UNDERGROUND 1971
1-2 terça-feira, 10 de Dezembro de 2002 - 71-07-28-ie-ls> 6500 bytes -antes-3>
IMPRENSA UNDERGROUND:LEIT-MOTIV DOS ECOLOGISTAS
28-7-1971 - 1 - A Imprensa «underground» foi um dos fenómenos que marcaram o advento, pós 25 de Abril, do movimento ecologista.
Pelos temas e pela forma «artesanal» de fazer jornalismo, a imprensa «underground» marcava posição contra o Establishment, pelo próprio «media» utilizado, assinalando a diferença que interessava aos pioneiros do ecologismo.
Em artigo sobre a revista francesa «Actuel», então modelo de imprensa «underground», escrevia-se no semanário «Notícias da Amadora» (28/7/1971) palavras que seriam um leit motiv do ecologismo depois do 25 de Abril:
«Particularmente sensíveis aos danos e malefícios de um sistema que não podem comparar com outro pior e anterior (pois só conheceram este) as novas gerações manifestam-se contra as aberrações de uma cultura tecnológica sem alma que, na febre de conquistar e dominar o mundo material, depreciou completamente o biológico e o afectivo. »
E mais adiante:
«Particularmente sensível à Ecologia e à Moral, a novíssima geração inicia a sua vida por uma atitude inevitavelmente crítica e revela a sua insatisfação, a sua revolta, a sua angústia a respeito de certos factos que já não escandalizam nem assustam os mais velhos.»
Isto escrito e publicado em 28/7/1971 era, no mínimo, prematuro, pois dava as premissas do ainda embrionário movimento ecológico.
2 - Se a conservação do ambiente estava na 1ª fila das preocupações, a verdade é que soavam ecos de preocupações mais vastas e mais profundas sobre o destino do ser humano, o significado da sua aventura cósmica, a sua dimensão metafísica ou religiosa, a sua ligação a uma transcendência. O Cosmos continuava a ser, para a ciência ocidental, apenas matéria de uma coisa chamada ...Astronomia e não propriamente como a nossa fonte, a nossa origem e as nossas raízes.
Um filósofo vindo do marxismo, André Malraux, dera o mote que encorajava os potenciais ecologistas quando afirmava: «O século XXI será religioso ou não será.»
Disfarçada por motivos óbvios, a vertente metafísica, cósmica ou religiosa do movimento ecologista, ela só viria a revelar-se, com mais à vontade, quando chegou, já na década de 80, o contributo de Etienne Guillé e sua ecologia, sua ciência alargada.
3 - O atrevimento de marchar para uma luta desigual e, à partida, para uma guerra perdida, explica-se pelo estímulo que um ou outro franco atirador teve, vindo de correntes e autores que, sendo malditos para o Establishment, estavam a fazer alguma fúria (nem que fosse por motivos comerciais ) na Europa.
O surrealismo primeiro e o realismo fantástico de Louis Pauwels e Jacquer Bergier, depois, foram duas dessas correntes de fundo que precederam o melhor das ideias ecológicas.
4 - Entre as palavras proibidas que os textos da «Frente Ecológica» colocariam entre as mais usadas, aparece a palavra «Tecnocracia».
Numa sociedade dominada por tecnocratas, esta atrevimento deve ser considerado uma atitude de coragem. Quem contestasse a Tecnocracia , era imediatamente insultado e humilhado.
Theodore Roszack, com o seu livro «Para uma Contra Cultura» foi um dos que encorajaram o jornal e as edições «Frente Ecológica» a manter essa hostilidade radical contra a Tecnocracia.
Tal como aconteceu com o movimento estudantil de Maio 1968, a dominante destes autores e correntes era não só, e pela 1ª vez, ecológica em sentido estrito (o ambiente físico) mas apontava também no sentido do ambiente cultural. Apontava portanto para um salto na vertical, para uma «espiritualização», palavra que era obviamente interdita nessa altura.
A luta contra o materialismo da época foi assumida, com mais à vontade do que na Europa, pelos grupos e movimentos que na Califórnia levaram a ecologia para o espiritualismo: Allen Ginsberg, Allan Watts, Timothy Leary e Theodore Roszack são nomes destacados dessa corrente «contra-cultura», expressão esta que escandalizou todos os bem-pensantes da época.
5 - Outra expressão que escandalizou todos os quadrantes políticos e economistas de várias formações, foi a de «crescimento zero», baseada no relatório sobre os limites do crescimento, mandado elaborar pelo Clube de Roma ao MIT (Massachusets).
O movimento ecológico iria, posteriormente, adoptar estas premissas que os próprios desenvolvimentistas tinham estabelecido, mas de nada lhe valeu: o assunto, como tantos outros que iam à raiz da questão ambiental, viria a cair no esquecimento.
Se não fosse Ribeiro Teles, nunca mais ninguém teria falado em discutir «modelos de desenvolvimento» e em assumir posição por um modelo que viabilize economica e ecologicamente o País.
Mas mesmo Ribeiro Teles também se cansou e o crescimento selvagem continua como dantes ou, se possível, ainda mais frenético.
É caso para perguntar o que andaram os ecologistas cá a fazer.
6 - O pacifismo, muito ligado às correntes anarco-libertárias, foi uma ideia que também pesou no nascente movimento ecológico.
O que se escrevia e publicava, em 1970, sobre o livro de Danilo Dolci, traduzido em português, indica como as preocupações pacifistas acompanharam as ideias e actividades dos activistas ecológicos.
Mais tarde, viria a ter certa relevância o pensamento e exemplo de Lanza del Vasto.
Podemos interrogar-nos como foi possível desaparecerem, sem deixar rastro, autores e empreendimentos dessa natureza e dessa envergadura.
Não há dúvida de que o movimento ecológico, naquilo que era fundamental e de relevância para o destino humano, foi um total e irreversível fracasso.
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1-3 - roszak-3-ls> quinta-feira, 26 de Dezembro de 2002-scan
UTOPIA OU MORTE (*)
[«Notícias do Futuro», jornal «Notícias da Beira», Moçambique, 28-Julho-1971 ] - Particularmente sensíveis aos danos e malefícios de um sistema que não podem comparar com outro pior e anterior (pois só conheceram este), as novas gerações manifestam-se contra as aberrações de uma cultura tecnológica que, na febre de conquistar o mundo material, depreciou completamente o biológico e o afectivo.
Particularmente sensível à Ecologia e à Moral, a novíssima geração, que difere da imediatamente anterior (mais preocupada com a Economia e a Política), inicia a sua vida por uma atitude inevitavelmente crítica e revela a sua insatisfação, a sua revolta, a sua angústia a respeito de certos factos que já não escandalizam nem assustam os mais velhos.
A revista Actuel, que se publica mensalmente em França, que é um dos órgãos mundiais mais importantes da imprensa «underground» (ou «free press» conforme é conhecida nos Estados Unidos), que não se ocupa só de “free jazz” e de música pop, de fitas desenhadas e alucinógenos, de emancipação feminista e de revolução existencial, de «hippies» e de comunas, publica no seu último número (Julho/Agosto de 1971) (1) este «poema» que é uma quase anedota, sobre a composição do «pão» americano ( e o leitor já vai compreender porque metemos o pão entre aspas), progresso que os outros países, fatalmente, em vias de desenvolvimento têm tendência para imitar e já começaram mesmo a imitar.
A revista Actuel, num artigo intitulado Utopia ou Morte, enuncia assim a dezena de agentes químicos que entram na fabricação do «pão nosso de cada dia»: «propianato de cálcio para conservar a farinha; diacetato de sódio para retardar a maturação; sulfato duplo de alumínio e de potássio para facilitar a acção da levedura artificial; butol-hidroxi-anisol para evitar a oxidação; citrato de mono-isopropilo para assegurar a conservação uma dezena de dias».
Isto é apenas um caso, um exemplo, um facto. Há centenas de outros. Quando uma certa demagogia insiste em acusar o cigarro como o único responsável do cancro, as novíssimas gerações resolvem, através de uma imprensa «underground» e sem demagogia, denunciar a manobra e afirmam que não é só o cigarro mas tudo ou quase tudo o que a indústria descarrega sobre o indefeso animal que é o homem, tudo o que lhe injectam pela boca, que era por onde antigamente morria o peixe más é por onde morre hoje o animal que se julga mais espertinho e o mais dotado da Natureza: o animal racional de “homo sapiens” auto-cognominado. Sapiens? Não muito, convenhamos.
Resultado: perante esta e outras que tais, os jovens da nova utopia decidem a tempo e enquanto não imolaram o seu capital de saúde às benesses da civilização, decidem não entrar no jogo, não se servir do banquete, não ingressar na lógica e na engrenagem infernais do sistema estabelecido.
Como vivem e querem viver, decidem ficar à porta da abundância e preferem o que os senhores sisudos talvez venham a classificar de vagabundagem. Mas tentemos nós (menos sisudos e mais insensatos) compreender que espécie de vagabundagem é essa. No fundo os errantes peregrinos da nova utopia foram, são e serão expelidos
O que hoje fazem algumas minorias, terão amanhã de fazer as próprias maiorias, assoladas pela super-poluição, asfixiadas de congestionamento urbano, traumatizadas por uma engrenagem infernal, expulsas, também, por um habitat perfeitamente inabitável, por uma alimentação suicida, por toda uma indústria de agressão quotidiana que, de manhã à noite, nos injecta de cancros, de vasculares, de morticínio nas estradas e de outras alegres endemias para as quais depois nos virão dizer que há «remédio» em novas doses «industriais» de venenos químicos chamados drogo-fármacos, ou de uma moral tão venenosa como eles.
Se os «hippies» e outros grupos de jovens escolheram a marginalidade, não é tanto por preguiça e horror ao trabalho (acusação que essa tal venenosa moral lhes atira): foi a brilhante civilização do lixo e do luxo que os expulsou, como nesse livro-manifesto de Theodore Roszack (2) de leitura fascinante e de imprescindível consulta, se demonstra.
Se os novos jovens preferem as comunidades rurais, é porque só aí é ainda possível que os seus filhos e os filhos dos seus filhos não comecem a comer cancro logo de pequeninos. Só aí, em comunidade independente, fora dos grandes circuitos da produtividade à tout prix -- onde a química é sempre usada para acelerar o crescimento, para conservar, para alindar, para embelezar e, claro, em última instância para cancerigenizar - a vida pode recomeçar. Trata-se de começar a viver em «new style» que é a única forma de não viver para a morte. Ou a escalada da tecnologia estaca na sua voracidade homicida (e não há sinais de que isso possa acontecer, pois todo o sistema estanque se caracteriza exactamente pela sua inércia) ou as novas gerações decidem mesmo ir fazer «ingrícola» para bem longe.
Se este aspecto da nova agricultura para os novos tempos não veio a talhe da foice durante a recente Agro 71 - que nos dizem um notável acontecimento ao nível nacional - é caso para considerar que as novas gerações não foram, mais uma vez, suficientemente informadas sobre o mais importante, e iludidas na sua boa fé.
No fundo e para o futuro próximo, o problema de uma agricultura biológica é tão importante como o do subdesenvolvimento e desenvolvimento respectivos. E não digo mais importante, porque sobrepor a vida à matéria, a Ecologia à Economia, a moral à política, pode ainda escandalizar os que têm dos problemas a visão mecanicista herdada de um positivismo ainda vigente. De facto, abundância para a morte, para quê? Que o mesmo é dizer, parafraeando o célebre slogan renascentista - «ciência sem consciência é ruína da alma» - quantidade sem qualidade é ruína do corpo. Logo, ruína total do homem.
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(1) - Actuel, nova press, n.°1 10/11, Julho/Agosto de 1971, dirigida por Francois Bizot, Rue de Richelieu 60, Paris 2
(2) - Para uma Contra Cultura, de Theodore Roszack, Colecção Vector, n.° 9, Publicações Dom Quixote, Trad. de Jorge Rosa, Lisboa, 1971
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(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado em «Notícias do Futuro», jornal «Notícias da Beira», Moçambique, 28-Julho-1971 e em «Futuro», »O Século Ilustrado», Lisboa, em 10-7-1971
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IMPRENSA UNDERGROUND:LEIT-MOTIV DOS ECOLOGISTAS
28-7-1971 - 1 - A Imprensa «underground» foi um dos fenómenos que marcaram o advento, pós 25 de Abril, do movimento ecologista.
Pelos temas e pela forma «artesanal» de fazer jornalismo, a imprensa «underground» marcava posição contra o Establishment, pelo próprio «media» utilizado, assinalando a diferença que interessava aos pioneiros do ecologismo.
Em artigo sobre a revista francesa «Actuel», então modelo de imprensa «underground», escrevia-se no semanário «Notícias da Amadora» (28/7/1971) palavras que seriam um leit motiv do ecologismo depois do 25 de Abril:
«Particularmente sensíveis aos danos e malefícios de um sistema que não podem comparar com outro pior e anterior (pois só conheceram este) as novas gerações manifestam-se contra as aberrações de uma cultura tecnológica sem alma que, na febre de conquistar e dominar o mundo material, depreciou completamente o biológico e o afectivo. »
E mais adiante:
«Particularmente sensível à Ecologia e à Moral, a novíssima geração inicia a sua vida por uma atitude inevitavelmente crítica e revela a sua insatisfação, a sua revolta, a sua angústia a respeito de certos factos que já não escandalizam nem assustam os mais velhos.»
Isto escrito e publicado em 28/7/1971 era, no mínimo, prematuro, pois dava as premissas do ainda embrionário movimento ecológico.
2 - Se a conservação do ambiente estava na 1ª fila das preocupações, a verdade é que soavam ecos de preocupações mais vastas e mais profundas sobre o destino do ser humano, o significado da sua aventura cósmica, a sua dimensão metafísica ou religiosa, a sua ligação a uma transcendência. O Cosmos continuava a ser, para a ciência ocidental, apenas matéria de uma coisa chamada ...Astronomia e não propriamente como a nossa fonte, a nossa origem e as nossas raízes.
Um filósofo vindo do marxismo, André Malraux, dera o mote que encorajava os potenciais ecologistas quando afirmava: «O século XXI será religioso ou não será.»
Disfarçada por motivos óbvios, a vertente metafísica, cósmica ou religiosa do movimento ecologista, ela só viria a revelar-se, com mais à vontade, quando chegou, já na década de 80, o contributo de Etienne Guillé e sua ecologia, sua ciência alargada.
3 - O atrevimento de marchar para uma luta desigual e, à partida, para uma guerra perdida, explica-se pelo estímulo que um ou outro franco atirador teve, vindo de correntes e autores que, sendo malditos para o Establishment, estavam a fazer alguma fúria (nem que fosse por motivos comerciais ) na Europa.
O surrealismo primeiro e o realismo fantástico de Louis Pauwels e Jacquer Bergier, depois, foram duas dessas correntes de fundo que precederam o melhor das ideias ecológicas.
4 - Entre as palavras proibidas que os textos da «Frente Ecológica» colocariam entre as mais usadas, aparece a palavra «Tecnocracia».
Numa sociedade dominada por tecnocratas, esta atrevimento deve ser considerado uma atitude de coragem. Quem contestasse a Tecnocracia , era imediatamente insultado e humilhado.
Theodore Roszack, com o seu livro «Para uma Contra Cultura» foi um dos que encorajaram o jornal e as edições «Frente Ecológica» a manter essa hostilidade radical contra a Tecnocracia.
Tal como aconteceu com o movimento estudantil de Maio 1968, a dominante destes autores e correntes era não só, e pela 1ª vez, ecológica em sentido estrito (o ambiente físico) mas apontava também no sentido do ambiente cultural. Apontava portanto para um salto na vertical, para uma «espiritualização», palavra que era obviamente interdita nessa altura.
A luta contra o materialismo da época foi assumida, com mais à vontade do que na Europa, pelos grupos e movimentos que na Califórnia levaram a ecologia para o espiritualismo: Allen Ginsberg, Allan Watts, Timothy Leary e Theodore Roszack são nomes destacados dessa corrente «contra-cultura», expressão esta que escandalizou todos os bem-pensantes da época.
5 - Outra expressão que escandalizou todos os quadrantes políticos e economistas de várias formações, foi a de «crescimento zero», baseada no relatório sobre os limites do crescimento, mandado elaborar pelo Clube de Roma ao MIT (Massachusets).
O movimento ecológico iria, posteriormente, adoptar estas premissas que os próprios desenvolvimentistas tinham estabelecido, mas de nada lhe valeu: o assunto, como tantos outros que iam à raiz da questão ambiental, viria a cair no esquecimento.
Se não fosse Ribeiro Teles, nunca mais ninguém teria falado em discutir «modelos de desenvolvimento» e em assumir posição por um modelo que viabilize economica e ecologicamente o País.
Mas mesmo Ribeiro Teles também se cansou e o crescimento selvagem continua como dantes ou, se possível, ainda mais frenético.
É caso para perguntar o que andaram os ecologistas cá a fazer.
6 - O pacifismo, muito ligado às correntes anarco-libertárias, foi uma ideia que também pesou no nascente movimento ecológico.
O que se escrevia e publicava, em 1970, sobre o livro de Danilo Dolci, traduzido em português, indica como as preocupações pacifistas acompanharam as ideias e actividades dos activistas ecológicos.
Mais tarde, viria a ter certa relevância o pensamento e exemplo de Lanza del Vasto.
Podemos interrogar-nos como foi possível desaparecerem, sem deixar rastro, autores e empreendimentos dessa natureza e dessa envergadura.
Não há dúvida de que o movimento ecológico, naquilo que era fundamental e de relevância para o destino humano, foi um total e irreversível fracasso.
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1-3 - roszak-3-ls> quinta-feira, 26 de Dezembro de 2002-scan
UTOPIA OU MORTE (*)
[«Notícias do Futuro», jornal «Notícias da Beira», Moçambique, 28-Julho-1971 ] - Particularmente sensíveis aos danos e malefícios de um sistema que não podem comparar com outro pior e anterior (pois só conheceram este), as novas gerações manifestam-se contra as aberrações de uma cultura tecnológica que, na febre de conquistar o mundo material, depreciou completamente o biológico e o afectivo.
Particularmente sensível à Ecologia e à Moral, a novíssima geração, que difere da imediatamente anterior (mais preocupada com a Economia e a Política), inicia a sua vida por uma atitude inevitavelmente crítica e revela a sua insatisfação, a sua revolta, a sua angústia a respeito de certos factos que já não escandalizam nem assustam os mais velhos.
A revista Actuel, que se publica mensalmente em França, que é um dos órgãos mundiais mais importantes da imprensa «underground» (ou «free press» conforme é conhecida nos Estados Unidos), que não se ocupa só de “free jazz” e de música pop, de fitas desenhadas e alucinógenos, de emancipação feminista e de revolução existencial, de «hippies» e de comunas, publica no seu último número (Julho/Agosto de 1971) (1) este «poema» que é uma quase anedota, sobre a composição do «pão» americano ( e o leitor já vai compreender porque metemos o pão entre aspas), progresso que os outros países, fatalmente, em vias de desenvolvimento têm tendência para imitar e já começaram mesmo a imitar.
A revista Actuel, num artigo intitulado Utopia ou Morte, enuncia assim a dezena de agentes químicos que entram na fabricação do «pão nosso de cada dia»: «propianato de cálcio para conservar a farinha; diacetato de sódio para retardar a maturação; sulfato duplo de alumínio e de potássio para facilitar a acção da levedura artificial; butol-hidroxi-anisol para evitar a oxidação; citrato de mono-isopropilo para assegurar a conservação uma dezena de dias».
Isto é apenas um caso, um exemplo, um facto. Há centenas de outros. Quando uma certa demagogia insiste em acusar o cigarro como o único responsável do cancro, as novíssimas gerações resolvem, através de uma imprensa «underground» e sem demagogia, denunciar a manobra e afirmam que não é só o cigarro mas tudo ou quase tudo o que a indústria descarrega sobre o indefeso animal que é o homem, tudo o que lhe injectam pela boca, que era por onde antigamente morria o peixe más é por onde morre hoje o animal que se julga mais espertinho e o mais dotado da Natureza: o animal racional de “homo sapiens” auto-cognominado. Sapiens? Não muito, convenhamos.
Resultado: perante esta e outras que tais, os jovens da nova utopia decidem a tempo e enquanto não imolaram o seu capital de saúde às benesses da civilização, decidem não entrar no jogo, não se servir do banquete, não ingressar na lógica e na engrenagem infernais do sistema estabelecido.
Como vivem e querem viver, decidem ficar à porta da abundância e preferem o que os senhores sisudos talvez venham a classificar de vagabundagem. Mas tentemos nós (menos sisudos e mais insensatos) compreender que espécie de vagabundagem é essa. No fundo os errantes peregrinos da nova utopia foram, são e serão expelidos
O que hoje fazem algumas minorias, terão amanhã de fazer as próprias maiorias, assoladas pela super-poluição, asfixiadas de congestionamento urbano, traumatizadas por uma engrenagem infernal, expulsas, também, por um habitat perfeitamente inabitável, por uma alimentação suicida, por toda uma indústria de agressão quotidiana que, de manhã à noite, nos injecta de cancros, de vasculares, de morticínio nas estradas e de outras alegres endemias para as quais depois nos virão dizer que há «remédio» em novas doses «industriais» de venenos químicos chamados drogo-fármacos, ou de uma moral tão venenosa como eles.
Se os «hippies» e outros grupos de jovens escolheram a marginalidade, não é tanto por preguiça e horror ao trabalho (acusação que essa tal venenosa moral lhes atira): foi a brilhante civilização do lixo e do luxo que os expulsou, como nesse livro-manifesto de Theodore Roszack (2) de leitura fascinante e de imprescindível consulta, se demonstra.
Se os novos jovens preferem as comunidades rurais, é porque só aí é ainda possível que os seus filhos e os filhos dos seus filhos não comecem a comer cancro logo de pequeninos. Só aí, em comunidade independente, fora dos grandes circuitos da produtividade à tout prix -- onde a química é sempre usada para acelerar o crescimento, para conservar, para alindar, para embelezar e, claro, em última instância para cancerigenizar - a vida pode recomeçar. Trata-se de começar a viver em «new style» que é a única forma de não viver para a morte. Ou a escalada da tecnologia estaca na sua voracidade homicida (e não há sinais de que isso possa acontecer, pois todo o sistema estanque se caracteriza exactamente pela sua inércia) ou as novas gerações decidem mesmo ir fazer «ingrícola» para bem longe.
Se este aspecto da nova agricultura para os novos tempos não veio a talhe da foice durante a recente Agro 71 - que nos dizem um notável acontecimento ao nível nacional - é caso para considerar que as novas gerações não foram, mais uma vez, suficientemente informadas sobre o mais importante, e iludidas na sua boa fé.
No fundo e para o futuro próximo, o problema de uma agricultura biológica é tão importante como o do subdesenvolvimento e desenvolvimento respectivos. E não digo mais importante, porque sobrepor a vida à matéria, a Ecologia à Economia, a moral à política, pode ainda escandalizar os que têm dos problemas a visão mecanicista herdada de um positivismo ainda vigente. De facto, abundância para a morte, para quê? Que o mesmo é dizer, parafraeando o célebre slogan renascentista - «ciência sem consciência é ruína da alma» - quantidade sem qualidade é ruína do corpo. Logo, ruína total do homem.
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(1) - Actuel, nova press, n.°1 10/11, Julho/Agosto de 1971, dirigida por Francois Bizot, Rue de Richelieu 60, Paris 2
(2) - Para uma Contra Cultura, de Theodore Roszack, Colecção Vector, n.° 9, Publicações Dom Quixote, Trad. de Jorge Rosa, Lisboa, 1971
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(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado em «Notícias do Futuro», jornal «Notícias da Beira», Moçambique, 28-Julho-1971 e em «Futuro», »O Século Ilustrado», Lisboa, em 10-7-1971
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