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*DEEP ECOLOGY - NOTE-BOOK OF HOPE - HIGH TIME *ECOLOGIA EM DIÁLOGO - DOSSIÊS DO SILÊNCIO - ALTERNATIVAS DE VIDA - ECOLOGIA HUMANA - ECO-ENERGIAS - NOTÍCIAS DA FRENTE ECOLÓGICA - DOCUMENTOS DO MEP

2006-01-22

DEEP ECOLOGY 1988

trabalho-3> os dossiês do silêncio – ideias para o novo milénio – ecologia e trabalho – III

OS CRONÓFAGOS(*)

23/1/1988 (in «A Capital») - Pessoas de todas as idades e empregos queixam-se de andar estafadas, de que não têm tempo para se coçar, de que os anos passam e não conseguem ler aquele livro há tanto, tanto tempo na estante ou fazer aquela visita a um amigo que há tanto tempo não vêem.
Quando se ouvem estas queixas, feitas quase sempre a medo, como se houvesse sempre ao lado um polícia de costumes e como se viver fosse proibido, ou pecado, ou atentado ao pudor, a tendência dos mais lépidos é para as classificar (às queixas) no quadro dos desabafos estereotipados, que se dizem por dizer, e já que as pessoas sempre têm de se queixar de alguém, alguma coisa, algum governo ou alguma instituição.
Querer viver , porém, e chegar aos cinquenta e quatro anos à espera de poder viver, sem tempo para isso, não me parece uma queixa gratuita mas justa.
O direito à vida, se me não engano na rota, deverá estar inscrito já, a esta hora da História, em algum texto programático dos que regulam a vida dos povos nas modernas sociedades e nos modernos Estados de Direito, as ditas e duras democracias de consumo.
Mas as modernas democracias-de-aviário-e-supermercado, tal como as antigas e modernas autocracias, ainda estão longe de poder cumprir na prática quotidiana o que proclamam na teoria dos princípios.
Se este sistema pilha, delapida e devora tudo quanto é recurso vivo, estranho seria se não pilhasse e devorasse também os recursos e direitos humanos.
Os cronóvoros, ou devoradores do tempo das pessoas, são tão essenciais ao sistema canibalesco como os hidróvoros (ou devoradores de água) e os energívoros.
Pormenorizando: Um sistema irracional, que democraticamente pilha e delapida os recursos hídricos do Planeta, por exemplo, um sistema insaciável que em meio século tornou escasso um bem universal e gratuito como era a água, como não havia de carregar a fundo no acelerador para pilhar a mais cobiçada forma de energia, a energia humana ou bioenergia, mais conhecida por força-de-trabalho.
Um sistema de energívoros que democraticamente pilha e delapida recursos energéticos finitos, tinha também que atingir necessariamente outro dos recursos fundamentais do Planeta, o homem no seu direito básico à vida.
Os cronóvoros, a que autores como Jean Robert também chamam cronófagos, assaltaram assim o domínio mais reservado da biosfera: o tempo que define a duração humana da Liberdade. Tirar o tempo a uma pessoa é tirar-lhe a identidade, dando lugar ao fenómeno que o Marx da juventude, o dos Manuscritos, designou de alienação.
É a forma institucional que as insaciáveis democracias, tanto como as autocracias, têm de pilhar, delapidar, sugar, vampirizar esse bem universal e gratuito que é a Energia humana, comendo-lhe o que tem de mais precioso e irrecuperável, o tempo-de-vida, a que a solidariedade institucional dos vampiros chama então, como se fosse um benefício, emprego.
Em contraponto e ao lado do emprego, as Teocracias do Deus-trabalho criam, produzem ou fabricam o desemprego, seu termo antagonista dialéctico, para que as pessoas , designadas então "mão-de-obra", dêem o devido apreço ao emprego que têm.
Ou seja: preso por ter cão (emprego) e preso por não ter.
a) O desempregado poderia viver porque dispõe de horas para isso, mas não pode porque não tem as fontes de rendimento.
b) A pessoa empregada (assalariada), pelo contrário, tem a fonte de rendimento mas, para a ter e manter, esgana-se em horas extraordinárias, em isenções de horário, em contratos de exclusividade, tudo devidamente arranjado, em contratos colectivos muito suados, pelas organizações sindicais muito amigas dos trabalhadores, quase tanto como as organizações patronais.
Nem sequer será estranha esta contradição da engrenagem tecno-industrial e burocrata, oh venerando Mao: de um lado quem ocupe o trabalho de três(remunerado por um!), morto de stress, fadiga e cansaço, mas do outro lado a angústia dos sem emprego, dos chamados desempregados e desocupados!
A engrenagem não só montou assim o quadro para que ele fique imutável, mas não dá a mínima informação de como as coisas deviam e podiam ser, caso estivesse em causa defender as pessoas nos seus direitos fundamentais contra o sistema que as explora em vez de favorecer o sistema que explora as pessoas.
A existir essa informação ao cidadão em defesa dos seus próprios direitos, começaria, como fez Michel Bosquet, por inverter o sistema que está montado.
E a Ecologia Humana dirá então:
1 - O desemprego não é uma maldição e pode ser uma benção, se os desempregados estiverem organizados para se ocupar no trabalho livre e criador, como lhe chama Ivan Illich;
2 - O desemprego é artificialmente fabricado e mantido para que o emprego se torne(em vez de um direito humano) uma benesse, um favor feito pelo sistema, uma benção que o explorador faz ao explorado.
Recapitulando e resumindo: Bastava que desempregados, reformados, donas de casa, jovens, artesãos e todos os agentes da chamada "economia paralela" se juntassem numa frente comum, numa única força organizada para que tudo mudasse na face da Terra.
O anacrónico slogan "Trabalhadores de todo o Mundo, uni-vos, só tendes a perder as vossas algemas" era o slogan de ontem, mas o slogan de amanhã será "desempregados de todo o Mundo, uni-vos, só tendes a ganhar o trabalho criador, a liberdade e a vida.
Porque é de viver que se trata. Apenas.
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(*) Escrito em 20/12/1987, este texto foi publicado no jornal «A Capital» (Crónica do Planeta Terra), 23/1/1988
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