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2006-07-06

TEILHARD 1971

chardin-1> profetas do futuro - contemporâneos do futuro - clássicos do século XXI

A MULTIRRACIALIDADE NO PENSAMENTO DE TEILHARD DE CHARDIN (*)

[(*) Este texto foi publicado no diário «Notícias da Beira» (Moçambique), na rubrica do autor intitulada «Notícias do Futuro», em 6/7/1971]

Algumas destas cartas(**) podem surpreender-nos por encontrarmos nelas alguns dos preconceitos que, apesar de tudo, suporíamos que um espírito como o do Padre Teilhard já não poderia ou deveria albergar. Apesar de tudo, teremos de reconhecer que também Teilhard de Chardin não conseguiu, como qualquer outro mortal e cristão, superar defeitos de mentalidade e vícios da formação cultural recebida.
A menos que o coordenador destas cartas e seu destinatário, Claude Aragonnês, tenha feito piedosas alterações no texto original, para o deixar mais conforme com o ortodoxia (hipótese fundamentada pelas opiniões que o mesmo revela ao prefaciar o presente volume...), temos de reflectir, contrariadamente, sobre algumas limitações da óptica com que Teilhard observa outras raças, em chocante contraste com o universalismo humanista de tantas e tantas das suas visionárias afirmações ou das suas ideias-chave.
De facto, referências reveladoras de uma certa incompreensão dos povos extremo-orientais, fazem-nos acreditar que o cristianismo tinha ainda nele demasiado peso para que o budismo lhe pudesse aparecer na sua irradiante verdade original e na grandeza da sua religiosidade. Por ser tão grande - por ser quem é - é que no Padre Teilhard os preconceitos e as superstições da mentalidade cristã não só nos chocam muito mais, como nos confirmam de como são enraizadas e persistentes as estruturas herdadas de uma educação ortodoxa. Que estragos não terão feito esses preconceitos, em espíritos bem menos atreitos à tolerância e à caridade e ao humanismo, em mentalidades bem mais acanhadas que a do Padre Teilhard!
Só por um esforço de génio se compreende que, linhas após linhas, ele possa escrever coisas como esta, animadas novamente do ecumenismo que faz o alcance «revolucionário» da sua filosofia e da sua metafísica religiosas:
«Há, fora da Igreja, imensa quantidade de bondade e de beleza que certamente só se completarão em Cristo mas que, entretanto, existem e com as quais devemos simpatizar se quisermos ser plenamente cristãos e se pretendermos assimilá-las a Deus».
Há aqui, evidentemente, um cristocentrismo medular mas que nos soa já de maneira diferente. Aí, é mais o cristianismo que se alarga ao mundo e a todas as raças do mundo para as amar e receber, do que as outras raças e culturas que surgem como intrusas à procura de um lugarzinho também à mão direita de Deus Pai, conceito este que tem inspirado toda a acção missionária entre os chamados povos «exóticos» ou «primitivos... Além de um cristocentrismo, existe nesta outra acção missionária, um europocentrismo ainda mais condenável.
Note-se, entretanto, como o Padre Pierre era sensível aos mundos estanques que são as diversas formações ou estruturas culturais, as mentalidades oriundas de núcleos institucionais ortodoxos como as Igrejas:
«Eu pensava no abismo que separa o mundo intelectual em que me encontrava e cuja língua compreendo, do mundo teológico e romano, cujo idioma também conheço. Depois de um primeiro choque à ideia de que este pudesse e devesse ser tão real como aquele».
Tais dúvidas e tal choque num espírito como o seu, só comprovam de como o «racismo» (entendido também como choque de religiões e não só de raças) é algo de muito arreigado no espírito ocidental, e de como nos é doloroso e difícil apartarmo-nos da cultura materna, e de como o trabalho de aculturação e a multiracialização da nossa filosofia é um trabalho de primeira instância, de absoluta prioridade, exigindo de nós as mais nobres energias intelectuais e morais e o mais apaixonado esforço de transplantação - ou, se quiserem, de adaptação, de humildade, de humana convivência e comunicação.
Hoje - e como nos lembrou sempre o Padre Teilhard - o grande problema é esse: o do Uno e do Múltiplo, como ele diria, o da policulturalidade ou da relatividade cultural, como nós diríamos. O «nacionalismo» terá de morrer a todos os níveis, mas o último a morrer, o mais difícil de exterminar das nossas mentes, mesmo esclarecidas e reeducadas, será com certeza o nacionalismo cultural, quer dizer, um europocentrismo que tem, desde Marco Polo, marcado das nódoas mais abjectas os países e povos do mundo onde tocou.
A Paz Branca foi a maior e mais persistente guerra travada à superfície do globo. E que o século XXI venha a ser o século do convívio entre as culturas, as raças, nações e povos - exterminados todos os preconceitos e tabus que são ainda a constante do século em que vivemos - eis o voto que com mais segurança podemos emitir, na peugada do Padre Teilhard. Se vencermos esse ancestral «pecado» da nossa condição, avançaremos e progrediremos tudo o que, em outros campos, tivermos regredido e retrocedido por culpa de uma tecnologia loucamente aplicada por políticas de loucura.
Sob todos estes pontos de vista, Cartas de Viagem é um dos volumes mais decepcionantes de Teilhard de Chardin. Mas, pensando melhor, não será por isso mesmo um dos mais representativos, um dos que melhor contribuem para os seus impenitentes admiradores - quase sempre apaixonados e tendenciosos, incapazes de compreender melhor o grande jesuíta por demasiado o amarem, sem crítica, sem distanciamento, sem critério e sem prospectiva - efectuarem um valioso balanço do seu pensamento.
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(*) Este texto foi publicado no diário «Notícias da Beira» (Moçambique), na rubrica do autor intitulada «Notícias do Futuro», em 6/7/1971

(**) Cartas de Viagem, Pierre Teilhard de Chardin, col. «Documentos Humanos», nº 25, Portugália Editora, Lisboa, 1909, Trad. de António Ramos Rosa.
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