de tudo o mais que no quotidiano da «civilização» industrial deteriora o sistema nervoso do cidadão (ponto de passagem para todas as outras doenças que alimentam por sua vez outras tantas indústrias) o Ruído é agente privilegiado de corrosão e aviltamento, o produtor por excelência de stress e de irritabilidade, de desequilíbrio e de vazio mental: como iria a indústria abdicar de com ele fornecer matéria-prima a tantas outras indústrias?
Sem ruído consumir-se-iam menos ou nenhumas bebidas alcoólicas, menos ou nenhuns estupefacientes, menos ou nenhuns tranquilizantes, menos ou nenhuns hospitais psiquiátricos; menos ou nenhuns desportos evasores; menos ou nenhuns programas de televisão, filmes de espionagem, etc haveria menos alcoólicos, menos drogados, menos intoxicados, menos anormais e destrambelhados. Mas como iriam então viver as indústrias que de tudo isso vivem?
Além de que, sem Ruído, o homem teria mais tempo para pensar, para reagir criticamente ao meio ambiente, para se mentalizar e politizar, eventualmente para se desalienar e revoltar.
Sem Ruído, aumentaria a lucidez, a inteligência, a imaginação, o afecto no Mundo, porque aumentaria o equilíbrio nervoso e erótico dos indivíduos.
Sem Ruído, o homem seria feliz.
Sem Ruído, seria respeitado o direito ao silêncio e com ele os outros direitos fundamentais do homem.
Ora não consta que uma indústria exista para respeitar direitos humanos. Aí está a ONU, a FAO, o tribunal de Haia, o BIT encarregados da respectiva retórica e da respectiva demagogia.
Pedir ao Ruído que não provoque doenças (que vão produzir novas indústrias que vão provocar novas doenças que vão produzir novas indústrias que vão provocar novas doenças) é o mesmo que pedir aos municípios que protejam o munícipe, ao automóvel que não atropele e mate, ao comboio que não trucide, é o mesmo que pedir ao quadrado que seja redondo ou ao Rossio que caiba na Betesga, pedir à Medicina que cure, à cirurgia que não use de violência, ao terror que respeite os direitos dos indivíduos e os valores humanos, à Escola que acabe com os exames.
O indivíduo encontra-se totalmente exposto e seria contraditório pedir aos organismos encarregados de o mastigar que o libertem.
Pilriteiro que dá pilritos a mais não se deve obrigar, diria António Sérgio.
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À primeira vista a proliferação de cães domésticos não corresponde a um intuito industrial. Mas não nos fiemos das aparências, caríssimos paroquianos. Na realidade o «negócio» de cães é hoje um dos mais florescentes e tem várias ramificações: para os que produzem (dão à luz) é negócio de 500%; depois as taxas pagas à fiscalização são outro florescente ramo da indústria tributária; o contingente fornecido às clínicas veterinárias não tem rival em qualquer outro tipo de animal, a não ser no homem; nas exposições de luxo, na caça, nas diversas quão úteis funções de cão-polícia e cão-de-guarda (à pequena e média propriedade), a espécie tornou-se um bem de consumo altamente cotado e que a indústria, portanto, não tem dúvidas em acarinhar. Mais: que a indústria fomenta.
Como fornecedor de ruído ao natural, o cão é de todos os poluentes o mais económico, o mais frequente, o mais incansável, com a suprema vantagem de sobre ele pairar o consenso da ternura e da zoofilia, com a atenuante de servir para conforto erótico ou sentimental de pessoas sós, facto que imediatamente não só o põe a salvo de toda a repressão como faz dele o instrumento privilegiado de toda e qualquer repressão.
O amor ao cão anda, regra geral, em razão inversa do amor dos homens. E de um abastado proprietário ouvi estas ameaças contra o vizinho:
«Sou capaz de matar aquele que me tocar no cão. Não sabem com quem se metem, metem-se com um verdadeiro português das sete quinas. Dão com um homem que tem 1,87 de altura. Vou pôr uma coisa eléctrica no muro que ficam aí agarrados.»
Isto porque o abastado proprietário suspeitava vagamente de que o vizinho não nutria pelos rafeiros em geral e por aqueles em particular uma absoluta e indefectível simpatia. Naquelas palavras de um «verdadeiro português» perpassam não só os sentimentos do maior fervor patriótico como a maior ternura zoófila.
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O Ruído não é apenas o cretinizador n.º1, facto que aliás a indústria não esquece. Além de cretinizar - acção a longo prazo mesmo quando o foco deixa de vibrar - o Ruído suspende qualquer actividade inteligente e de raciocínio enquanto dura.
Não nos admiremos se ao entrar num táxi o respectivo rádio estiver a vomitar os costumados chinfrins da chamada «música ligeira» a um volume de som que nos pode parecer intolerável para qualquer ser humano e que, no entanto, parece não afectar o motorista: antes pelo contrário. Intolerável para ele não é o banzé mas que não haja um ruído qualquer a ocupar-lhe o cérebro e o tédio.
O Ruído em particular e os «mass media» em geral desempenham assim uma função política nada despicienda. Conseguem «pacificamente» o que outrora requeria violentas formas de lavagem ao cérebro, funcionários especializados e longamente treinados, profissionais bem pagos e armados, meticulosos horários profissionais e livros de ponto, burocracia dispendiosa.
Além de cretinizar por excelência, o Ruído é o alienador mais económico porque rápido, actuando sem intermitências nem interrupção, a domicílio, mecanizado e robotizado, mesmo automatizado, prático, eficiente.
Sabido que a produção de ideias (imaginação criadora e liberdade crítica) são os mais perigosos antídotos contra a alienação e sabido que o trabalho de imaginação mental necessita de silêncio como os pulmões de oxigénio, não devemos estranhar que a indústria o cultive com tanto esmero e carinho, tendo nas próprias vítimas o melhor aliado. De contrário, não seria alienação.
O Ruído funciona ainda como eliminador de grande eficácia, função esta das mais esquecidas pelos críticos da sociedade industrial e portanto aproveitada pela industriocracia.
Luís Buñuel em «O Encanto Discreto da Burguesia» serve-se do Ruído (na emergência um avião a jacto) para suprimir (censurar) as palavras com que a autoridade justificava ao telefone aquilo que seria escandaloso justificar. O Ruído, portanto, abafa o escândalo, esbate, desbota vestígios comprometedores. Melhor do que a borracha de apagar, o Ruído guarda e resguarda aparências.
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Angústia, stress, irritabilidade, insónia, surménage, alcoolismo, neurose, toxicidade, vazio existencial, desespero, delinquência ( juvenil), crime, suicídio, eis apenas alguns aspectos do sindroma Ruído.
Perante um quadro clínico tão aprazível e para o qual o Ruído contribui com tão valiosa quota parte, quem pode acreditar que alguma coisa se faria alguma vez para evitar um e outro (o ruído e o quadro)?
Se o Ruído dá origem a tantas e tão florescentes indústrias ( as que aquele quadro clínico, fora o que falta, localiza e indica), quem acredita que alguém vá renunciar a elas e a quantos dela se edificam a bem da civilização ocidental?
O síndroma do Ruído é um dos mais ricos da Sintomatologia, um dos que melhor comprovam a cloaca em que vivemos e a tese axiomática (posta em causa por psiquiatras eminentes) de que 99 % das doenças são doenças de ambiente. Mas por isso mesmo não deve ser apontada a causa que tantas e tão belas indústrias faz florescer.
Evidentemente que nem só de Ruído vive a doença mental, o atraso de vida e de raciocínio, a idiotia generalizada, a alienação maciça, o esvaziamento e a lavagem de cérebros. Nem só ao Ruído se deve tanta coisa boa para o progresso e nem o Ruído, coitado, pode tudo. Se ele é um dos pilares da civilização, há que fazer justiça também a outras factores do congestionamento urbano: tráfego, tensões sociais entre classes, frenesim arrivista, a febre competitiva (no desporto, na vida profissional, na escala escolar), a família e o supermercado, o trabalho servo e o ambiente cultural das várias academias em vigor contribuem em boa parte para o sindroma da microcefalia crónica.
O seu a seu dono, a glória a quem a merece. Mas não deixemos de dar ao Ruído prioridade e lugar destacado a que tem direito na origem das mais belas maleitas nervosas, mentais, psíquicas, afectivas, eróticas e neuróticas, maleitas que depois de devidamente industrializadas irão ocupar o imenso exército de zelosos «protectores da saúde pública» que são também os zelosos cavaleiros sempre infatigáveis no combate, no ataque à doença. Doença, evidentemente, que cultivam com cuidados laboratoriais, nessa fábrica imensa de patologias e neoplasias chamada Ambiente ou Habitat.
O DIREITO AO SILÊNCIO (*)
Como chamar a todo aquele que, armado de claxon, escape roto ou motor roufenho, torna todos os dias e a toda a hora a vida dos outros insuportável e a via pública uma cloaca?
Como chamar ao compatriota que decide agredir, minuto a minuto, hora a hora, dia a dia, o vizinho que não lhe fez mal nenhum?
Parece não haver dúvidas: de autêntica agressão se trata e de agressão «armada» um veículo que se nos atira para cima, seja com as rodas, seja com o claxon, seja com o escape, seja com o motor. Habituemo-nos a chamar às coisas pelos seus nomes, se nos queremos entender nisto de Ambiente. O problema não permite eufemismos nem sentimentalismos. É um caso de vida ou de morte. O ruído é um caso de vida ou de morte.
2
Com os tempos e as indústrias, evoluiu muito o conceito de criminalidade. Certas formas de poluição (para não dizer «toda e qualquer forma de poluição») são pura e simplesmente crime contra a humanidade; bem mais grave, por exemplo, do que outros já inseridos nos códigos.
À luz de uma ética prospectiva e à luz das ameaças que pesam sobre a segurança colectiva e o futuro da espécie humana, passam a ser crime (mesmo que ainda não esteja explícito nos códigos, porque o tempo anda aceleradamente e os códigos não) as agressões à identidade e à personalidade individual. Quer dizer: à qualidade de vida dos cidadãos.
Atentar pelo ruído contra a saúde psíquica de alguém, violar o direito ao silêncio do vizinho, há-de ser considerado em breve pelos códigos um crime tão grave e punido com tanta severidade como atentar contra a vida ou a liberdade de alguém. O direito das gentes terá de evoluir em função dos factos, de acordo com a história e a vertiginosa aceleração dos acontecimentos.
Feliz ou infelizmente, o facto determinante da moral de amanhã é o crime ecológico - o ecocídio - . Ainda antes do fim da década de 70, destruir o ambiente será crime a punir com pena de morte. E poucos meses faltam para todos verificarem porquê. São os factos que o dizem, são as forças da história que o determinam, mais cedo e mais depressa do que muitos julgam.
Cada época tem os seu tabus. Estabelece o que é autorizado e o que é proibido. As comunidades «primitivas» (assim designadas pela porcaria que se autoconsidera «civilização») também têm o seu código do que é proibido e do que é obrigatório, do que é legal e ilegal - duas formas, afinal, de violentação dos direitos do homem.
Daí que a conquista dos direitos fundamentais tenha sido, através das épocas, o sinal efectivo de progresso sobre a barbárie. Proibir ou obrigar são duas formas ou faces da mesma violência, da mesma agressão à liberdade - direito este que é fonte e fundamento de todos os direitos.
Alega-se que as sociedades têm de estabelecer esses códigos para a sua própria coerência e textura internas. Não é isso que se pretende discutir aqui mas apenas a oportunidade e a actualidade das proibições ou das obrigações, quer dizer: o conceito de crime, pecado, delinquência, erro.
Pior do que existirem (ainda) essas noções, e sinal de maior retrocesso, é que elas não acompanhem sequer as exigências de tempo e de espaço, as condições do lugar.
O problema do Ruído em particular e os da Poluição em geral, é um nítido exemplo dessa desactualização da Moral, porque o Ruído só começa a sentir-se como infracção, como crime, como suprema proibição num determinado grau de crescimento industrial das cidades, das sociedades. Não faria sentido, numa comunidade rural onde a industrialização ainda não tivesse chegado, que se criassem regras drásticas para punir crimes contra o ambiente. Possivelmente a violação da propriedade privada, numa economia de subsistência, constituirá aí, nessa comunidade pré-industrial, não-urbana, crime ou infracção mais grave e para o qual há, portanto, códigos, rigorosas leis e regras que rigorosamente se aplicam.
O que caracteriza os sistemas de valor em vigor nas sociedades industrializadas é a sua completa inadequação à realidade industrial, aos factos em aceleração permanente por impulso dela: quer dizer, às relações múltiplas estabelecidas entre comportamento e ambiente.
Lamentável, pois, é que verdadeiros crimes como são todos os que hoje se relacionam com a destruição da Natureza (que a todos pertence) e a deterioração do ambiente (única propriedade até agora absolutamente colectivizada) - não sejam ainda considerados e punidos em função da sua gravidade real. É que os códigos não acompanham o andamento e a aceleração dos acontecimentos, da realidade em função da qual deveriam existir porque para a servir existem.
O sinal mais chocante de retrocesso, de incivilização de uma «civilização» é essa inadequação dos códigos (e sistemas de valores em que se fundam) à realidade humana, social, económica, ambiente, ao movimento histórico em devir constantemente acelerado e a uma estratégia prospectiva da acção prática.
3
Ainda nesta linha de inadequação entre os factos e os valores, chocante é também o que sucede com uma obrigatoriedade, uma das violentações exercidas pelo «sistema de valores» vigente sobre a liberdade fundamental e o respeito da pessoa humana pela pessoa humana. Uma visão sintomatológica da doença criou o mito - hoje completamente destruído por uma visão ecológica - da vacina.
Diagnosticada a doença como o ataque movido por um vírus ao corpo - vírus que «cai» do céu aos trambolhões, visão fatalista, metafísica, anti-científica e anti-ecológica da realidade e dos factos - impõe-se a vacina como imunização obrigatória. Impõe-se, não em sentido moral, mas legal. O que se deveria deixar ao alvedrio de cada um e à escolha, é legalmente imposto.
Como nada ainda conseguiu erradicar, afinal, a pior de todas as epidemias - que é a casmurrice e cegueira de certos sectores ditos intelectuais - é a visão teológica que ainda permanece numa sociedade que se pretende adulta e des-sacralizada. Desmitificada. Daí que a vacina se imponha por Lei. Daí que se desconheça o verdadeiro «inimigo» e, portanto, a verdadeira imunização, que é ecológica e não sintomatológica.
No caso do vírus - o da gripe, por exemplo, um dos mais vulgares - não se prepara e modifica o meio ambiente, ou antes, não se promove todo um sistema defensivo do organismo e os anticorpos ao germe ofensivo.
A respeito da verdadeira imunização - que para ser cientifica tem que ser causal, ecológica, fundamental - a ciência permanece muda e queda, a pretexto de que ainda nada sabe de seguro na matéria (ainda não conseguiu reduzir a números, a milhões de factos amontoados o que até cegos veriam mas que só a ciência não vê): dos vírus em geral e do vírus da gripe em especial, pois aparece um novo em cada ano.
Também era melhor que o vírus se repetisse. Que graça, que utilidade tinha um vírus vitalício, já repararam? Tal como a moda que muda todas as estações (para que a indústria dos costureiros prospere em função do consumo sempre renovado, das necessidades sempre artificialmente provocadas), o vírus - um vírus útil numa sociedade de consumo que se preza -deve mudar todos os invernos. Por um lado facilita o alibi de «ainda pouco sabemos deste novo e misterioso vírus»; por outro, deita-se fora o stock de vacinas do ano anterior e industrializa-se outra.
É que a ciência - eterna dúvida sistemática - duvida sempre e nunca sabe nada de seguro. Quando o afirma, aliás, ela está a ser mais verdadeira do que supõe. É que efectivamente a ciência nunca sabe nada (de seguro): e anda nisto há não sei quantos séculos. Alibi sempre salvador: «O progresso, meus senhores, não se fez num dia; um futuro mais brilhante nos aguarda; fazem favor de não se impacientar; vamos devagar mas lá iremos; etc etc.» A ciência nunca está, pois, segura de nada.
Mas segura ou insegura - isso é lá com ela - o que temos nós outros, out-siders, como seguro e certíssimo é a inoperância real da terapêutica sintomatológica. E o estado carencial em que sistemática e propositadamente se deixa cair o cidadão através de todo um meio ambiente sacador de resistências, de defesas, de guarnecimentos, de imunização «natural».
É afinal toda a história de um ambiente alimentar desmineralizante e desvitaminante, e de um meio em geral cada vez mais criminoso, agressivo.
Quer dizer, ignorando a Ecologia da Doença, a Ciência Instituída inverte totalmente o sentido dos valores: da Saúde e da Doença, do Bem e do Mal, do Crime e da Inocência, do Pecado e do não-pecado.
Ignorando a Ecologia - essa ignorância, sim, o único crime - como se deverá considerar a obrigatoriedade das vacinas?
E como se deverá classificar a sua inoperância?
E como se deverá considerar a inadaptação à realidade - patenteada pelos insucessos consecutivos das consecutivas terapêuticas?
Em suma: será infracção vacinar ou não-vacinar, à luz de uma filosofia, de um direito e de uma política de ambiente?
4
A abordagem da axiologia tem vindo a variar conforme os tempos: o ponto de partida tem sido teológico (fase ainda hoje predominante no que respeita aos assuntos de natureza humana); crítico; psicologístico, económico; político.
Já muito perto, veio a dialéctica a querer salvar o disparate de todas as outras juntas: mas dialéctica sem ecologia tem-se visto também a que lindas aberrações conduz.
Dominante em muitas partes do Mundo é hoje a visão economicista-política. Quer dizer: uma endemia será interpretada em função da luta de classes (os pobres estarão mais sujeitos à gripe porque não podem comprar vitamina C - será, a exemplo, uma visão economicista da realidade «epidemia»); não há muito, a visão psicanalística era ainda corrente, vigente: uma psicose, por exemplo, interpretar-se-ia com base numa genética da personalidade, em função dos recalcamentos infantis: falar-se-ia, segundo uma visão psicanalítica e psicologística, de tudo menos de meio ambiente, menos de Ruído, entre outros factores, como factor determinante da neurose, que radica, evidentemente, em todo o habitat: desde a alimentação ao alojamento, desde o ar às águas, desde o clima ao ambiente acústico, desde os ritmos cósmicos aos congestionamentos de tráfego, desde o ambiente familiar ao escolar, desde a TV à Imprensa, desde os livros escolares aos livros proibidos, desde os valores morais estabelecidos aos sinais de resistência de minorias activamente revolucionárias.
Enfim: uma visão ecológica apenas é total e englobante, anti-especialização e antitecnicismo, apenas é mais exigente, inteligente, difícil, complexa. De resto, é a única verdadeira.
Digamos que Ecologia não é para a burrice dos técnicos. Visão ecológica implica uma tal interpenetração de realidades - de «termos em sustentação recíproca» - uma atenção e uma sensibilidade a tantos factores simultâneos, que só uma inteligência viva (não mumificada por uma técnica qualquer), uma imaginação desperta, uma, lucidez radiográfica incansável é capaz dessa dialéctica. Que não é, evidentemente, o caso da ciência constituída e instituída, nem pouco mais ou menos.
Não ha visão dialéctica sem visão ecológica. E daí que os economistas sejam apenas um remanescente bastante podre de antigos tempos teológicos!
Quando o Ruído entra na rotina e se institucionaliza, o Sistema descansa. Já não perturba as consciências, já não incomoda os críticos.
Se, por exemplo, a cidade continua a ser sobrevoada, regularmente, a todas as horas do dia, e todos os dias da semana, e todas as semanas do mês, pelo ruído dos jactos, a Imprensa deixa de criticar o facto. É, com efeito, impraticável noticiar o que acontece todos os dias de maneira igual e não produz (imediatamente) mortos.
Mas se, por exemplo, experiências no próprio aeroporto produzem idêntica chinfrineira numa zona (até) mais restrita, o facto já é notícia e digno de a Imprensa lhe dedicar título a uma coluna.
Sobre cães e ruído produzido por cães, não existe na Câmara Municipal de Lisboa nenhuma postura. Quer dizer, é terreno sem lei e cada um pode atropelar o vizinho como quiser, produzindo o banzé que lhe apetecer.
Mas a postura municipal que existe, por exemplo, em Oeiras, não deixa de fazer a especiosa distinção entre ruído diurno e ruído nocturno. E as autoridades que garantem a segurança e a ordem, quando se apresenta uma queixa contra o cão do vizinho, pretendem saber se a situação do queixoso é normal ou anormal. Quer dizer, se tem alguém em casa à morte ou em coma, pois de contrário não considera o caso digno de ser observado.
Só se atende à excepção, ao folclore, ao que acontece uma vez. Se um munícipe é atentado pelo ruído do cão do vizinho todas as horas do dia, todos os dias da semana e, graças a Deus, todas as semanas do mês, que importância pode isso ter? O caso só passa a ser digno de alguma, pouca atenção, se o cão perturba o sono, ou se estiver alguém à morte em casa. Quem está de saúde (relativa) e quem apenas pretende estar, trabalhar, ouvir música ou repousar o espírito, não tem direito a nenhum silêncio.
Julgo explicar esta monomania pela excepção, da seguinte maneira: um morto é objecto de estatística. Dá para contar, para quantificar. Portanto, entra no capítulo do considerável. O resto, como respeita apenas à qualidade, não interessa. A existência e a qualidade da existência de cada um não interessam.
Se eu estiver meses a ser desgastado pelo ruído dos jactos da Portela ou pelo cão do vizinho, isso não interessa à Imprensa porque não é quantificável, nem estatístico, nem atinge expressão numérica.
Este princípio de ocultar a rotina com a excepção, o sistemático com o esporádico, constitui a espinha dorsal da estratégia demagógica.
É o truque: com os pequenos problemas encontrar maneira de escamotear os grandes.
A uma perspectiva inteligente (ecológica) é evidente que a regra interessa muito mais do que a excepção. Os mortos enterram-se. É com os vivos que os vivos devem ter cuidados de manutenção e ambiente. É a vida e não a morte que tem de se qualificar. Um morto não precisa de cuidados. Morreu. O que dura e perdura, o que existe, o que permanece não merece as atenções do Sistema e seus chamados órgãos de opinião, porque também só a excepção puxa ao sentimento e o melodrama é indesligável do Sistema. Da demagogia e doenças do Sistema.
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(*) Estes dois textos de Afonso Cautela foram publicados, com o mesmo título, no livro «A Indústria do Ruído», nº 3 da colecção Dossier Zero, por ele dirigida, na editora Arcádia (Lisboa), Março de 1974 , data da tipografia
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A INDÚSTRIA DO RUÍDO (*)
(*) Estes dois textos de Afonso Cautela foram publicados, com o mesmo título, no livro «A Indústria do Ruído», nº 3 da colecção Dossier Zero, por ele dirigida, na editora Arcádia (Lisboa), Março de 1974 , data da tipografia
«O silêncio é uma das principais necessidades do homem, assim como o recolhimento, porque não podemos criar nada de válido quando estamos constantemente cercados de ruídos de toda a espécie. Espero que o direito ao silêncio seja reconhecido tão importante como odireito à água e ao ar puro.»
Yehudi Menuhin, violinista americano de renome internacional
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[Março de 1974] - Falar em direitos humanos, a propósito de Ruído, é um contra-senso.
O Ruído industrializou-se e as indústrias fizeram-se para produzir, cada vez mais e melhor, não se fizeram para respeitar direitos humanos, nem para se ocupar ou preocupar com saúde, bem-estar, sono ou paz do cidadão, nem para lhe suavizar a existência, para diminuir tensões sociais, para facilitar relações e comunicação, para civilizar, enfim, para humanizar.
As indústrias não se fizeram para servir os homens mas para se servir deles.
Bem longe das armas convencionais - varapau, pistola, fisga, florete, sílex, bazuca, faca, adaga, forca, tesoura ou sovelão - que normalmente e ao abrigo dos códigos ainda levam a tribunal quem delas se sirva para agredir ou simplesmente liquidar, e ombreando com as armas mais modernas para as quais os códigos ainda não criaram recompensas - o automóvel, as radiações, a talidomida, o napalm, o antibiótico, o fósforo e outros desfolhantes, a transplantologia, o aditivo cancerígeno, o DDT, o medicamento tóxico, o ar poluído, a ignorância ecológica, etc etc (armas perigosíssimas estes etc ) - o Ruído está para lá do Bem e do Mal, goza de perfeita impunidade, fica acima de toda a suspeita. É adorado em vez de temido. Manejado pela própria vítima em vez de odiado. Crime perfeito, sem resíduos, sem impressões digitais, o Ruído reina soberano e encontra-se actualmente na fase de expansionismo imperialista.
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A indústria do Ruído é um tipo de poluição invulnerável à demagogia dos que falam de poluição para não falar de ecocídio. Não se conhece antipoluente para o Ruído, logo não interessa sequer falar dele como poluente. Se toda a indústria poluente cria e implica outra indústria antipoluente, tão poluente como a primeira, o Ruído é absoluto, não tem contra-ofensiva, nem vacina, nem penso, nem reforma do Mal. A não ser uns ridículos auscultadores que filtram frequências (e deixam entrar o ruído), a não ser umas bolas de cauchu que facilmente podem rebentar a membrana do tímpano e que para isso foram feitas, fornecendo um belo contingente de acidentados à pequena cirurgia, a não ser umas bolas pegajosas de cera que se amoldam e que, permitindo uma certa defesa durante o sono, são impraticáveis na vida corrente, no trabalho, etc - o Ruído não tem anti-poluente que mereça o nome e o gabarito de indústria válida.
Daí que seja, portanto, a indústria absoluta porque absolutamente poluente.
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WOODSTOCK
Woodstock convenceu o Mundo de que era concentração de fraternidade juvenil a 70 por cento. E talvez fosse. Os milionários que o promoveram talvez não tivessem interesse imediato, directo em promover o Ruído, o disco, o estereofónico, a coluna de alta fidelidade, o auscultador especial, a percussão dita «musical» como as mais belas formas de corromper o sistema nervoso da juventude e, portanto, o melhor da melhor juventude. Se o aparelho auditivo fosse o único a corromper-se, do mal ao menos: surdo é menos pior do que atrasado mental e a juventude intoxicada na orgia do Ruído é fatalmente uma juventude de atrasados mentais.
Mas a verdade é que dezenas de outros festivais - esses, sim, única e exclusivamente festivais do Ruído - se multiplicaram por todos os recantos do mundo «livre» (livre de imbecilizar a humanidade até aos limites do ilimitado) e a indústria, já sem boa fé a cobri-la, apareceu próspera aos olhos de todos. E ouvidos. Menos os das vítimas, que continuaram ingorgitando roks, pops e outras vogas, convencidos de que consomem «progressismo».
A isca foi mordida. Sabido que a juventude já não consome reacção, porque lê nas entrelinhas dos jornais e nas horas vagas que lhe ficam do consumo até raciocina, à média vertiginosa de um raciocínio por mês, - a indústria do Ruído a três dimensões recuperou sem remorsos Bob Dylan, sem custo recuperou José Afonso e sem esforço recuperou Paco Ibañez, fornecendo depois, com posters do Che, o melhor Ruído que se fabricava no mercado em títulos e subtítulos do mais variegado e pintalgado «inconformismo».
Levado pela onda pútrida do Ruído, o jovem passou a consumir «progressismo», «inconformismo», «esquerdismo», como consome cinturões, peúgas, gadgets, automóveis, motorizadas.
De caminho, porém, e principalmente o que ele consome é Ruído. Porque se o «gadget» tem apenas reflexos na «saúde» da bolsa paternal (o que sendo lucro para a indústria não é assim por aí além para a classe), o Ruído tem uma acção corrosiva, permanente, autocontrolada sobre a saúde mental, nervosa, afectiva, erótica e neurótica e física do jovem, «homem de amanhã».
O que caracteriza as novas indústrias como a do Ruído, como as indústrias da Distracção (hipódromos, autódromos, exposições caninas, desportos motorizados, etc.), como a indústria Nuclear, como a indústria Química( cosméticos, antibióticos, tranquilizantes, pesticidas, aditivos), como as indústrias alimentares, como as indústrias farmacêutica e cirúrgica, é que são indústrias maternalmente protectoras, amigas, e ao serviço do público. Não bélicas. Tratam da saúde ao cidadão, ao consumidor, atingem-no não já e não só no estatuto sócio-económico mas no seu edifício biológico e genético, no mais profundo da vida e da morte - a célula.
O que além de aprofundar a influência manipulatória sobre o consumidor (com direito então ao título de «homem unidimensional»), torna a indústria invulnerável à crítica de esquerda, toda ela, sem excepção, única e exclusivamente preocupada com o estatuto sócio-económico, incapaz de compreender portanto, onde e como as indústrias maternalistas corrompem a vida e a qualidade da vida.
Para os que o industrializaram, é evidente a função política do Ruído. Só a esquerda clássica, que nenhum ruído consegue de facto acordar da sua ancestral letargia, só essa feliz e alegre comadre ignora a função política do Ruído, porque o industrializaram, e porque se industrializou igualmente a alimentação, a medicina, a educação, a cirurgia, etc, etc.
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O Ruído é, por excelência, o terror anónimo, irresponsável, difuso. Não se sabe quem o produz, não se pode apelar para lei, árbitro, polícia, regulamento, tribunal.
Acima de tudo, o Ruído resolve o grande problema da indústria que é um problema de (má) consciência. Que é o de evitar «sujar as mãos». Colocando nas mãos das próprias vítimas o instrumento agressor, a indústria do Ruído nem de guarda-costas precisa.
No caso dos transistores e das motorizadas, esse instrumento ainda por cima vem disfarçado de instrumento útil e de factor de diversão. Um transistor é um utensílio de «prazer» para o consumidor, assim como a motorizada, o cão, o automóvel.
O ruído de um jacto, de um comboio, de uma cadeia de montagem numa fábrica, já são mais obviamente odiosos e já se podem imputar, mais clara e perigosamente, a uma empresa ou companhia. Pelo contrário, o «inocente» transistor, a «inocente» motorizada, a «inocente» cadelinha de luxo (conforto da dona viúva) são manejados pelo próprio consumidor.
(Facto que dá ao Ruído, além do mais, um poder de infiltração praticamente infinito e permanente. Até aos mais remotos interstícios do espaço e do tempo de cada um.)
Em decibéis, o ruído do jacto ou do comboio ou da máquina pesada podem parecer agressões mais violentas. Em quantidade, em valor absoluto, talvez; não em valor relativo: porque no ruído há que considerar principalmente, com a assiduidade, a frequência com que acorre ao limiar auditivo, e a qualidade desse Ruído. O jacto passa em local e em hora determinados, mas a motoreta passa em todos os lugares e a qualquer hora das 24 do dia, da noite, da madrugada; a cadela berra não importa onde, como, quando e provam os factos que pode ladrar as 24 horas do dia, ininterruptamente, e que de facto o faz.
Entre um jacto que passou uma vez sobrevoando a cabeça do utente, durante vinte e quatro horas, e a cadela de luxo que ladrou as vinte e quatro horas por baixo da mesma cabeça, quem não achará esta última a mais estupenda forma de alienação moderna?
Com tal instrumento de tortura a domicílio, como irá prescindir dele quem dele tanto proveito aufere em degradação da «pessoa humana»? É evidente que nada se fará para neutralizar, sequer apaziguar um factor tão útil de aviltamento.
Sabendo-se que a eliminação do Ruído nem sequer põe problemas técnicos, porque é apenas questão de se querer ou não querer eliminar, salta à vista de que o Ruído existe onde, quando, enquanto e até quando se queira que ele exista.
Se houvesse algum interesse em eliminá-lo (o que não é o caso) custaria muito menos do que um viaduto para automóveis.
Voltando ao odioso.
Como toda a poluição deixa na opinião pública (?) um rastro de odioso contra o foco poluente, o ruído a domicílio inventou, entre outros veículos dele, a motoreta, para que o odioso recaia sobre o operário que normalmente a utiliza.
Ë evidente que o padeiro, o empregado da mercearia, o distribuidor de gás butano, o operário que vai para a fábrica, etc não podem comprar automóvel e é evidente que os automóveis, embora pela lógica da maior dimensão devessem ser mais ruidosos, são no que monta a ruídos umas plumas, uma perfeita alcatifa de quatro rodas.
Excepto, claro, nos casos em que o dono se arma em Fangio de bairro e retira o escape para maior prazer sexual no ronco produzido pelos gases de combustão, o automóvel é poluidor de ar mas não ganharia nenhuma medalha entre os poluidores acústicos.
Já o claxon é, por excelência, o ruído para consumo da média e grande burguesia. Dá classe, tom, charme. O claxon espevita, anuncia que vai ali alguém, chama a dama à janela, permite mostrar o peito. Pelo contrário, o escape, o ronco do motor avilta, esmurra, esgota a paciência, irrita, em vez de espevitar mete a dama dentro de casa, é portanto o ruído próprio da classe operária, para que sobre ela recaia o odioso.
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Ainda quanto à motorizada, já foi explicado a raiz profundamente sexual do interesse que por ela nutre o jovem.
Fellini dedicou o clímax final do seu filme Roma a estes «anjos do Apocalipse» que todas as noites acordam milhares de cidadãos e para os quais, evidentemente, nenhuma lei ou repressão se exerce. Seria assaz contraditório que a indústria do Ruído consentisse em adoptar medidas que viessem limitar ou coarctar a máxima produtividade, que estimulasse a sua própria repressão.
Seria tão contraditório como pedir à Medicina que curasse, se a indústria terapêutica está feita, evidentemente, para produzir doentes e não para os evitar.
Seria tão contraditório haver medidas legais limitando o ruído, reprimindo ou castigando, como uma lei proibindo o DDT, os antibióticos, as vacinas, as drogas.
Para lá de tudo o mais que no quotidiano da «civilização» industrial deteriora o sistema nervoso do cidadão (ponto de passagem para todas as outras doenças que alimentam por sua vez outras tantas indústrias) o Ruído é agente privilegiado de corrosão e aviltamento, o produtor por excelência de stress e de irritabilidade, de desequilíbrio e de vazio mental: como iria a indústria abdicar de com ele fornecer matéria-prima a tantas outras indústrias?
Sem ruído consumir-se-iam menos ou nenhumas bebidas alcoólicas, menos ou nenhuns estupefacientes, menos ou nenhuns tranquilizantes, menos ou nenhuns hospitais psiquiátricos; menos ou nenhuns desportos evasores; menos ou nenhuns programas de televisão, filmes de espionagem, etc haveria menos alcoólicos, menos drogados, menos intoxicados, menos anormais e destrambelhados. Mas como iriam então viver as indústrias que de tudo isso vivem?
Além de que, sem Ruído, o homem teria mais tempo para pensar, para reagir criticamente ao meio ambiente, para se mentalizar e politizar, eventualmente para se desalienar e revoltar.
Sem Ruído, aumentaria a lucidez, a inteligência, a imaginação, o afecto no Mundo, porque aumentaria o equilíbrio nervoso e erótico dos indivíduos.
Sem Ruído, o homem seria feliz.
Sem Ruído, seria respeitado o direito ao silêncio e com ele os outros direitos fundamentais do homem.
Ora não consta que uma indústria exista para respeitar direitos humanos. Aí está a ONU, a FAO, o tribunal de Haia, o BIT encarregados da respectiva retórica e da respectiva demagogia.
Pedir ao Ruído que não provoque doenças (que vão produzir novas indústrias que vão provocar novas doenças que vão produzir novas indústrias que vão provocar novas doenças) é o mesmo que pedir aos municípios que protejam o munícipe, ao automóvel que não atropele e mate, ao comboio que não trucide, é o mesmo que pedir ao quadrado que seja redondo ou ao Rossio que caiba na Betesga, pedir à Medicina que cure, à cirurgia que não use de violência, ao terror que respeite os direitos dos indivíduos e os valores humanos, à Escola que acabe com os exames.
O indivíduo encontra-se totalmente exposto e seria contraditório pedir aos organismos encarregados de o mastigar que o libertem.
Pilriteiro que dá pilritos a mais não se deve obrigar, diria António Sérgio.
6
À primeira vista a proliferação de cães domésticos não corresponde a um intuito industrial. Mas não nos fiemos das aparências, caríssimos paroquianos. Na realidade o «negócio» de cães é hoje um dos mais florescentes e tem várias ramificações: para os que produzem (dão à luz) é negócio de 500%; depois as taxas pagas à fiscalização são outro florescente ramo da indústria tributária; o contingente fornecido às clínicas veterinárias não tem rival em qualquer outro tipo de animal, a não ser no homem; nas exposições de luxo, na caça, nas diversas quão úteis funções de cão-polícia e cão-de-guarda (à pequena e média propriedade), a espécie tornou-se um bem de consumo altamente cotado e que a indústria, portanto, não tem dúvidas em acarinhar. Mais: que a indústria fomenta.
Como fornecedor de ruído ao natural, o cão é de todos os poluentes o mais económico, o mais frequente, o mais incansável, com a suprema vantagem de sobre ele pairar o consenso da ternura e da zoofilia, com a atenuante de servir para conforto erótico ou sentimental de pessoas sós, facto que imediatamente não só o põe a salvo de toda a repressão como faz dele o instrumento privilegiado de toda e qualquer repressão.
O amor ao cão anda, regra geral, em razão inversa do amor dos homens. E de um abastado proprietário ouvi estas ameaças contra o vizinho:
«Sou capaz de matar aquele que me tocar no cão. Não sabem com quem se metem, metem-se com um verdadeiro português das sete quinas. Dão com um homem que tem 1,87 de altura. Vou pôr uma coisa eléctrica no muro que ficam aí agarrados.»
Isto porque o abastado proprietário suspeitava vagamente de que o vizinho não nutria pelos rafeiros em geral e por aqueles em particular uma absoluta e indefectível simpatia. Naquelas palavras de um «verdadeiro português» perpassam não só os sentimentos do maior fervor patriótico como a maior ternura zoófila.
7
O Ruído não é apenas o cretinizador n.º1, facto que aliás a indústria não esquece. Além de cretinizar - acção a longo prazo mesmo quando o foco deixa de vibrar - o Ruído suspende qualquer actividade inteligente e de raciocínio enquanto dura.
Não nos admiremos se ao entrar num táxi o respectivo rádio estiver a vomitar os costumados chinfrins da chamada «música ligeira» a um volume de som que nos pode parecer intolerável para qualquer ser humano e que, no entanto, parece não afectar o motorista: antes pelo contrário. Intolerável para ele não é o banzé mas que não haja um ruído qualquer a ocupar-lhe o cérebro e o tédio.
O Ruído em particular e os «mass media» em geral desempenham assim uma função política nada despicienda. Conseguem «pacificamente» o que outrora requeria violentas formas de lavagem ao cérebro, funcionários especializados e longamente treinados, profissionais bem pagos e armados, meticulosos horários profissionais e livros de ponto, burocracia dispendiosa.
Além de cretinizar por excelência, o Ruído é o alienador mais económico porque rápido, actuando sem intermitências nem interrupção, a domicílio, mecanizado e robotizado, mesmo automatizado, prático, eficiente.
Sabido que a produção de ideias (imaginação criadora e liberdade crítica) são os mais perigosos antídotos contra a alienação e sabido que o trabalho de imaginação mental necessita de silêncio como os pulmões de oxigénio, não devemos estranhar que a indústria o cultive com tanto esmero e carinho, tendo nas próprias vítimas o melhor aliado. De contrário, não seria alienação.
O Ruído funciona ainda como eliminador de grande eficácia, função esta das mais esquecidas pelos críticos da sociedade industrial e portanto aproveitada pela industriocracia.
Luís Buñuel em «O Encanto Discreto da Burguesia» serve-se do Ruído (na emergência um avião a jacto) para suprimir (censurar) as palavras com que a autoridade justificava ao telefone aquilo que seria escandaloso justificar. O Ruído, portanto, abafa o escândalo, esbate, desbota vestígios comprometedores. Melhor do que a borracha de apagar, o Ruído guarda e resguarda aparências.
8
Angústia, stress, irritabilidade, insónia, surménage, alcoolismo, neurose, toxicidade, vazio existencial, desespero, delinquência ( juvenil), crime, suicídio, eis apenas alguns aspectos do sindroma Ruído.
Perante um quadro clínico tão aprazível e para o qual o Ruído contribui com tão valiosa quota parte, quem pode acreditar que alguma coisa se faria alguma vez para evitar um e outro (o ruído e o quadro)?
Se o Ruído dá origem a tantas e tão florescentes indústrias ( as que aquele quadro clínico, fora o que falta, localiza e indica), quem acredita que alguém vá renunciar a elas e a quantos dela se edificam a bem da civilização ocidental?
O síndroma do Ruído é um dos mais ricos da Sintomatologia, um dos que melhor comprovam a cloaca em que vivemos e a tese axiomática (posta em causa por psiquiatras eminentes) de que 99 % das doenças são doenças de ambiente. Mas por isso mesmo não deve ser apontada a causa que tantas e tão belas indústrias faz florescer.
Evidentemente que nem só de Ruído vive a doença mental, o atraso de vida e de raciocínio, a idiotia generalizada, a alienação maciça, o esvaziamento e a lavagem de cérebros. Nem só ao Ruído se deve tanta coisa boa para o progresso e nem o Ruído, coitado, pode tudo. Se ele é um dos pilares da civilização, há que fazer justiça também a outras factores do congestionamento urbano: tráfego, tensões sociais entre classes, frenesim arrivista, a febre competitiva (no desporto, na vida profissional, na escala escolar), a família e o supermercado, o trabalho servo e o ambiente cultural das várias academias em vigor contribuem em boa parte para o sindroma da microcefalia crónica.
O seu a seu dono, a glória a quem a merece. Mas não deixemos de dar ao Ruído prioridade e lugar destacado a que tem direito na origem das mais belas maleitas nervosas, mentais, psíquicas, afectivas, eróticas e neuróticas, maleitas que depois de devidamente industrializadas irão ocupar o imenso exército de zelosos «protectores da saúde pública» que são também os zelosos cavaleiros sempre infatigáveis no combate, no ataque à doença. Doença, evidentemente, que cultivam com cuidados laboratoriais, nessa fábrica imensa de patologias e neoplasias chamada Ambiente ou Habitat.
O DIREITO AO SILÊNCIO (*)
Como chamar a todo aquele que, armado de claxon, escape roto ou motor roufenho, torna todos os dias e a toda a hora a vida dos outros insuportável e a via pública uma cloaca?
Como chamar ao compatriota que decide agredir, minuto a minuto, hora a hora, dia a dia, o vizinho que não lhe fez mal nenhum?
Parece não haver dúvidas: de autêntica agressão se trata e de agressão «armada» um veículo que se nos atira para cima, seja com as rodas, seja com o claxon, seja com o escape, seja com o motor. Habituemo-nos a chamar às coisas pelos seus nomes, se nos queremos entender nisto de Ambiente. O problema não permite eufemismos nem sentimentalismos. É um caso de vida ou de morte. O ruído é um caso de vida ou de morte.
2
Com os tempos e as indústrias, evoluiu muito o conceito de criminalidade. Certas formas de poluição (para não dizer «toda e qualquer forma de poluição») são pura e simplesmente crime contra a humanidade; bem mais grave, por exemplo, do que outros já inseridos nos códigos.
À luz de uma ética prospectiva e à luz das ameaças que pesam sobre a segurança colectiva e o futuro da espécie humana, passam a ser crime (mesmo que ainda não esteja explícito nos códigos, porque o tempo anda aceleradamente e os códigos não) as agressões à identidade e à personalidade individual. Quer dizer: à qualidade de vida dos cidadãos.
Atentar pelo ruído contra a saúde psíquica de alguém, violar o direito ao silêncio do vizinho, há-de ser considerado em breve pelos códigos um crime tão grave e punido com tanta severidade como atentar contra a vida ou a liberdade de alguém. O direito das gentes terá de evoluir em função dos factos, de acordo com a história e a vertiginosa aceleração dos acontecimentos.
Feliz ou infelizmente, o facto determinante da moral de amanhã é o crime ecológico - o ecocídio - . Ainda antes do fim da década de 70, destruir o ambiente será crime a punir com pena de morte. E poucos meses faltam para todos verificarem porquê. São os factos que o dizem, são as forças da história que o determinam, mais cedo e mais depressa do que muitos julgam.
Cada época tem os seu tabus. Estabelece o que é autorizado e o que é proibido. As comunidades «primitivas» (assim designadas pela porcaria que se autoconsidera «civilização») também têm o seu código do que é proibido e do que é obrigatório, do que é legal e ilegal - duas formas, afinal, de violentação dos direitos do homem.
Daí que a conquista dos direitos fundamentais tenha sido, através das épocas, o sinal efectivo de progresso sobre a barbárie. Proibir ou obrigar são duas formas ou faces da mesma violência, da mesma agressão à liberdade - direito este que é fonte e fundamento de todos os direitos.
Alega-se que as sociedades têm de estabelecer esses códigos para a sua própria coerência e textura internas. Não é isso que se pretende discutir aqui mas apenas a oportunidade e a actualidade das proibições ou das obrigações, quer dizer: o conceito de crime, pecado, delinquência, erro.
Pior do que existirem (ainda) essas noções, e sinal de maior retrocesso, é que elas não acompanhem sequer as exigências de tempo e de espaço, as condições do lugar.
O problema do Ruído em particular e os da Poluição em geral, é um nítido exemplo dessa desactualização da Moral, porque o Ruído só começa a sentir-se como infracção, como crime, como suprema proibição num determinado grau de crescimento industrial das cidades, das sociedades. Não faria sentido, numa comunidade rural onde a industrialização ainda não tivesse chegado, que se criassem regras drásticas para punir crimes contra o ambiente. Possivelmente a violação da propriedade privada, numa economia de subsistência, constituirá aí, nessa comunidade pré-industrial, não-urbana, crime ou infracção mais grave e para o qual há, portanto, códigos, rigorosas leis e regras que rigorosamente se aplicam.
O que caracteriza os sistemas de valor em vigor nas sociedades industrializadas é a sua completa inadequação à realidade industrial, aos factos em aceleração permanente por impulso dela: quer dizer, às relações múltiplas estabelecidas entre comportamento e ambiente.
Lamentável, pois, é que verdadeiros crimes como são todos os que hoje se relacionam com a destruição da Natureza (que a todos pertence) e a deterioração do ambiente (única propriedade até agora absolutamente colectivizada) - não sejam ainda considerados e punidos em função da sua gravidade real. É que os códigos não acompanham o andamento e a aceleração dos acontecimentos, da realidade em função da qual deveriam existir porque para a servir existem.
O sinal mais chocante de retrocesso, de incivilização de uma «civilização» é essa inadequação dos códigos (e sistemas de valores em que se fundam) à realidade humana, social, económica, ambiente, ao movimento histórico em devir constantemente acelerado e a uma estratégia prospectiva da acção prática.
3
Ainda nesta linha de inadequação entre os factos e os valores, chocante é também o que sucede com uma obrigatoriedade, uma das violentações exercidas pelo «sistema de valores» vigente sobre a liberdade fundamental e o respeito da pessoa humana pela pessoa humana. Uma visão sintomatológica da doença criou o mito - hoje completamente destruído por uma visão ecológica - da vacina.
Diagnosticada a doença como o ataque movido por um vírus ao corpo - vírus que «cai» do céu aos trambolhões, visão fatalista, metafísica, anti-científica e anti-ecológica da realidade e dos factos - impõe-se a vacina como imunização obrigatória. Impõe-se, não em sentido moral, mas legal. O que se deveria deixar ao alvedrio de cada um e à escolha, é legalmente imposto.
Como nada ainda conseguiu erradicar, afinal, a pior de todas as epidemias - que é a casmurrice e cegueira de certos sectores ditos intelectuais - é a visão teológica que ainda permanece numa sociedade que se pretende adulta e des-sacralizada. Desmitificada. Daí que a vacina se imponha por Lei. Daí que se desconheça o verdadeiro «inimigo» e, portanto, a verdadeira imunização, que é ecológica e não sintomatológica.
No caso do vírus - o da gripe, por exemplo, um dos mais vulgares - não se prepara e modifica o meio ambiente, ou antes, não se promove todo um sistema defensivo do organismo e os anticorpos ao germe ofensivo.
A respeito da verdadeira imunização - que para ser cientifica tem que ser causal, ecológica, fundamental - a ciência permanece muda e queda, a pretexto de que ainda nada sabe de seguro na matéria (ainda não conseguiu reduzir a números, a milhões de factos amontoados o que até cegos veriam mas que só a ciência não vê): dos vírus em geral e do vírus da gripe em especial, pois aparece um novo em cada ano.
Também era melhor que o vírus se repetisse. Que graça, que utilidade tinha um vírus vitalício, já repararam? Tal como a moda que muda todas as estações (para que a indústria dos costureiros prospere em função do consumo sempre renovado, das necessidades sempre artificialmente provocadas), o vírus - um vírus útil numa sociedade de consumo que se preza -deve mudar todos os invernos. Por um lado facilita o alibi de «ainda pouco sabemos deste novo e misterioso vírus»; por outro, deita-se fora o stock de vacinas do ano anterior e industrializa-se outra.
É que a ciência - eterna dúvida sistemática - duvida sempre e nunca sabe nada de seguro. Quando o afirma, aliás, ela está a ser mais verdadeira do que supõe. É que efectivamente a ciência nunca sabe nada (de seguro): e anda nisto há não sei quantos séculos. Alibi sempre salvador: «O progresso, meus senhores, não se fez num dia; um futuro mais brilhante nos aguarda; fazem favor de não se impacientar; vamos devagar mas lá iremos; etc etc.» A ciência nunca está, pois, segura de nada.
Mas segura ou insegura - isso é lá com ela - o que temos nós outros, out-siders, como seguro e certíssimo é a inoperância real da terapêutica sintomatológica. E o estado carencial em que sistemática e propositadamente se deixa cair o cidadão através de todo um meio ambiente sacador de resistências, de defesas, de guarnecimentos, de imunização «natural».
É afinal toda a história de um ambiente alimentar desmineralizante e desvitaminante, e de um meio em geral cada vez mais criminoso, agressivo.
Quer dizer, ignorando a Ecologia da Doença, a Ciência Instituída inverte totalmente o sentido dos valores: da Saúde e da Doença, do Bem e do Mal, do Crime e da Inocência, do Pecado e do não-pecado.
Ignorando a Ecologia - essa ignorância, sim, o único crime - como se deverá considerar a obrigatoriedade das vacinas?
E como se deverá classificar a sua inoperância?
E como se deverá considerar a inadaptação à realidade - patenteada pelos insucessos consecutivos das consecutivas terapêuticas?
Em suma: será infracção vacinar ou não-vacinar, à luz de uma filosofia, de um direito e de uma política de ambiente?
4
A abordagem da axiologia tem vindo a variar conforme os tempos: o ponto de partida tem sido teológico (fase ainda hoje predominante no que respeita aos assuntos de natureza humana); crítico; psicologístico, económico; político.
Já muito perto, veio a dialéctica a querer salvar o disparate de todas as outras juntas: mas dialéctica sem ecologia tem-se visto também a que lindas aberrações conduz.
Dominante em muitas partes do Mundo é hoje a visão economicista-política. Quer dizer: uma endemia será interpretada em função da luta de classes (os pobres estarão mais sujeitos à gripe porque não podem comprar vitamina C - será, a exemplo, uma visão economicista da realidade «epidemia»); não há muito, a visão psicanalística era ainda corrente, vigente: uma psicose, por exemplo, interpretar-se-ia com base numa genética da personalidade, em função dos recalcamentos infantis: falar-se-ia, segundo uma visão psicanalítica e psicologística, de tudo menos de meio ambiente, menos de Ruído, entre outros factores, como factor determinante da neurose, que radica, evidentemente, em todo o habitat: desde a alimentação ao alojamento, desde o ar às águas, desde o clima ao ambiente acústico, desde os ritmos cósmicos aos congestionamentos de tráfego, desde o ambiente familiar ao escolar, desde a TV à Imprensa, desde os livros escolares aos livros proibidos, desde os valores morais estabelecidos aos sinais de resistência de minorias activamente revolucionárias.
Enfim: uma visão ecológica apenas é total e englobante, anti-especialização e antitecnicismo, apenas é mais exigente, inteligente, difícil, complexa. De resto, é a única verdadeira.
Digamos que Ecologia não é para a burrice dos técnicos. Visão ecológica implica uma tal interpenetração de realidades - de «termos em sustentação recíproca» - uma atenção e uma sensibilidade a tantos factores simultâneos, que só uma inteligência viva (não mumificada por uma técnica qualquer), uma imaginação desperta, uma, lucidez radiográfica incansável é capaz dessa dialéctica. Que não é, evidentemente, o caso da ciência constituída e instituída, nem pouco mais ou menos.
Não ha visão dialéctica sem visão ecológica. E daí que os economistas sejam apenas um remanescente bastante podre de antigos tempos teológicos!
Quando o Ruído entra na rotina e se institucionaliza, o Sistema descansa. Já não perturba as consciências, já não incomoda os críticos.
Se, por exemplo, a cidade continua a ser sobrevoada, regularmente, a todas as horas do dia, e todos os dias da semana, e todas as semanas do mês, pelo ruído dos jactos, a Imprensa deixa de criticar o facto. É, com efeito, impraticável noticiar o que acontece todos os dias de maneira igual e não produz (imediatamente) mortos.
Mas se, por exemplo, experiências no próprio aeroporto produzem idêntica chinfrineira numa zona (até) mais restrita, o facto já é notícia e digno de a Imprensa lhe dedicar título a uma coluna.
Sobre cães e ruído produzido por cães, não existe na Câmara Municipal de Lisboa nenhuma postura. Quer dizer, é terreno sem lei e cada um pode atropelar o vizinho como quiser, produzindo o banzé que lhe apetecer.
Mas a postura municipal que existe, por exemplo, em Oeiras, não deixa de fazer a especiosa distinção entre ruído diurno e ruído nocturno. E as autoridades que garantem a segurança e a ordem, quando se apresenta uma queixa contra o cão do vizinho, pretendem saber se a situação do queixoso é normal ou anormal. Quer dizer, se tem alguém em casa à morte ou em coma, pois de contrário não considera o caso digno de ser observado.
Só se atende à excepção, ao folclore, ao que acontece uma vez. Se um munícipe é atentado pelo ruído do cão do vizinho todas as horas do dia, todos os dias da semana e, graças a Deus, todas as semanas do mês, que importância pode isso ter? O caso só passa a ser digno de alguma, pouca atenção, se o cão perturba o sono, ou se estiver alguém à morte em casa. Quem está de saúde (relativa) e quem apenas pretende estar, trabalhar, ouvir música ou repousar o espírito, não tem direito a nenhum silêncio.
Julgo explicar esta monomania pela excepção, da seguinte maneira: um morto é objecto de estatística. Dá para contar, para quantificar. Portanto, entra no capítulo do considerável. O resto, como respeita apenas à qualidade, não interessa. A existência e a qualidade da existência de cada um não interessam.
Se eu estiver meses a ser desgastado pelo ruído dos jactos da Portela ou pelo cão do vizinho, isso não interessa à Imprensa porque não é quantificável, nem estatístico, nem atinge expressão numérica.
Este princípio de ocultar a rotina com a excepção, o sistemático com o esporádico, constitui a espinha dorsal da estratégia demagógica.
É o truque: com os pequenos problemas encontrar maneira de escamotear os grandes.
A uma perspectiva inteligente (ecológica) é evidente que a regra interessa muito mais do que a excepção. Os mortos enterram-se. É com os vivos que os vivos devem ter cuidados de manutenção e ambiente. É a vida e não a morte que tem de se qualificar. Um morto não precisa de cuidados. Morreu. O que dura e perdura, o que existe, o que permanece não merece as atenções do Sistema e seus chamados órgãos de opinião, porque também só a excepção puxa ao sentimento e o melodrama é indesligável do Sistema. Da demagogia e doenças do Sistema.
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(*) Estes dois textos de Afonso Cautela foram publicados, com o mesmo título, no livro «A Indústria do Ruído», nº 3 da colecção Dossier Zero, por ele dirigida, na editora Arcádia (Lisboa), Março de 1974 , data da tipografia
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