C. HUMANAS 1990
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O CASO CLÍNICO DAS CIÊNCIAS HUMANAS(SOCIOLOGIA E PSIQUIATRIA, NOMEADAMENTE)
Lisboa, 7/7/1990 - A ciência ordinária, que tanto arrota objectividade e neutralidade, seria provavelmente mais simpática aos olhos das massas, se não fosse tão covarde. Quer dizer: se os cientistas levassem as premissas da sua própria ciência até às últimas consequências, talvez se tornassem mais credores do nosso respeito.
Assim, colaborando fiel e religiosamente na lama das instituições que nos atascam (com a agravante de o fazer consciente e deliberadamente), o sociólogo, tal como o psiquiatra, tem toda a probabilidade de se incluir na Trampa comum.
Em «Confissões de uma Máscara», relato autobiográfico da infância, Yukio Mishima pinta em tintas dramáticas um caso de «sensibilidade particular», caso que seria rotina sem história numa sociedade aberta, numa cultura que não estivesse totalmente dominada por comportamentos estereotipados, por tabus primitivos e ideias feitas.
O que torna Mishima um caso-padrão - para lá do talento literário de um grande escritor - é a sociedade onde deflagrou. O caso Mishima não existiria, sequer, em uma sociedade minimamente civilizada. Tornou-se dramático ( e mesmo trágico) porque a sociedade onde germinou o quis.
Os comportamentos «irregulares» são, regra geral, função dos padrões que determinam a «regularidade» dentro de uma determinada tribo primitiva. Ver a sociedade japonesa do princípio do século como uma tribo é, portanto, o primeiro e mais elementar dever de uma atitude que se pretende científica relativamente ao fenómeno Mishima - que se torna assim, e por isso mesmo, arquetípico.
A ciência deverá, no mínimo, fazer-se objecto de estudo dela própria, submetendo-se, como um caso clínico, às mesmas regras drásticas a que submete os outros(indivíduos, povos e culturas). Um sociólogo deve ser objecto de estudo da Sociologia, um Psiquiatra deve fazer-se objecto de estudo da Psiquiatria, etc. Ou há moralidade, ou comem todos.
A obrigação número 1 das ciências humanas, relativamente ao que se passa nas altas civilizações tecnológicas, é ter a mesma atitude neutral que tem, ou que diz ter, relativamente às civilizações que classifica, sectariamente, de primitivas. À partida, a ciência não deveria ter preconceitos e não deveria classificar, hierarquizando - «primitivo» para um lado e «civilizado» para outro - os grupos sociais sobre os quais exerce a sua «isenta» análise.
É assim que, não cumprindo a ciência a sua obrigação mínima, lá têm os escritores e outros fora da lei que se bater para que a liberdade e a pessoa humana - enquanto rosto da divindade - não sejam totalmente despojados.
Yuki Mishimma, que qualquer Hirschfeld classificaria de «aberração», ultrapassa totalmente sózinho os tabus de uma sociedade feroz e primitiva. O seu «caso clínico» é bem representativo do papel que deveria incumbir à ciência sociológica mas de que esta se demite à partida, por simples e pura ignorância do essencial.
O caso de Mishima só se torna significativo e só se agiganta em função da sociedade e do padrão «civilizacional» (entre aspas) que o tornou paradigmático.
E a verdade é que esse tipo de sociedade que gerou o fenómeno Mishima não está classificada pelos sociólogos como sociedade «primitiva». Aliás, em muitas sociedades ditas primitivas, a sensibilidade peculiar de Mishima não só estaria longe de merecer o epíteto e o anátema de «anormal», «aberrante» ou «perversa», como seria mesmo o inverso, seria a normalidade instituída dentro do grupo.
Quer dizer: o conteúdo moral (judicativo) de um comportamento é função da sociedade, da cultura (mais ou menos entre aspas) ou do padrão civilizacional onde decorre, e postular esta relatividade ou diversidade das culturas deveria ser a primeira obrigação de um cientista que se diz sociólogo.
Mas se o sociólogo não assume a mais elementar das suas obrigações do sociólogo, que diremos, por exemplo, do médico, particularmente do psiquiatra, que é sempre, de urgência, o especialista chamado para diagnosticar os «casos clínicos» que perturbam a sociedade, os poetas e escritores fora da marca, fora do padrão, fora dos tabus convencionados em determinado tempo e determinado lugar da história e do mundo?
O psiquiatra é ainda mais drástico do que o sociólogo, pois não age, como este, por pura e simples omissão, por pura a simples abstenção. O psiquiatra intervém, rotula, classifica, pesa, ajuíza, condena e, às vezes, executa ( terapia dos choques eléctricos) ou entrega ao político, ao juiz, ao polícia ou ao carrasco para que executem.
O que as tribos modernas, as sociedades tecnologicamente muito «avançadas», têm que decidir, através dos seus gestores de almas, dos seus políticos, pedagogos, juizes, polícias e carrascos propriamente ditos de estimação, é o que vão fazer dos «casos clínicos» que são (quase) todos os seus escritores, pintores, músicos e outros decoradores que lhes adornam o ambiente e lhes dão obras para eles irem leiloar.
De duas, uma: ou, decididamente, os governos deixam de celebrar os «génios» que foram apenas deploráveis «casos clínicos» que só uma imensa tolerância cristã dos tolerantes cientistas impediu de internar em hospícios psiquiátricos, ou deixam de lhes chular a obra, cem anos depois da morte e do nascimento, e de rentabilizar em milhares de dólares os girassóis desse caso clínico agravado que foi Van Gogh.
De duas, uma.
De contrário terão de incluir nos respectivos Gulags os sociólogos e psiquiatras como fabricantes privilegiados de rótulos clínicos.
De facto, esta promiscuidade entre gente sadia cheirando a mula e a virilidade - os psiquiatras e sociólogos de estimação - e gente ordinária, de sensibilidade feminina e cheirando a remédios, doentia, não pode nem deve continuar, em nome dos bons e sãos costumes, da integridade da Pátria, da perenidade da Família e para maior glória de Deus.
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O CASO CLÍNICO DAS CIÊNCIAS HUMANAS(SOCIOLOGIA E PSIQUIATRIA, NOMEADAMENTE)
Lisboa, 7/7/1990 - A ciência ordinária, que tanto arrota objectividade e neutralidade, seria provavelmente mais simpática aos olhos das massas, se não fosse tão covarde. Quer dizer: se os cientistas levassem as premissas da sua própria ciência até às últimas consequências, talvez se tornassem mais credores do nosso respeito.
Assim, colaborando fiel e religiosamente na lama das instituições que nos atascam (com a agravante de o fazer consciente e deliberadamente), o sociólogo, tal como o psiquiatra, tem toda a probabilidade de se incluir na Trampa comum.
Em «Confissões de uma Máscara», relato autobiográfico da infância, Yukio Mishima pinta em tintas dramáticas um caso de «sensibilidade particular», caso que seria rotina sem história numa sociedade aberta, numa cultura que não estivesse totalmente dominada por comportamentos estereotipados, por tabus primitivos e ideias feitas.
O que torna Mishima um caso-padrão - para lá do talento literário de um grande escritor - é a sociedade onde deflagrou. O caso Mishima não existiria, sequer, em uma sociedade minimamente civilizada. Tornou-se dramático ( e mesmo trágico) porque a sociedade onde germinou o quis.
Os comportamentos «irregulares» são, regra geral, função dos padrões que determinam a «regularidade» dentro de uma determinada tribo primitiva. Ver a sociedade japonesa do princípio do século como uma tribo é, portanto, o primeiro e mais elementar dever de uma atitude que se pretende científica relativamente ao fenómeno Mishima - que se torna assim, e por isso mesmo, arquetípico.
A ciência deverá, no mínimo, fazer-se objecto de estudo dela própria, submetendo-se, como um caso clínico, às mesmas regras drásticas a que submete os outros(indivíduos, povos e culturas). Um sociólogo deve ser objecto de estudo da Sociologia, um Psiquiatra deve fazer-se objecto de estudo da Psiquiatria, etc. Ou há moralidade, ou comem todos.
A obrigação número 1 das ciências humanas, relativamente ao que se passa nas altas civilizações tecnológicas, é ter a mesma atitude neutral que tem, ou que diz ter, relativamente às civilizações que classifica, sectariamente, de primitivas. À partida, a ciência não deveria ter preconceitos e não deveria classificar, hierarquizando - «primitivo» para um lado e «civilizado» para outro - os grupos sociais sobre os quais exerce a sua «isenta» análise.
É assim que, não cumprindo a ciência a sua obrigação mínima, lá têm os escritores e outros fora da lei que se bater para que a liberdade e a pessoa humana - enquanto rosto da divindade - não sejam totalmente despojados.
Yuki Mishimma, que qualquer Hirschfeld classificaria de «aberração», ultrapassa totalmente sózinho os tabus de uma sociedade feroz e primitiva. O seu «caso clínico» é bem representativo do papel que deveria incumbir à ciência sociológica mas de que esta se demite à partida, por simples e pura ignorância do essencial.
O caso de Mishima só se torna significativo e só se agiganta em função da sociedade e do padrão «civilizacional» (entre aspas) que o tornou paradigmático.
E a verdade é que esse tipo de sociedade que gerou o fenómeno Mishima não está classificada pelos sociólogos como sociedade «primitiva». Aliás, em muitas sociedades ditas primitivas, a sensibilidade peculiar de Mishima não só estaria longe de merecer o epíteto e o anátema de «anormal», «aberrante» ou «perversa», como seria mesmo o inverso, seria a normalidade instituída dentro do grupo.
Quer dizer: o conteúdo moral (judicativo) de um comportamento é função da sociedade, da cultura (mais ou menos entre aspas) ou do padrão civilizacional onde decorre, e postular esta relatividade ou diversidade das culturas deveria ser a primeira obrigação de um cientista que se diz sociólogo.
Mas se o sociólogo não assume a mais elementar das suas obrigações do sociólogo, que diremos, por exemplo, do médico, particularmente do psiquiatra, que é sempre, de urgência, o especialista chamado para diagnosticar os «casos clínicos» que perturbam a sociedade, os poetas e escritores fora da marca, fora do padrão, fora dos tabus convencionados em determinado tempo e determinado lugar da história e do mundo?
O psiquiatra é ainda mais drástico do que o sociólogo, pois não age, como este, por pura e simples omissão, por pura a simples abstenção. O psiquiatra intervém, rotula, classifica, pesa, ajuíza, condena e, às vezes, executa ( terapia dos choques eléctricos) ou entrega ao político, ao juiz, ao polícia ou ao carrasco para que executem.
O que as tribos modernas, as sociedades tecnologicamente muito «avançadas», têm que decidir, através dos seus gestores de almas, dos seus políticos, pedagogos, juizes, polícias e carrascos propriamente ditos de estimação, é o que vão fazer dos «casos clínicos» que são (quase) todos os seus escritores, pintores, músicos e outros decoradores que lhes adornam o ambiente e lhes dão obras para eles irem leiloar.
De duas, uma: ou, decididamente, os governos deixam de celebrar os «génios» que foram apenas deploráveis «casos clínicos» que só uma imensa tolerância cristã dos tolerantes cientistas impediu de internar em hospícios psiquiátricos, ou deixam de lhes chular a obra, cem anos depois da morte e do nascimento, e de rentabilizar em milhares de dólares os girassóis desse caso clínico agravado que foi Van Gogh.
De duas, uma.
De contrário terão de incluir nos respectivos Gulags os sociólogos e psiquiatras como fabricantes privilegiados de rótulos clínicos.
De facto, esta promiscuidade entre gente sadia cheirando a mula e a virilidade - os psiquiatras e sociólogos de estimação - e gente ordinária, de sensibilidade feminina e cheirando a remédios, doentia, não pode nem deve continuar, em nome dos bons e sãos costumes, da integridade da Pátria, da perenidade da Família e para maior glória de Deus.
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