MUROROA 1973
1-3 - 73-09-14-ie> ideia ecológica - le-point-1-ie >
[(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no «Diário do Alentejo», 14-9-1973 ]
Entre os semanários-miscelânea que, em França se publicam, sempre atentos aos eventos e procurando dar deles o que se pode chamar uma posição neutral (ou maternal?), «Le Point» revelou-se, nos últimos meses, sensível aos terrenos da ecologia, não vá dizer-se que está fora do tempo, como alguns semanários portugueses à venda no mercado, que devem considerar o tema repugnante comparado, por exemplo, ao desporto, à bolsa, à decoração doméstica e à política internacional.
Mas cada País tem a boa consciência que merece e os órgãos ditos de opinião que a servem.
A TÁCTICA CONCILIATÓRIA
Vencendo a repugnância e adoptando a táctica conciliatória, «Le Point» descobriu, em Novembro de 1972, que a esquerda francesa estava monopolizando a Ecologia como forma directa de radicalizar as situações, e agora, no número de 23 de Abril de 1973, dedica capa policromática ao tema «O Regresso à Natureza», quatro páginas ilustradas com um desenho de Gourmelin e 5 fotografias com aspectos da vida rural.
Poético, romântico, quiçá reaccionário como chega a insinuar-se, " o regresso à natureza" , dito e encarado dessa maneira, serve os objectivos do semanário, obediente aos ditames do marketing que acusa um leitorado cada vez mais extenso sobre temas afins.
Não há que temer, porém, nada de pior, se a expressão escolhida para designar a Ecologia for essa de “regresso à Natureza" ou a outra não menos interessante de "protecção à Natureza" , ambas ao nível de uma terceira que se lhes equipara : "combate à poluição.»
Nos termos, pois, da melhor linha que serve o sistema sem desgostar os consumidores, não há perigo nenhum em abordar dessa maneira o que de outra maneira seriam as posições de radical e frontal oposição ao sistema.
MAIS UMA BOMBA FRANCESA NA MUROROA
Isto comprova-se logo a seguir e sem mais trabalho, quando assunto bem mais sério (esse sim!) se aborda no mesmo número de Abril da dita revista: mais uma bomba francesa na Muroroa dá azo a que «Le Point» pontifique:
«A França ficará de mármore perante os protestos. O seu dossiê «experiências nucleares» é bom e os queixosos têm apenas preocupações ecológicas».
Sublinho o «apenas»: eis que a Ecologia serve assim dois fins opostos conforme a conveniência e a boa consciência do órgão em questão: quando vista do lado folclórico e, obediente aos ditames do marketing, adorna a tricromia da capa com algumas piadas ao Rousseau (glória nacional francesa) e aos contestatários da alimentação química, está bem, não oferece perigos de maior, vai de acordo com os propósitos de coexistência em que o sistema se esmera, quando pretende absorver e recuperar aquilo que ainda não liquidou a tiro ou à matraca.
Reprocurar a Natureza e o ar puro é a moda, e isto compreende-se. Mas a fuga para a «utopia natureza» salda-se por vezes com o fracasso.
Comovente: «Le Point», com toda a clemência, compreende. «Le Point» é maternal, solícita, terna. Mas claro: sem deixar de assinalar o fracasso de algumas comunas rurais, sem deixar de acentuar que a Ecologia é uma moda e um neo-romantismo que há-de passar com a moda dos tacões e outras modas impostas pela sociedade de consumo, sem evitar o remoque ao Rousseau e a velha história de que sempre houve pacifistas e «amantes da Natureza» e que já Tomás Morus, chanceler de Inglaterra, conceberia uma forma antiurbana de habitar, eis que a boa consciência da boa revista neutral «Le Point» mantém a calma objectividade, não se manifestando muito pró nem muito contra. Se o assunto é folclore, há que contentar os leitores de ambos os extremos com um centrismo parecido ao do outro semanário português conhecido pela sua objectividade, independência e etc..
UM LUGAR PARA CADA COISA E CADA COISA NO SEU LUGAR
Uma revista séria, porém, tem um lugar para cada coisa e cada coisa no seu lugar. Arrumado o «folclore» na secção que lhe compete para deixar contentes os consumidores, com a mesma neutral «boa consciência», a revista «Le Point» ataca o assunto escaldante da bomba francesa e aí não há remédio. Nem apelo nem agravo.
Há que reconhecer firmeza na posição francesa, motivos vagamente pacifistas dos que, teimosos, nas suas queixas e nos seus protestos, «apenas» têm preocupações ecológicas.
Arrumado cada assunto na sua secção, quem pode assinalar incoerência na boa consciência da neutralidade?
Todas as leis do consumismo estão exemplificadas nesta amostra de um modelar semanário que serve o consumismo e suas leis.
A Ecologia hoje vende-se, é moda, vem na vaga neo-romântica de uns jovens e marginais mais ou menos indignados com a matança e que se voltam, por tropismo de instinto, mais do que por consciência crítica (única coisa que verdadeiramente o Sistema teme) para outra coisa que não seja a chacina legal e a tirania ambiente: eis, pois, que um semanário de boa consciência esteriliza o assunto, passa-o ao crivo das conveniências políticas, chancela-o de moda passageira, de onda ou vaga romântica e consegue juntar o útil ao agradável: vender a revista e evitar que se propague, que se tome a sério, que se radicalize e se, transforme, num Sistema (no anti-Sistema) aquela Ecologia que tão boas capas coloridas dá e em nome da qual alguns pacifistas, não menos fotogénicos com seus cartazes, protestam contra as explosões de Muroroa.
JÁ A BOMBA É OUTRO ASSUNTO
Assunto de lunáticos como fica implicitamente provado, já a Bomba é outro assunto de política e portanto sério.
Ora com tal e tão boa consciência de neutralidade é que hoje os órgãos que estudam marketing apanham moscas. Só os antiquados usam vinagre, tomando atitudes violentas contra Ecologia e Pacifismo.
O consumismo paternalista, a sociedade da abundância e da tolerância tecnológica (todos unânimes na matança), os órgãos bem pensantes da democracia coexistente, usam outra tirania: menos explícita, menos directa, menos espectacular. Tanto mais eficaz quanto menos se dá por ela.
Enquanto explode uma bomba mais no atol da Muroroa, podem ir dedicando capas coloridas à Natureza e aos naturistas, que o Sistema não virá abaixo por isso, nem deixará de continuar as suas experiências, nem de fabricar as suas bombas. Antes pelo contrário, a revista vender-se-á muito melhor nessa semana.
A tirania ambiente, para ser eficaz e completa, tem de conjugar hoje certa dose de paternalismo, de protecção democrática, certo ar de controvérsia e de inquérito às massas. Precisa alimentar a boa consciência do consumidor que se julga lúcido e que julga, como os órgãos de onde bebe opinião, neutral quando, evitando uma radicalização da Ecologia, implicitamente apoia, fomenta e justifica o ecocídio atómico (atómico e outros).
----
(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no «Diário do Alentejo», 14-9-1973
+**
COMO SE PODEM EVITAR POSIÇÕES RADICAIS(*)
[(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no «Diário do Alentejo», 14-9-1973 ]
Entre os semanários-miscelânea que, em França se publicam, sempre atentos aos eventos e procurando dar deles o que se pode chamar uma posição neutral (ou maternal?), «Le Point» revelou-se, nos últimos meses, sensível aos terrenos da ecologia, não vá dizer-se que está fora do tempo, como alguns semanários portugueses à venda no mercado, que devem considerar o tema repugnante comparado, por exemplo, ao desporto, à bolsa, à decoração doméstica e à política internacional.
Mas cada País tem a boa consciência que merece e os órgãos ditos de opinião que a servem.
A TÁCTICA CONCILIATÓRIA
Vencendo a repugnância e adoptando a táctica conciliatória, «Le Point» descobriu, em Novembro de 1972, que a esquerda francesa estava monopolizando a Ecologia como forma directa de radicalizar as situações, e agora, no número de 23 de Abril de 1973, dedica capa policromática ao tema «O Regresso à Natureza», quatro páginas ilustradas com um desenho de Gourmelin e 5 fotografias com aspectos da vida rural.
Poético, romântico, quiçá reaccionário como chega a insinuar-se, " o regresso à natureza" , dito e encarado dessa maneira, serve os objectivos do semanário, obediente aos ditames do marketing que acusa um leitorado cada vez mais extenso sobre temas afins.
Não há que temer, porém, nada de pior, se a expressão escolhida para designar a Ecologia for essa de “regresso à Natureza" ou a outra não menos interessante de "protecção à Natureza" , ambas ao nível de uma terceira que se lhes equipara : "combate à poluição.»
Nos termos, pois, da melhor linha que serve o sistema sem desgostar os consumidores, não há perigo nenhum em abordar dessa maneira o que de outra maneira seriam as posições de radical e frontal oposição ao sistema.
MAIS UMA BOMBA FRANCESA NA MUROROA
Isto comprova-se logo a seguir e sem mais trabalho, quando assunto bem mais sério (esse sim!) se aborda no mesmo número de Abril da dita revista: mais uma bomba francesa na Muroroa dá azo a que «Le Point» pontifique:
«A França ficará de mármore perante os protestos. O seu dossiê «experiências nucleares» é bom e os queixosos têm apenas preocupações ecológicas».
Sublinho o «apenas»: eis que a Ecologia serve assim dois fins opostos conforme a conveniência e a boa consciência do órgão em questão: quando vista do lado folclórico e, obediente aos ditames do marketing, adorna a tricromia da capa com algumas piadas ao Rousseau (glória nacional francesa) e aos contestatários da alimentação química, está bem, não oferece perigos de maior, vai de acordo com os propósitos de coexistência em que o sistema se esmera, quando pretende absorver e recuperar aquilo que ainda não liquidou a tiro ou à matraca.
Reprocurar a Natureza e o ar puro é a moda, e isto compreende-se. Mas a fuga para a «utopia natureza» salda-se por vezes com o fracasso.
Comovente: «Le Point», com toda a clemência, compreende. «Le Point» é maternal, solícita, terna. Mas claro: sem deixar de assinalar o fracasso de algumas comunas rurais, sem deixar de acentuar que a Ecologia é uma moda e um neo-romantismo que há-de passar com a moda dos tacões e outras modas impostas pela sociedade de consumo, sem evitar o remoque ao Rousseau e a velha história de que sempre houve pacifistas e «amantes da Natureza» e que já Tomás Morus, chanceler de Inglaterra, conceberia uma forma antiurbana de habitar, eis que a boa consciência da boa revista neutral «Le Point» mantém a calma objectividade, não se manifestando muito pró nem muito contra. Se o assunto é folclore, há que contentar os leitores de ambos os extremos com um centrismo parecido ao do outro semanário português conhecido pela sua objectividade, independência e etc..
UM LUGAR PARA CADA COISA E CADA COISA NO SEU LUGAR
Uma revista séria, porém, tem um lugar para cada coisa e cada coisa no seu lugar. Arrumado o «folclore» na secção que lhe compete para deixar contentes os consumidores, com a mesma neutral «boa consciência», a revista «Le Point» ataca o assunto escaldante da bomba francesa e aí não há remédio. Nem apelo nem agravo.
Há que reconhecer firmeza na posição francesa, motivos vagamente pacifistas dos que, teimosos, nas suas queixas e nos seus protestos, «apenas» têm preocupações ecológicas.
Arrumado cada assunto na sua secção, quem pode assinalar incoerência na boa consciência da neutralidade?
Todas as leis do consumismo estão exemplificadas nesta amostra de um modelar semanário que serve o consumismo e suas leis.
A Ecologia hoje vende-se, é moda, vem na vaga neo-romântica de uns jovens e marginais mais ou menos indignados com a matança e que se voltam, por tropismo de instinto, mais do que por consciência crítica (única coisa que verdadeiramente o Sistema teme) para outra coisa que não seja a chacina legal e a tirania ambiente: eis, pois, que um semanário de boa consciência esteriliza o assunto, passa-o ao crivo das conveniências políticas, chancela-o de moda passageira, de onda ou vaga romântica e consegue juntar o útil ao agradável: vender a revista e evitar que se propague, que se tome a sério, que se radicalize e se, transforme, num Sistema (no anti-Sistema) aquela Ecologia que tão boas capas coloridas dá e em nome da qual alguns pacifistas, não menos fotogénicos com seus cartazes, protestam contra as explosões de Muroroa.
JÁ A BOMBA É OUTRO ASSUNTO
Assunto de lunáticos como fica implicitamente provado, já a Bomba é outro assunto de política e portanto sério.
Ora com tal e tão boa consciência de neutralidade é que hoje os órgãos que estudam marketing apanham moscas. Só os antiquados usam vinagre, tomando atitudes violentas contra Ecologia e Pacifismo.
O consumismo paternalista, a sociedade da abundância e da tolerância tecnológica (todos unânimes na matança), os órgãos bem pensantes da democracia coexistente, usam outra tirania: menos explícita, menos directa, menos espectacular. Tanto mais eficaz quanto menos se dá por ela.
Enquanto explode uma bomba mais no atol da Muroroa, podem ir dedicando capas coloridas à Natureza e aos naturistas, que o Sistema não virá abaixo por isso, nem deixará de continuar as suas experiências, nem de fabricar as suas bombas. Antes pelo contrário, a revista vender-se-á muito melhor nessa semana.
A tirania ambiente, para ser eficaz e completa, tem de conjugar hoje certa dose de paternalismo, de protecção democrática, certo ar de controvérsia e de inquérito às massas. Precisa alimentar a boa consciência do consumidor que se julga lúcido e que julga, como os órgãos de onde bebe opinião, neutral quando, evitando uma radicalização da Ecologia, implicitamente apoia, fomenta e justifica o ecocídio atómico (atómico e outros).
----
(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no «Diário do Alentejo», 14-9-1973
+**
<< Home