LIBERDADE 1983
1-5 - manifesto-2> os dossiês do silêncio – ecorealismo – temas recorrentes
MANIFESTO ALTERNATIVO - O DESENVOLVIMENTO DA LIBERDADE(*)
(*) Publicado no jornal «A Capital» (Crónica do Planeta Terra), 30/7/1983
30/7/1983 - «Desenvolvimento» e «liberdade» são duas palavras que, em abstracto e de tão repetidas, já pouco ou nada significam. Queimadas pelo uso e abuso, esvaziaram-se como balões nem sequer coloridos.
Ao ligá-las, porém, ambas remoçam e ganham súbita consistência. Se desenvolvimento for o «desenvolvimento da liberdade», têm outra vez conteúdo, sentido claro e concreto.
Se desenvolvimento for o «desenvolvimento das tecnologias que fomentam a liberdade» de indivíduos e grupos, mais força ainda ganham aqueles até agora descoloridos conceitos.
É todo um programa político, ao mesmo tempo simples e revolucionário, de propostas alternativas ao sistema, à engrenagem, à crise, aos becos, impasses e buracos actuais.
T. A.' S: TECNOLOGIAS APROPRIADAS = TECNOLOGIAS ALTERNATIVAS
Acupunctura é alternativa, não só porque cura pelas causas em vez de abafar a doença pelo sintoma, mas também porque liberta o doente e lhe faculta uma margem de independência relativamente ao monopólio médico em vigor.
Biogás é alternativa, não só porque é uma forma de energia barata, reaproveita desperdícios, porque produz riqueza e energia a partir de resíduos - matéria-prima nacional, não importada - mas também porque contribui para a autosuficiência e autonomia energética das explorações do sector agro-pecuário.
Yoga é alternativa, não só porque reequilibra e melhora, age simultaneamente no psíquico e no somático sem dividir a indivisível realidade do ser humano, mas também porque dá ao seu praticante o autodomínio sobre si próprio e por isso reforça a sua independência, a sua liberdade.
Karate é alternativa, porque põe nas mãos de quem o pratica uma forma própria de autodefesa, que dispensa arma, faca ou canivete.
Bicicleta é alternativa, não só porque é um meio de transporte limpo, leve, ágil, um bom exercício de ginástica, oxigena os pulmões sem poluir o ar, arruma-se com facilidade em pouco espaço, mas também porque reforça a auto-suficiência e o auto-controlo do seu utilizador.
Cooperativismo é alternativa, não só porque defende os interesses económicos do cooperante - produtor ou consumidor - vincula o trabalhador ao que produz, mas também porque liberta (contribui para libertar) o cooperativista de um sistema de mercado e de economia que o escraviza e porque, nesse aspecto, contribui para a auto-suficiência, a autonomia e a independência.
Casa ecológica (solar) é alternativa, não só porque utiliza energia limpa, recicla materiais em circuito fechado, integra formas diversas e complementares de energia localmente produzida, é económica, útil e bela, mas também porque reforça a liberdade, a independência, a autarcia da vida doméstica, contribuindo para a libertar das servidões e escravidões que o sistema energético ou o mercado de habitação impõe.
Colector solar é alternativa, não só porque aquece a água doméstica do banho com energia não poluente, significa um investimento amortizado pelo uso e acabando este por ficar pago, descentraliza e personaliza o consumo, aproveita uma fonte nacional e gratuita, mas também porque emancipa o consumidor do sistema energético central, garantindo-lhe uma margem de independência e autarcia quando o sistema central falha ou aumenta preços.
Enfim, o colector solar é tecnologia alternativa para o desenvolvimento, porque desenvolve liberdade.
Mas o que se diz para a energia solar aplica-se com igual propriedade às outras energias limpas, gratuitas e infinitas, além de nacionais: vento, ondas, biomassa, resíduos/desperdícios, etc.
Métodos biológicos em agricultura são alternativa, não só porque respeitam a natureza e não poluem o ambiente, defendem, conservando, a saúde do consumidor, garantem a qualidade e riqueza nutritiva dos alimentos, mas também porque dispensando a dependência do sistema agro-químico - adubos químicos e pesticidas - reforçam a autonomia do agricultor.
Enfim, porque desenvolvem liberdade.
A pequena horta familiar é alternativa, porque, com os alimentos que produz, ajuda a dispensar o intermediário, dando ao consumidor alimentos de auto-subsistência mais baratos e mais frescos. Neste último caso, ajuda-o a dispensar os sistemas de conservação e refrigeração prolongada. Enfim, a pequena horta familiar ajuda ao desenvolvimento porque desenvolve liberdade.
Artesanato do linho é alternativa, não só porque aproveita um recurso natural nacional, produz tecidos saudáveis e de valor estético, mas também porque ajuda o produtor-trabalhador e o consumidor a resistir ao monopólio dos têxteis artificiais e plásticos.
Enfim, na perspectiva do produtor-trabalhador e do consumidor, o artesanato em geral é alternativa porque desenvolve liberdade.
Reciclagem de resíduos em geral, ou o biogás em particular, é alternativa, não só porque reaproveita o desperdício, limpa o ambiente, imita a natureza e garante os equilíbrios naturais, mas também porque significa auto-abastecimento, incentivo das micro-economias locais e regionais.
Enfim, a reciclagem em geral e o biogás em particular é alternativa porque desenvolve liberdade.
Regionalização é alternativa, não só porque respeita a identidade humana e geográfica das regiões, protagoniza o papel das populações, mas também porque, tendendo ao autocontrolo e à autogestão, quebra o monopólio dos serviços centrais e de Estado, desenvolvendo o desenvolvimento, desenvolvendo liberdade.
Alguns exemplos mais se podiam dar de Tecnologias Apropriadas que são, por isso mesmo, alternativas ecológicas e, por isso mesmo também, tecnologias libertadoras, criadoras de auto-suficiência e de maior independência para pessoas e grupos.
Para que tenha algum sentido, desenvolver só poderá significar desenvolver as tecnologias apropriadas, alternativas ou libertadoras, e por isso desenvolver a autonomia, a independência, a liberdade.
António Sérgio dizia o mesmo da Educação: educar, para ele, era educar para a liberdade. Quem sabe se não estará neste seu conceito-chave, um dos motivos que explicam a actualidade, o sortilégio e a premência do seu pensamento?
Com ele continuaremos a dizer que desenvolvimento é o desenvolvimento do «self-government», das iniciativas de base, do sector cooperativo, dos movimentos sociais independentes, da ética e da responsabilidade, da imaginação criadora e do espírito crítico.
O DESENVOLVIMENTO DO SUBDESENVOLVIMENTO
Os indefectíveis defensores do «desenvolvimento como religião» de ateus, à esquerda, à direita e ao centro, discursando em função de mitos e não de ideias, de fantasmas e não de factos, mostram-se de facto pouco rigorosos e nada científicos.
Não se esquecendo de vituperar os que, em nome da Ecologia, desejam as cavernas e querem deixar intocáveis os recursos naturais, forjando dos ecologistas uma caricatura que só afinal os caricatura a eles, pretendem afirmar-se, perante as «massas», defensores do desenvolvimento que as «massas» querem.
É que o desenvolvimento, tal como todos eles, à esquerda e à direita o advogam e praticam, é apenas o desenvolvimento da destruição, da poluição, do cancro, da doença, da morte, do biocídio, enfim, é antes um contradesenvolvimento como a prática comprova, as estatísticas confirmam e uma simples análise energética demonstra.
Que faltará ainda para pôr à mostra a irracionalidade do sistema?
Não há um só caso em que o famigerado desenvolvimento não criasse, logo ao lado, ou não aumentasse, a destruição, o desemprego, a desabitação, o caos urbanístico, a poluição, a carência de água potável, o bairro da lata, a incomodidade, a desqualidade de vida.
Desenvolvimento tem sido sinónimo de antiqualidade de vida.
Por ter sido de inspiração capitalista – dirá o convicto marxista. Mas quando as nacionalizações socializaram as principais indústrias poluidoras do «desenvolvimento» português - quem engoliu os fumos das fábricas e bebeu os esgotos?
Ou desapareceram por milagre da Nossa Senhora?
O que os adeptos dos famosos «indicadores» económicos até hoje nunca explicaram é porque o chamado «desenvolvimento», injectado em tão grandes doses em áreas extensas do nosso território, em nada contribuiu para melhorar a nossa vida, o nosso nível de vida, a nossa qualidade de vida.
Porque raio os 40 mil hectares da área de Sines, por exemplo, não se traduziram, «ipsis verbis», em progresso, bem-estar, alegria, prosperidade, poder de compra, etc para o povo português?
Porque é que apesar de tantas cimenteiras, celuloses, petroquímicas, siderurgias, planos de desenvolvimento, apesar de tanta poluição (sinal de «prosperidade»), de tanta destruição dos ecossistemas, de tanto biocídio e ecocídio, estamos em 1983, à beira da catástrofe, segundo dizem os adeptos dos famosos indicadores que servem para classificar os povos em desenvolvidos, subdesenvolvidos, meio desenvolvidos e etc
Desde os exemplos locais de economia regional até aos chamados grandes empreendimentos, é interminável a lista de casos comprovativos desta lei que até agora tem regulado o sistema: desenvolvimento tem significado empobrecimento, progresso tem significado retrocesso.
Espantoso, portanto, é que o tecnocrata, ajudado pelos ambientocratas da nova classe empresarial, finja não ver ou suponha que somos todos cegos.
A região de Setúbal, normalmente apontada como o pólo de desenvolvimento industrial mais importante depois de Lisboa, deu em resultado final e como qualidade de vida uma serra da Arrábida roída pela exploração de cimentos, o estuário sem peixe nem ostras, as praias contaminadas, o ar pestífero, o caos urbano, a construção clandestina e selvagem, a falta de água. As ostras que desapareceram das praias do Sado, onde havia outrora prósperos viveiros, acentuam a decadência da prosperidade, o empobrecimento do desenvolvimento.
SEGREDOS DE POLICHINELO – A DIFICULDADE DE FAZER SIMPLES
Enquanto os governos não puserem em prática certas acções que são verdadeiros segredos de Polichinelo, tanto mais eficazes quanto mais simples, e tanto mais óbvias quanto mais revolucionárias, é caso para desconfiar: no fundo, até parece que eles querem a crise, que a crise dá dividendos, que sem a crise ficariam sem assunto e sem pretexto para nos continuar governando.
Entre essas soluções ou segredos de Polichinelo, a redução geral do horário de trabalho é apontada, há muito, em toda a Europa, por sindicatos e ecologistas numa frente reivindicativa comum.
Se a não puserem em prática e enquanto a não puserem em prática, urbi et orbi, é pura e simples demagogia, balofa retórica, toda a choradeira que a nível do poder ou mesmo das bases manipuladas, se disser do desemprego, esse flagelo, etc., etc.
Se a não puserem em prática, dão razão aos que consideram o «desemprego» uma arma nas mãos dos governos, inerente ao sistema totalitário da macroeconomia, arma política que impede as pessoas de se libertar, ganhar tempo e disponibilidade, fugir ao stress e pensar dois minutos sobre o que as escraviza.
É com o desemprego, com o espantalho do desemprego sempre agitado no horizonte que, dentro das empresas, se pode institucionalizar a violência quotidiana até extremos tão semelhantes à negregada escravatura de outrora. Quem trabalha, temerá o desemprego como uma lepra, ou uma nova s. i. d. a.
Diminuir as horas de trabalho mantendo os salários era a «revolução» mais profunda e sem sangue que se podia fazer na sociedade industrial. E o melhor argumento contra as tentações estatais, colectivistas, que resolveram o problema do desemprego fazendo do trabalhador um funcionário do Estado as 24 horas do dia.
É inegável um certo odor a utopia que estas propostas alternativas podem ter, ainda que inspiradas pelo mais rigoroso realismo. Mas não será que elas soam a «utópicas» exactamente porque se quer dar como realista e sensata a utopia tecnocrática que nos autodevora?
Mas a «redução dos horários de trabalho mantendo o salário» é apenas uma reivindicação entre outras que sindicatos e ecologistas fazem.
Com tais consequências e repercussões, porém, de tal modo alterando de «fond en comble» esquemas e mentiras em vigor, que cinco só dessas reivindicações de fundo mudariam o mundo no próprio momento em que fossem tomadas.
É isso: libertem-se da engrenagem os cidadãos para que se auto-organizem e autogovernem, e todos os problemas do macrosistema (podre) desaparecem com ele.
Solucionar a famigerada crise é libertar - um milímetro que seja - dessa crise o cidadão. O que esquerda e direita, sindicatos e patrões, continuam fazendo, no entanto, é remeter e devolver de novo os cidadãos pare a violência, o redemoinho, a voragem e a podridão da engrenagem.
É que todos eles vivem de nos irem matando, chamando a isso crise. Mas outros preferem a designação mais correcta de canibalismo, a que se entregam estes antropófagos do século XX.
ENREDADOS NA ENGRENAGEM
A falência das soluções económicas postas hoje em prática, só virá a comprovar-se quando todo o edifício tiver ruído e nos tiver soterrado a todos. Enfim, quando as alternativas se tornarem de todo impossíveis e, então, sim, utópicas, pela razão simples de que estaremos a fazer tijolo debaixo dos escombros de uma guerra nuclear ou equivalente.
Este o drama e o verdadeiro alcance de uma «insensibilidade» ecológica nas medidas de ordem económica que os governos entendem continuar tomando para «combater a crise».
É que não há terapêuticas (políticas) certas com base em diagnósticos errados ou, pelo menos, insuficientes. E o diagnóstico da crise, feita por economistas «ortodoxos», é no mínimo insuficiente, erra por defeito: não foi tão longe quanto deveria ter ido. A análise económica sem análise energética limita-se a parâmetros tradicionais e ultrapassados, ainda que se jacte de grande progressismo.
Só a análise energética (a que outros preferem o sinónimo de análise ecológica) pode completar a análise económica e, portanto, um diagnóstico minimamente correcto.
De contrário, continuam os governos a marrar no vazio, a prometer a solução da crise que apenas se agrava cada vez mais e sem retorno.
O projecto ecológico preconiza uma solução simples, mas, ao mesmo tempo, difícil. (E daí que se fale, a propósito, de utopia).
Ele não impede que a macroeconomia proceda, maciçamente, à autoliquidação das sociedades, dos ecossistemas e do planeta.
Mas, enquanto isso - o holocausto - decorre, preconiza está coisa difícil, embora simples que, ao lado, à margem, talvez paralelamente ao macrossistema da economia vigente, se alargue - com a velocidade que a sobrevivência impõe - o sector alternativo da economia (ex: o cooperativismo) e a margem de segurança dos cidadãos.
Quer dizer: tudo o que restrinja a capacidade de autonomia e auto-organização dos cidadãos é não só antidemocrático, por definição, mas anti-económico e acelera a catástrofe.
Tudo o que provoca o desenvolvimento da autonomia, adia a catástrofe, possibilita o milagre, a utopia de uma saída para o beco actual.
Enleados na luta salarial, como fazem os sindicatos, é cada vez mais óbvio que os cinco tostões do aumento de ordenado conseguido hoje são comidos amanhã pelos dez tostões de aumento dos tomates.
Enredados neste ciclo infernal, com os sindicatos a dizerem que lutam pelos direitos dos trabalhadores, iremos tão longe – quer dizer, até ao fundo do abismo – quanto os patrões querem.
Com imediatismos dizem salvar-nos, com imediatismos nos matam.
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(*) Publicado no jornal «A Capital» (Crónica do Planeta Terra), 30/7/1983
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MANIFESTO ALTERNATIVO - O DESENVOLVIMENTO DA LIBERDADE(*)
(*) Publicado no jornal «A Capital» (Crónica do Planeta Terra), 30/7/1983
30/7/1983 - «Desenvolvimento» e «liberdade» são duas palavras que, em abstracto e de tão repetidas, já pouco ou nada significam. Queimadas pelo uso e abuso, esvaziaram-se como balões nem sequer coloridos.
Ao ligá-las, porém, ambas remoçam e ganham súbita consistência. Se desenvolvimento for o «desenvolvimento da liberdade», têm outra vez conteúdo, sentido claro e concreto.
Se desenvolvimento for o «desenvolvimento das tecnologias que fomentam a liberdade» de indivíduos e grupos, mais força ainda ganham aqueles até agora descoloridos conceitos.
É todo um programa político, ao mesmo tempo simples e revolucionário, de propostas alternativas ao sistema, à engrenagem, à crise, aos becos, impasses e buracos actuais.
T. A.' S: TECNOLOGIAS APROPRIADAS = TECNOLOGIAS ALTERNATIVAS
Acupunctura é alternativa, não só porque cura pelas causas em vez de abafar a doença pelo sintoma, mas também porque liberta o doente e lhe faculta uma margem de independência relativamente ao monopólio médico em vigor.
Biogás é alternativa, não só porque é uma forma de energia barata, reaproveita desperdícios, porque produz riqueza e energia a partir de resíduos - matéria-prima nacional, não importada - mas também porque contribui para a autosuficiência e autonomia energética das explorações do sector agro-pecuário.
Yoga é alternativa, não só porque reequilibra e melhora, age simultaneamente no psíquico e no somático sem dividir a indivisível realidade do ser humano, mas também porque dá ao seu praticante o autodomínio sobre si próprio e por isso reforça a sua independência, a sua liberdade.
Karate é alternativa, porque põe nas mãos de quem o pratica uma forma própria de autodefesa, que dispensa arma, faca ou canivete.
Bicicleta é alternativa, não só porque é um meio de transporte limpo, leve, ágil, um bom exercício de ginástica, oxigena os pulmões sem poluir o ar, arruma-se com facilidade em pouco espaço, mas também porque reforça a auto-suficiência e o auto-controlo do seu utilizador.
Cooperativismo é alternativa, não só porque defende os interesses económicos do cooperante - produtor ou consumidor - vincula o trabalhador ao que produz, mas também porque liberta (contribui para libertar) o cooperativista de um sistema de mercado e de economia que o escraviza e porque, nesse aspecto, contribui para a auto-suficiência, a autonomia e a independência.
Casa ecológica (solar) é alternativa, não só porque utiliza energia limpa, recicla materiais em circuito fechado, integra formas diversas e complementares de energia localmente produzida, é económica, útil e bela, mas também porque reforça a liberdade, a independência, a autarcia da vida doméstica, contribuindo para a libertar das servidões e escravidões que o sistema energético ou o mercado de habitação impõe.
Colector solar é alternativa, não só porque aquece a água doméstica do banho com energia não poluente, significa um investimento amortizado pelo uso e acabando este por ficar pago, descentraliza e personaliza o consumo, aproveita uma fonte nacional e gratuita, mas também porque emancipa o consumidor do sistema energético central, garantindo-lhe uma margem de independência e autarcia quando o sistema central falha ou aumenta preços.
Enfim, o colector solar é tecnologia alternativa para o desenvolvimento, porque desenvolve liberdade.
Mas o que se diz para a energia solar aplica-se com igual propriedade às outras energias limpas, gratuitas e infinitas, além de nacionais: vento, ondas, biomassa, resíduos/desperdícios, etc.
Métodos biológicos em agricultura são alternativa, não só porque respeitam a natureza e não poluem o ambiente, defendem, conservando, a saúde do consumidor, garantem a qualidade e riqueza nutritiva dos alimentos, mas também porque dispensando a dependência do sistema agro-químico - adubos químicos e pesticidas - reforçam a autonomia do agricultor.
Enfim, porque desenvolvem liberdade.
A pequena horta familiar é alternativa, porque, com os alimentos que produz, ajuda a dispensar o intermediário, dando ao consumidor alimentos de auto-subsistência mais baratos e mais frescos. Neste último caso, ajuda-o a dispensar os sistemas de conservação e refrigeração prolongada. Enfim, a pequena horta familiar ajuda ao desenvolvimento porque desenvolve liberdade.
Artesanato do linho é alternativa, não só porque aproveita um recurso natural nacional, produz tecidos saudáveis e de valor estético, mas também porque ajuda o produtor-trabalhador e o consumidor a resistir ao monopólio dos têxteis artificiais e plásticos.
Enfim, na perspectiva do produtor-trabalhador e do consumidor, o artesanato em geral é alternativa porque desenvolve liberdade.
Reciclagem de resíduos em geral, ou o biogás em particular, é alternativa, não só porque reaproveita o desperdício, limpa o ambiente, imita a natureza e garante os equilíbrios naturais, mas também porque significa auto-abastecimento, incentivo das micro-economias locais e regionais.
Enfim, a reciclagem em geral e o biogás em particular é alternativa porque desenvolve liberdade.
Regionalização é alternativa, não só porque respeita a identidade humana e geográfica das regiões, protagoniza o papel das populações, mas também porque, tendendo ao autocontrolo e à autogestão, quebra o monopólio dos serviços centrais e de Estado, desenvolvendo o desenvolvimento, desenvolvendo liberdade.
Alguns exemplos mais se podiam dar de Tecnologias Apropriadas que são, por isso mesmo, alternativas ecológicas e, por isso mesmo também, tecnologias libertadoras, criadoras de auto-suficiência e de maior independência para pessoas e grupos.
Para que tenha algum sentido, desenvolver só poderá significar desenvolver as tecnologias apropriadas, alternativas ou libertadoras, e por isso desenvolver a autonomia, a independência, a liberdade.
António Sérgio dizia o mesmo da Educação: educar, para ele, era educar para a liberdade. Quem sabe se não estará neste seu conceito-chave, um dos motivos que explicam a actualidade, o sortilégio e a premência do seu pensamento?
Com ele continuaremos a dizer que desenvolvimento é o desenvolvimento do «self-government», das iniciativas de base, do sector cooperativo, dos movimentos sociais independentes, da ética e da responsabilidade, da imaginação criadora e do espírito crítico.
O DESENVOLVIMENTO DO SUBDESENVOLVIMENTO
Os indefectíveis defensores do «desenvolvimento como religião» de ateus, à esquerda, à direita e ao centro, discursando em função de mitos e não de ideias, de fantasmas e não de factos, mostram-se de facto pouco rigorosos e nada científicos.
Não se esquecendo de vituperar os que, em nome da Ecologia, desejam as cavernas e querem deixar intocáveis os recursos naturais, forjando dos ecologistas uma caricatura que só afinal os caricatura a eles, pretendem afirmar-se, perante as «massas», defensores do desenvolvimento que as «massas» querem.
É que o desenvolvimento, tal como todos eles, à esquerda e à direita o advogam e praticam, é apenas o desenvolvimento da destruição, da poluição, do cancro, da doença, da morte, do biocídio, enfim, é antes um contradesenvolvimento como a prática comprova, as estatísticas confirmam e uma simples análise energética demonstra.
Que faltará ainda para pôr à mostra a irracionalidade do sistema?
Não há um só caso em que o famigerado desenvolvimento não criasse, logo ao lado, ou não aumentasse, a destruição, o desemprego, a desabitação, o caos urbanístico, a poluição, a carência de água potável, o bairro da lata, a incomodidade, a desqualidade de vida.
Desenvolvimento tem sido sinónimo de antiqualidade de vida.
Por ter sido de inspiração capitalista – dirá o convicto marxista. Mas quando as nacionalizações socializaram as principais indústrias poluidoras do «desenvolvimento» português - quem engoliu os fumos das fábricas e bebeu os esgotos?
Ou desapareceram por milagre da Nossa Senhora?
O que os adeptos dos famosos «indicadores» económicos até hoje nunca explicaram é porque o chamado «desenvolvimento», injectado em tão grandes doses em áreas extensas do nosso território, em nada contribuiu para melhorar a nossa vida, o nosso nível de vida, a nossa qualidade de vida.
Porque raio os 40 mil hectares da área de Sines, por exemplo, não se traduziram, «ipsis verbis», em progresso, bem-estar, alegria, prosperidade, poder de compra, etc para o povo português?
Porque é que apesar de tantas cimenteiras, celuloses, petroquímicas, siderurgias, planos de desenvolvimento, apesar de tanta poluição (sinal de «prosperidade»), de tanta destruição dos ecossistemas, de tanto biocídio e ecocídio, estamos em 1983, à beira da catástrofe, segundo dizem os adeptos dos famosos indicadores que servem para classificar os povos em desenvolvidos, subdesenvolvidos, meio desenvolvidos e etc
Desde os exemplos locais de economia regional até aos chamados grandes empreendimentos, é interminável a lista de casos comprovativos desta lei que até agora tem regulado o sistema: desenvolvimento tem significado empobrecimento, progresso tem significado retrocesso.
Espantoso, portanto, é que o tecnocrata, ajudado pelos ambientocratas da nova classe empresarial, finja não ver ou suponha que somos todos cegos.
A região de Setúbal, normalmente apontada como o pólo de desenvolvimento industrial mais importante depois de Lisboa, deu em resultado final e como qualidade de vida uma serra da Arrábida roída pela exploração de cimentos, o estuário sem peixe nem ostras, as praias contaminadas, o ar pestífero, o caos urbano, a construção clandestina e selvagem, a falta de água. As ostras que desapareceram das praias do Sado, onde havia outrora prósperos viveiros, acentuam a decadência da prosperidade, o empobrecimento do desenvolvimento.
SEGREDOS DE POLICHINELO – A DIFICULDADE DE FAZER SIMPLES
Enquanto os governos não puserem em prática certas acções que são verdadeiros segredos de Polichinelo, tanto mais eficazes quanto mais simples, e tanto mais óbvias quanto mais revolucionárias, é caso para desconfiar: no fundo, até parece que eles querem a crise, que a crise dá dividendos, que sem a crise ficariam sem assunto e sem pretexto para nos continuar governando.
Entre essas soluções ou segredos de Polichinelo, a redução geral do horário de trabalho é apontada, há muito, em toda a Europa, por sindicatos e ecologistas numa frente reivindicativa comum.
Se a não puserem em prática e enquanto a não puserem em prática, urbi et orbi, é pura e simples demagogia, balofa retórica, toda a choradeira que a nível do poder ou mesmo das bases manipuladas, se disser do desemprego, esse flagelo, etc., etc.
Se a não puserem em prática, dão razão aos que consideram o «desemprego» uma arma nas mãos dos governos, inerente ao sistema totalitário da macroeconomia, arma política que impede as pessoas de se libertar, ganhar tempo e disponibilidade, fugir ao stress e pensar dois minutos sobre o que as escraviza.
É com o desemprego, com o espantalho do desemprego sempre agitado no horizonte que, dentro das empresas, se pode institucionalizar a violência quotidiana até extremos tão semelhantes à negregada escravatura de outrora. Quem trabalha, temerá o desemprego como uma lepra, ou uma nova s. i. d. a.
Diminuir as horas de trabalho mantendo os salários era a «revolução» mais profunda e sem sangue que se podia fazer na sociedade industrial. E o melhor argumento contra as tentações estatais, colectivistas, que resolveram o problema do desemprego fazendo do trabalhador um funcionário do Estado as 24 horas do dia.
É inegável um certo odor a utopia que estas propostas alternativas podem ter, ainda que inspiradas pelo mais rigoroso realismo. Mas não será que elas soam a «utópicas» exactamente porque se quer dar como realista e sensata a utopia tecnocrática que nos autodevora?
Mas a «redução dos horários de trabalho mantendo o salário» é apenas uma reivindicação entre outras que sindicatos e ecologistas fazem.
Com tais consequências e repercussões, porém, de tal modo alterando de «fond en comble» esquemas e mentiras em vigor, que cinco só dessas reivindicações de fundo mudariam o mundo no próprio momento em que fossem tomadas.
É isso: libertem-se da engrenagem os cidadãos para que se auto-organizem e autogovernem, e todos os problemas do macrosistema (podre) desaparecem com ele.
Solucionar a famigerada crise é libertar - um milímetro que seja - dessa crise o cidadão. O que esquerda e direita, sindicatos e patrões, continuam fazendo, no entanto, é remeter e devolver de novo os cidadãos pare a violência, o redemoinho, a voragem e a podridão da engrenagem.
É que todos eles vivem de nos irem matando, chamando a isso crise. Mas outros preferem a designação mais correcta de canibalismo, a que se entregam estes antropófagos do século XX.
ENREDADOS NA ENGRENAGEM
A falência das soluções económicas postas hoje em prática, só virá a comprovar-se quando todo o edifício tiver ruído e nos tiver soterrado a todos. Enfim, quando as alternativas se tornarem de todo impossíveis e, então, sim, utópicas, pela razão simples de que estaremos a fazer tijolo debaixo dos escombros de uma guerra nuclear ou equivalente.
Este o drama e o verdadeiro alcance de uma «insensibilidade» ecológica nas medidas de ordem económica que os governos entendem continuar tomando para «combater a crise».
É que não há terapêuticas (políticas) certas com base em diagnósticos errados ou, pelo menos, insuficientes. E o diagnóstico da crise, feita por economistas «ortodoxos», é no mínimo insuficiente, erra por defeito: não foi tão longe quanto deveria ter ido. A análise económica sem análise energética limita-se a parâmetros tradicionais e ultrapassados, ainda que se jacte de grande progressismo.
Só a análise energética (a que outros preferem o sinónimo de análise ecológica) pode completar a análise económica e, portanto, um diagnóstico minimamente correcto.
De contrário, continuam os governos a marrar no vazio, a prometer a solução da crise que apenas se agrava cada vez mais e sem retorno.
O projecto ecológico preconiza uma solução simples, mas, ao mesmo tempo, difícil. (E daí que se fale, a propósito, de utopia).
Ele não impede que a macroeconomia proceda, maciçamente, à autoliquidação das sociedades, dos ecossistemas e do planeta.
Mas, enquanto isso - o holocausto - decorre, preconiza está coisa difícil, embora simples que, ao lado, à margem, talvez paralelamente ao macrossistema da economia vigente, se alargue - com a velocidade que a sobrevivência impõe - o sector alternativo da economia (ex: o cooperativismo) e a margem de segurança dos cidadãos.
Quer dizer: tudo o que restrinja a capacidade de autonomia e auto-organização dos cidadãos é não só antidemocrático, por definição, mas anti-económico e acelera a catástrofe.
Tudo o que provoca o desenvolvimento da autonomia, adia a catástrofe, possibilita o milagre, a utopia de uma saída para o beco actual.
Enleados na luta salarial, como fazem os sindicatos, é cada vez mais óbvio que os cinco tostões do aumento de ordenado conseguido hoje são comidos amanhã pelos dez tostões de aumento dos tomates.
Enredados neste ciclo infernal, com os sindicatos a dizerem que lutam pelos direitos dos trabalhadores, iremos tão longe – quer dizer, até ao fundo do abismo – quanto os patrões querem.
Com imediatismos dizem salvar-nos, com imediatismos nos matam.
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(*) Publicado no jornal «A Capital» (Crónica do Planeta Terra), 30/7/1983
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