ÁGUA 1974
1-4 - 74-05-15-ie> = ideia ecológica - sábado, 4 de Janeiro de 2003-scan
ÁGUA:UM PROBLEMA DE SEMPRE (*)
(*) Este texto de Afonso Cautela, pouco cuidadoso quanto a datas, deverá ter ficado inédito, apesar do muito que publiquei sobre o tema da água. Valha ao menos a data (precoce) em que foi escrito, um dia incerto do ano de 1974, já depois do 25 de Abril com certeza.
ANTOLOGIA DO SOFISMA
A SOFÍSTICA AMBIENTOCRATA
ESTRATÉGIA ECOLÓGICA E TÁCTICAS ANTIPOLUENTES
O ARGUMENTO DA ANTIGUIDADE TEM DOIS GUMES
[15-5-1974]
É costume esgrimir com o argumento histórico, quando se pretende diminuir a gravidade da crise ambiental. E afirma se então de que "poluição sempre houve".
Já tive ocasião de provar que este argumento tem dois gumes e corta para os dois lados.
Se se procura com esse argumento de antiguidade dizer que as aflições modernas sobre ambiente são apenas moda e que afinal se o homem sobreviveu sempre (apesar das poluições) aos seus próprios disparates, também agora sobreviverá, eis que o argumento pode virar-se contra os que assim palreiam: se a crise ambiental vem de longe e se o homem da caverna ao construir o buraco onde se alojar já tinha problemas de ambiente, já vivia em hostilidade dialéctica com o meio, tudo isso vem provar que a constante ecológica acompanha a história humana e que é dela indispensável complemento.
"A crise da água não é de hoje" - afirma-se, no propósito de tirar gravidade à falta de água hoje verificada em todo o Mundo e em Portugal também.
De facto, a crise da água foi, especialmente nos aglomerados urbanos, de sempre e, com ela, com a ausência de esgotos, com a promiscuidade da habitação, com a miséria e a ignorância e a exploração se devem relacionar as famosas epidemias da Idade Média - sempre invocadas no propósito vil de escamotear as epidemias modernas.
Se acrescentarmos, ainda como factor ambiental, o ódio ao corpo e consequentemente à higiene que a moral católica ensinava, se juntarmos, ainda como factores de ambiente, a superstição e o curandeirismo (mitologias que hoje apenas se substituíram por outras mitologias), se juntarmos factores de ordem económica, política, religiosa, haveremos de ver que os factos de ordem ecológica surgem, mais nítidos, na sua autonomia e especificidade...
Quando se aponta a gravidade da crise ambiental, aqui e agora, dá-se à palavra ambiente todo o seu vasto sentido de meio humano. E, neste interim, há quem prefira a palavra mesologia à de ecologia. Devo dizer porém que a extensão ganha pela palavra Ecologia, até ser sinónima de Mesologia, já nos ultrapassou a todos. É património de um Movimento mundial imparável. Estulto seria agora restringir de novo o sentido e conceito historicamente atribuídos à palavra “ecológico".
Quedo se aponta a gravidade da crise ambiental, aqui e agora, não se está a dizer que no passado tudo foram rosas: está-se a dizer, só, que chegámos hoje ao paroxismo e ao acumular de erros, carências, crimes, traumatismos que se foram estratificando através dos séculos e constituindo eles, precisamente, o que se designa por uma cultura, ordem cultural ou padrão.
Mas, São Tomaz de Aquino nos proteja, o que a consciência ecológica clama e põe em causa não é outra coisa, nem mais nem menos, é o caldo cultural que nos sustenta desde os afonsinos e a isso chama Ambiente.
Saber que o abastecimento de água à cidade de Lisboa já era problema no tempo do D. Afonso Henriques, não deve servir para aceitar sorridente o que em matéria de desabastecimento faz a Companhia das Águas.
Deve, outrossim, esse conspecto histórico em que alguns se açudam para mostrar e demonstrar à evidência que, embora em 1974, em matéria de Ambiente e de preocupações ecológicas, a Companhia das Águas e nós os seus utentos nos encontramos todos a nadar em plena Idade Média. Isto quando o senhor Philippon, do Ministério Francês do Ambiente, afirma que a humanidade está entrando na Era Ecológica...
SECURAS MEDIEVAIS
Pelo seu interesse não apenas arqueológico nem folclórico, transcrevo do jornal «A Capital» (16/Maio/1973), um quadro descritivo dessas securas medievais, que devidamente enquadrado na ideologia anterior me parece exemplar:
«Desde sempre Lisboa sofreu sede, em certas épocas. A falta do precioso líquido contribuiu em grande parte para a conquista da Ulis-Ubo aos mouros. Com tremendas sedes lutaram os exércitos castelhanos quando sitiaram a cidade. O abastecimento fazia-se por cisternas ou poços. Precariamente, claro. Depois, pouco a pouco, foram surgindo as bicas, aqui e ali, nos sítios mais populosos. Mas, assim mesmo, forçando os consumidores a andanças e a carregos custosos.
«Vieram mais tarde os aguadeiros, negros e negras forros, que agenciavam a vida transportando em cântaros a água ao domicílio dos que lhes podiam pagar o serviço. Os mais pobres tinham de a ir buscar pessoalmente. Nos meses ardentes, em muitas dessas bicas escasseava o líquido e junto delas havia constantes tez bulhas entre mouros, judeus e cristãos, cada qual querendo ter a primazia para o enchimento, quase gota a gota, das suas vasilhas.
«Não que as autoridades descurassem o grave problema. Simplesmente, por essas alturas as águas eram escassas, não chegando para dessedentar a população. Pelos tempos fora e à medida que o número de habitantes ia engrossando, novos chafarizes se foram cons-truindo, juntando-se aos de Andaluz e de Arroios, dos mais antigos, e a outros já existentes.
«Crises houve espantosas. Uma delas, no alvorecer do século XVI, foi calamitosa. Esta cidade que morre de sede - exclama Francisco de Holanda, exponde o seu imaginoso projecto para a fonte do Rossio onde se debuxavam quatro elefantes sustentando uma taça em que a água repuxava! Eram horríveis as secas e ordenavam-se procissões para implorar de Nossa Senhora «que acudisse ao povo». Chegavam a secar por completo os chafarizes. Assim aconteceu algumas vezes nos de El-Rei, da Rua Nova, da fonte de Santa Maria de Oliveira, do Frol. Levantavam-se demandas, que dificultavam a vida do senado.
«O desespero apoderava-se da população. Os aguadeiros especulavam com o preço do líquido.Havia sangrentas brigas junto das bicas. Quebravam-se cântaros e quebravam-se cabeças, e o senado viu-se obrigado a publicar a postura de 1551, metendo em ordem o encher das vasilhas, os preços e as precedências. Não se resolveu a questão! Os aguadeiros, mancomuna-dos com os oleiros, reduziram de tamanho os cântaros. De tal modo que as autoridades tiveram de reprimir os abusos, taxando o pote, de 6 a 15 réis, e a carga de 16 e 24 réis.
«Entretanto, pretendia-se solucionar a questão, projectando-se canalizar o líquido da ponte de Carenque para a capital. Para tanto, tributa-se a povo com um real na carne e dois reais no vinho, a fim de a trazer ao Rossio. Eram as primeiras tentativas de «Águas livres». Juntou-se importante soma para o efeito, mas Filipe I, reservou-a para outros fins.
«As crises, contudo, subsistiram ciclicamente. As lutas nos chafarizes continuavam, e os preços torna-vam-se exorbitantes. Beber água, nessas alturas, principiava a ser um luxo. Faziam-se prisões. Certos proprietários roubavam a água ao povo, desviando-a para as suas propriedades. O senado via-se a desejava-se, assoberbado com as questões que se levantavam. Até que D. João V meteu ombros à difícil e onerosa ta-refa, construindo essa maravilha da construção que é o Aqueduto das Águas livres, obra que causou o assombro dos estrangeiros pelo gigantismo e por ser ao tempo julgada de impossível edificação.
Em 3 de Outubro de 1744, corre a água livre nas Amoreiras. «Em galerias e reservatórios, fontes chafari-zes e neptunos, apolos e tritões, gastaram-se nada menos de seis mil contos da época.» A população da capital - 150 mil almas - respirou fundo. Era e fim do seu tormento. Novas fontes foram construídas. Só os aguadeiros - mais de dois mil galegos de barril -, não ficaram satisfeitos com o importante melhoramento que, pela abundância do líquido, lhes cerceava substancialmente os réditos.
«Na entanto, ainda após isso, várias estiagens alvo-roçaram os lisboetas. Esboçaram-se organizações empresariais para abastecimento de água ao domicílio, por meio de carros de bois e dos respectivos aguadeiros. Todavia só com a fundação da Companhia das Águas o assunto foi definitivamente concluído. Aproveitou-se o caudal do Alviela, foi-se aperfeiçoando o sistema, em todo o seu complexo estrutural, e Lisboa pôde, enfim, libertar-se da falta de água, que tão calamitosa se patenteou em determinadas datas.
«Muitos estudos posteriores, muito trabalho e muito dinheiro se tem gasto nesse indispensável serviço público, mas tudo é abençoado, dados os magníficos resultados que se atingiram nos nossos dias. O espectro da sede desapareceu e o abastecimento de água a Lisboa - pode afirmar-se sem receio de desmentido – é hoje modelar. Disso nos podemos orgulhar!»
«Pelo seu pendor humorístico, este final de crónica parece-me de sublinhar a escarlate. É do conhecimento público o belíssimo abastecimento de água que nesse mesmo ano de 1973, a Companhia realizou para as sedentas populações. »
CRESCENTE DEMANDA DOS CONSUMOS
Destes retrospectos históricos só uma conclusão não é contraditória nem sofistica: se a escassez de água se verifica através dos séculos, não prova tal que a situação hodierna seja brilhante ou, por contraste, preferível: se a escassez já era grande e a crise grave, quando as solicitações do consumo se diriam moderadas comparativamente às de hoje, o que dizer hoje face a essa escassez crónica, o que dizer das palavras de ordem desenvolvimentistas, gritadas a Norte e a Sul, a Este e a Oeste, reclamando mais, sempre mais água para ocorrer, como soe dizer-se, "à crescente demanda dos consumos".
É nestas fronteiras críticas que se definem, cara a cara, o reformismo da antipoluição e a estratégia ecológica, é aqui que se define o abismo que as separa e de que maneira se opõem: perante o absurdo desse "mais, mais, mais água" - quando os factos nos dizem haver cada vez menos, menos, menos água, - a estratégia ecológica pura e simplesmente preconiza o que a lógica aconselha: alto aos consumos desenfreados; enquanto isto, o reformismo antipoluição, sem pôr em causa os mesmos consumos desaustinados, vai arquitectar - dentro da pura paranóia - soluções ditas tecnológicas, industriais, que não só não atacam a crise na raiz como simplesmente a agravam,
O reformista afirma:
«Nos Estados Unidos, onde o consumo de água era já da ordem de 1200 metros cúbicos por habitante e por ano, há cerca de dez anos, calculando-se que venha a atingir o dobro antes do final deste século, preparam-se as providências requeridas pelas circunstâncias.
Em Portugal, por múltiplas razões, as médias de consumo têm sido bastante menores. Mas a procura está a dilatar-se rapidamente , nas cidades e nos campos, os problemas locais nesse capítulo multiplicam-se - e já se fazem ouvir as primeiras advertências sobre os riscos futuros que cumpre encarar no sector.» («Jornal do Comércio»)
É isto o discurso reformista e não se espere que cante de outra solfa. É ao discurso ecológico que compete cantar em outra clave, queiram ou não os paladinos da antipoluição.
Aqueles que não se coíbem, no entanto, de lançar o alarme e de conhecer, afinal, melhor do que nós a extensão da tragédia, como em 1973 um boletim da Direcção-Geral dos Serviços de Urbanização escrevia:
«Inconscientemente umas vezes, criminosamente noutras, está-se a destruir em ritmo acelerado a capacidade de armazenamento em muitas regiões e a conspurcar, envenenar até, quase toda a rede de distribuição, de tal forma que já se fala na necessidade de substituir aquele sistema natural por gigantescas destilarias e dispendiosíssimos sistemas artificiais de armazenamento e distribuição, como se isso fosse preferível a adoptar as medidas drásticas que se impõem para salvaguardar a eficiência do sistema natural.» («Jornal do Comércio»)
Assinalam-se no mesmo estudo as destruições que vão sendo praticadas por motivo de certas culturas agrícolas e silvícolas, pelos desperdícios em áreas urbanas e rurais, pela poluição dos rios, etc.
Sem que a Administração tenha manifestado ainda a intenção de intervir, diz-se no estudo referido, assiste-se a uma sangria esgotadora e até destruidora de reservas naturais constituídas ao longo de milhares de anos.
É mais uma advertência fundamentada que se deixa em suspenso. Merece, sem dúvida, todas as atenções, a justificar uma política nacional da água em tempo e em escala apropriados.»
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(*) Este texto de Afonso Cautela, pouco cuidadoso quanto a datas, deverá ter ficado inédito, apesar do muito que publiquei sobre o tema da água. Valha ao menos a data (precoce) em que foi escrito, um dia incerto do ano de 1974, já depois do 25 de Abril com certeza.
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ÁGUA:UM PROBLEMA DE SEMPRE (*)
(*) Este texto de Afonso Cautela, pouco cuidadoso quanto a datas, deverá ter ficado inédito, apesar do muito que publiquei sobre o tema da água. Valha ao menos a data (precoce) em que foi escrito, um dia incerto do ano de 1974, já depois do 25 de Abril com certeza.
ANTOLOGIA DO SOFISMA
A SOFÍSTICA AMBIENTOCRATA
ESTRATÉGIA ECOLÓGICA E TÁCTICAS ANTIPOLUENTES
O ARGUMENTO DA ANTIGUIDADE TEM DOIS GUMES
[15-5-1974]
É costume esgrimir com o argumento histórico, quando se pretende diminuir a gravidade da crise ambiental. E afirma se então de que "poluição sempre houve".
Já tive ocasião de provar que este argumento tem dois gumes e corta para os dois lados.
Se se procura com esse argumento de antiguidade dizer que as aflições modernas sobre ambiente são apenas moda e que afinal se o homem sobreviveu sempre (apesar das poluições) aos seus próprios disparates, também agora sobreviverá, eis que o argumento pode virar-se contra os que assim palreiam: se a crise ambiental vem de longe e se o homem da caverna ao construir o buraco onde se alojar já tinha problemas de ambiente, já vivia em hostilidade dialéctica com o meio, tudo isso vem provar que a constante ecológica acompanha a história humana e que é dela indispensável complemento.
"A crise da água não é de hoje" - afirma-se, no propósito de tirar gravidade à falta de água hoje verificada em todo o Mundo e em Portugal também.
De facto, a crise da água foi, especialmente nos aglomerados urbanos, de sempre e, com ela, com a ausência de esgotos, com a promiscuidade da habitação, com a miséria e a ignorância e a exploração se devem relacionar as famosas epidemias da Idade Média - sempre invocadas no propósito vil de escamotear as epidemias modernas.
Se acrescentarmos, ainda como factor ambiental, o ódio ao corpo e consequentemente à higiene que a moral católica ensinava, se juntarmos, ainda como factores de ambiente, a superstição e o curandeirismo (mitologias que hoje apenas se substituíram por outras mitologias), se juntarmos factores de ordem económica, política, religiosa, haveremos de ver que os factos de ordem ecológica surgem, mais nítidos, na sua autonomia e especificidade...
Quando se aponta a gravidade da crise ambiental, aqui e agora, dá-se à palavra ambiente todo o seu vasto sentido de meio humano. E, neste interim, há quem prefira a palavra mesologia à de ecologia. Devo dizer porém que a extensão ganha pela palavra Ecologia, até ser sinónima de Mesologia, já nos ultrapassou a todos. É património de um Movimento mundial imparável. Estulto seria agora restringir de novo o sentido e conceito historicamente atribuídos à palavra “ecológico".
Quedo se aponta a gravidade da crise ambiental, aqui e agora, não se está a dizer que no passado tudo foram rosas: está-se a dizer, só, que chegámos hoje ao paroxismo e ao acumular de erros, carências, crimes, traumatismos que se foram estratificando através dos séculos e constituindo eles, precisamente, o que se designa por uma cultura, ordem cultural ou padrão.
Mas, São Tomaz de Aquino nos proteja, o que a consciência ecológica clama e põe em causa não é outra coisa, nem mais nem menos, é o caldo cultural que nos sustenta desde os afonsinos e a isso chama Ambiente.
Saber que o abastecimento de água à cidade de Lisboa já era problema no tempo do D. Afonso Henriques, não deve servir para aceitar sorridente o que em matéria de desabastecimento faz a Companhia das Águas.
Deve, outrossim, esse conspecto histórico em que alguns se açudam para mostrar e demonstrar à evidência que, embora em 1974, em matéria de Ambiente e de preocupações ecológicas, a Companhia das Águas e nós os seus utentos nos encontramos todos a nadar em plena Idade Média. Isto quando o senhor Philippon, do Ministério Francês do Ambiente, afirma que a humanidade está entrando na Era Ecológica...
SECURAS MEDIEVAIS
Pelo seu interesse não apenas arqueológico nem folclórico, transcrevo do jornal «A Capital» (16/Maio/1973), um quadro descritivo dessas securas medievais, que devidamente enquadrado na ideologia anterior me parece exemplar:
«Desde sempre Lisboa sofreu sede, em certas épocas. A falta do precioso líquido contribuiu em grande parte para a conquista da Ulis-Ubo aos mouros. Com tremendas sedes lutaram os exércitos castelhanos quando sitiaram a cidade. O abastecimento fazia-se por cisternas ou poços. Precariamente, claro. Depois, pouco a pouco, foram surgindo as bicas, aqui e ali, nos sítios mais populosos. Mas, assim mesmo, forçando os consumidores a andanças e a carregos custosos.
«Vieram mais tarde os aguadeiros, negros e negras forros, que agenciavam a vida transportando em cântaros a água ao domicílio dos que lhes podiam pagar o serviço. Os mais pobres tinham de a ir buscar pessoalmente. Nos meses ardentes, em muitas dessas bicas escasseava o líquido e junto delas havia constantes tez bulhas entre mouros, judeus e cristãos, cada qual querendo ter a primazia para o enchimento, quase gota a gota, das suas vasilhas.
«Não que as autoridades descurassem o grave problema. Simplesmente, por essas alturas as águas eram escassas, não chegando para dessedentar a população. Pelos tempos fora e à medida que o número de habitantes ia engrossando, novos chafarizes se foram cons-truindo, juntando-se aos de Andaluz e de Arroios, dos mais antigos, e a outros já existentes.
«Crises houve espantosas. Uma delas, no alvorecer do século XVI, foi calamitosa. Esta cidade que morre de sede - exclama Francisco de Holanda, exponde o seu imaginoso projecto para a fonte do Rossio onde se debuxavam quatro elefantes sustentando uma taça em que a água repuxava! Eram horríveis as secas e ordenavam-se procissões para implorar de Nossa Senhora «que acudisse ao povo». Chegavam a secar por completo os chafarizes. Assim aconteceu algumas vezes nos de El-Rei, da Rua Nova, da fonte de Santa Maria de Oliveira, do Frol. Levantavam-se demandas, que dificultavam a vida do senado.
«O desespero apoderava-se da população. Os aguadeiros especulavam com o preço do líquido.Havia sangrentas brigas junto das bicas. Quebravam-se cântaros e quebravam-se cabeças, e o senado viu-se obrigado a publicar a postura de 1551, metendo em ordem o encher das vasilhas, os preços e as precedências. Não se resolveu a questão! Os aguadeiros, mancomuna-dos com os oleiros, reduziram de tamanho os cântaros. De tal modo que as autoridades tiveram de reprimir os abusos, taxando o pote, de 6 a 15 réis, e a carga de 16 e 24 réis.
«Entretanto, pretendia-se solucionar a questão, projectando-se canalizar o líquido da ponte de Carenque para a capital. Para tanto, tributa-se a povo com um real na carne e dois reais no vinho, a fim de a trazer ao Rossio. Eram as primeiras tentativas de «Águas livres». Juntou-se importante soma para o efeito, mas Filipe I, reservou-a para outros fins.
«As crises, contudo, subsistiram ciclicamente. As lutas nos chafarizes continuavam, e os preços torna-vam-se exorbitantes. Beber água, nessas alturas, principiava a ser um luxo. Faziam-se prisões. Certos proprietários roubavam a água ao povo, desviando-a para as suas propriedades. O senado via-se a desejava-se, assoberbado com as questões que se levantavam. Até que D. João V meteu ombros à difícil e onerosa ta-refa, construindo essa maravilha da construção que é o Aqueduto das Águas livres, obra que causou o assombro dos estrangeiros pelo gigantismo e por ser ao tempo julgada de impossível edificação.
Em 3 de Outubro de 1744, corre a água livre nas Amoreiras. «Em galerias e reservatórios, fontes chafari-zes e neptunos, apolos e tritões, gastaram-se nada menos de seis mil contos da época.» A população da capital - 150 mil almas - respirou fundo. Era e fim do seu tormento. Novas fontes foram construídas. Só os aguadeiros - mais de dois mil galegos de barril -, não ficaram satisfeitos com o importante melhoramento que, pela abundância do líquido, lhes cerceava substancialmente os réditos.
«Na entanto, ainda após isso, várias estiagens alvo-roçaram os lisboetas. Esboçaram-se organizações empresariais para abastecimento de água ao domicílio, por meio de carros de bois e dos respectivos aguadeiros. Todavia só com a fundação da Companhia das Águas o assunto foi definitivamente concluído. Aproveitou-se o caudal do Alviela, foi-se aperfeiçoando o sistema, em todo o seu complexo estrutural, e Lisboa pôde, enfim, libertar-se da falta de água, que tão calamitosa se patenteou em determinadas datas.
«Muitos estudos posteriores, muito trabalho e muito dinheiro se tem gasto nesse indispensável serviço público, mas tudo é abençoado, dados os magníficos resultados que se atingiram nos nossos dias. O espectro da sede desapareceu e o abastecimento de água a Lisboa - pode afirmar-se sem receio de desmentido – é hoje modelar. Disso nos podemos orgulhar!»
«Pelo seu pendor humorístico, este final de crónica parece-me de sublinhar a escarlate. É do conhecimento público o belíssimo abastecimento de água que nesse mesmo ano de 1973, a Companhia realizou para as sedentas populações. »
CRESCENTE DEMANDA DOS CONSUMOS
Destes retrospectos históricos só uma conclusão não é contraditória nem sofistica: se a escassez de água se verifica através dos séculos, não prova tal que a situação hodierna seja brilhante ou, por contraste, preferível: se a escassez já era grande e a crise grave, quando as solicitações do consumo se diriam moderadas comparativamente às de hoje, o que dizer hoje face a essa escassez crónica, o que dizer das palavras de ordem desenvolvimentistas, gritadas a Norte e a Sul, a Este e a Oeste, reclamando mais, sempre mais água para ocorrer, como soe dizer-se, "à crescente demanda dos consumos".
É nestas fronteiras críticas que se definem, cara a cara, o reformismo da antipoluição e a estratégia ecológica, é aqui que se define o abismo que as separa e de que maneira se opõem: perante o absurdo desse "mais, mais, mais água" - quando os factos nos dizem haver cada vez menos, menos, menos água, - a estratégia ecológica pura e simplesmente preconiza o que a lógica aconselha: alto aos consumos desenfreados; enquanto isto, o reformismo antipoluição, sem pôr em causa os mesmos consumos desaustinados, vai arquitectar - dentro da pura paranóia - soluções ditas tecnológicas, industriais, que não só não atacam a crise na raiz como simplesmente a agravam,
O reformista afirma:
«Nos Estados Unidos, onde o consumo de água era já da ordem de 1200 metros cúbicos por habitante e por ano, há cerca de dez anos, calculando-se que venha a atingir o dobro antes do final deste século, preparam-se as providências requeridas pelas circunstâncias.
Em Portugal, por múltiplas razões, as médias de consumo têm sido bastante menores. Mas a procura está a dilatar-se rapidamente , nas cidades e nos campos, os problemas locais nesse capítulo multiplicam-se - e já se fazem ouvir as primeiras advertências sobre os riscos futuros que cumpre encarar no sector.» («Jornal do Comércio»)
É isto o discurso reformista e não se espere que cante de outra solfa. É ao discurso ecológico que compete cantar em outra clave, queiram ou não os paladinos da antipoluição.
Aqueles que não se coíbem, no entanto, de lançar o alarme e de conhecer, afinal, melhor do que nós a extensão da tragédia, como em 1973 um boletim da Direcção-Geral dos Serviços de Urbanização escrevia:
«Inconscientemente umas vezes, criminosamente noutras, está-se a destruir em ritmo acelerado a capacidade de armazenamento em muitas regiões e a conspurcar, envenenar até, quase toda a rede de distribuição, de tal forma que já se fala na necessidade de substituir aquele sistema natural por gigantescas destilarias e dispendiosíssimos sistemas artificiais de armazenamento e distribuição, como se isso fosse preferível a adoptar as medidas drásticas que se impõem para salvaguardar a eficiência do sistema natural.» («Jornal do Comércio»)
Assinalam-se no mesmo estudo as destruições que vão sendo praticadas por motivo de certas culturas agrícolas e silvícolas, pelos desperdícios em áreas urbanas e rurais, pela poluição dos rios, etc.
Sem que a Administração tenha manifestado ainda a intenção de intervir, diz-se no estudo referido, assiste-se a uma sangria esgotadora e até destruidora de reservas naturais constituídas ao longo de milhares de anos.
É mais uma advertência fundamentada que se deixa em suspenso. Merece, sem dúvida, todas as atenções, a justificar uma política nacional da água em tempo e em escala apropriados.»
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(*) Este texto de Afonso Cautela, pouco cuidadoso quanto a datas, deverá ter ficado inédito, apesar do muito que publiquei sobre o tema da água. Valha ao menos a data (precoce) em que foi escrito, um dia incerto do ano de 1974, já depois do 25 de Abril com certeza.
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