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2006-09-17

VENENOS 1973

1-4 - crianças-1-eh> ecologia humana

A CRIANÇA E OS VENENOS QUE A CERCAM(*)

(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no semanário «O Século Ilustrado» (Lisboa), 15-9-1973


Acorrem ao banco de urgência de Santa Maria crianças intoxicadas por petróleo. Porque havemos, no entanto de consentir que o petróleo constitua perigo e provoque acidente? Hoje, quem utiliza petróleo? E em que condições, em que "casas" se utiliza?

O famoso "progresso industrial" é sempre mais industrial do que progresso e, portanto, relativo.
Diz-se que as intoxicações por produtos químicos são, entre muitos outros perigos, o "preço" a pagar pela "civilização". Gostaríamos de saber se os benefícios extraídos da referida civilização (onde estão que não os vejo?) são tantos que compensem os prejuízos, o tal "preço" a pagar.
No caso das crianças e dos riscos que, em casa, a sua segurança corre, diríamos que ainda é cedo para os benefícios cobrirem e compensarem os males.
Detergentes, pesticidas, raticidas, comprimidos, medicamentos, são apenas alguns dos factores que tornam o ambiente doméstico inseguro e muitas vezes insalubre para a criança mal vigiada.
"Vale mais prevenir do que remediar" - lemos esta advertência em muitos cartazes expostos nos corredores do hospital. De facto, prevenir é a grande regra de segurança e que se opõe ao remedeio. Se evitarmos o acidente e as doenças, vamos poupar horas de trabalho a hospitais e postos de enfermagem, a médicos e enfermeiros - mas até onde vai., na nossa vida quotidiana o conceito de "prevenção"? Será que o exemplo de prudência e profilaxia vem sempre de onde devia vir?
Como falar de "prevenção" quando a resposta para os malefícios do "progresso" industrial é o preço a pagar pelos benefícios a receber? Não se chamará a isto um ciclo vicioso?

DROGARIA CASEIRA

À mão de semear, os cosméticos da mamã podem constituir um perigo para os filhos nas suas primeiras idades.
Como o assunto dos cosméticos tem sido muito agitado ultimamente, vem a propósito uma rápida retrospectiva daquelas informações que neste momento podem ser mais úteis às famílias em geral e às que tenham crianças em particular.
A. propósito de cosméticos deve dizer-se que há já, marginal e sem repercussão pública, um sem número de produtos naturais, inofensivos, criados por adeptos da Macrobiótica Zen em França e que se recomendam a simpatizantes do movimento ou não. Cosméticos simples, sem dúvida, como tudo o que aquela "filosofia" alimentar recomenda, podem talvez estabelecer um correctivo aos exageros tóxicos do consumismo que, neste campo dos cosméticos, exibe todo o mal de que é capaz, e já tem levado a tragédias entre as quais a do Hexaclorofene até não é a única e maior nem será infelizmente a última.
O que os eco-tácticos aconselham, nestas e em outras armadilhas do consumo, é sempre o retorno à simplicidade: o que significa uma reviravolta na nossa mentalidade toda voltada para as inúteis complicações.
Para quê talcos e desodorizantes providos dos mais desvairados bactericidas? - perguntava o semanário «Nouvel Observateur», a propósito da tragédia Hexaclorofene.
Sim, para quê tão caras e complicadas defesas da "higiene corporal", se afinal, à antiga portuguesa, a água e o sabão (e não digo piaçaba ) podem fazer milagres?...
Se queremos viver um pouco mais e um pouco menos em sobressalto, há que conter os ímpetos "bactericidas» do fabricante, sempre pronto a inventar um "novo prodígio da técnica moderna" para desbancar um não menor prodígio da firma concorrente ou fascinar o consumidor. Ao consumidor compete saber, estar educado para se defender. No caso dos cosméticos, é principalmente a consumidora que deve estar alerta e vigiar os rótulos que compõem a sua..."drogaria" caseira: cremes, leites, sabões, pós-.de-arroz, depilatórios, desodorizantes, bronzeadores, vernizes, champôs fixadores.
Sobre a recente portaria que regulamenta a indústria de cosméticos em Portugal, um industrial da modalidade opinou desta maneira:
«Mais do que uma portaria, era necessária uma lei que definisse o que é a cosmética, quem pode ser industrial ou manipulador, e ser muito rigoroso sobre os locais onde se manipula ou fabrica. O pessoal para esta indústria deve ser qualificado, higienicamente formado e consciente."
Digamos que um manipulador de explosivas daria mais ou menos as mesmas regras de prudência e diria pouco mais ou menos o mesmo se o convidassem a falar de segurança na sua respectiva indústria...

Mas voltemos às intoxicações das crianças no ambiente doméstico. É a drª Maria de Lurdes Levy, professora na especialidade de Pediatria do Hospital Escolar de Lisboa, que nos diz palavras bem úteis para nosso e público esclarecimento:
«O número de compostos químicos com os quais o homem se encontra em contacto todos os dias vai aumentando em ritmo vertiginoso.
Essas substâncias, quer sejam produtos industriais, agrícolas, de higiene doméstica ou medicamentos, são cada vez mais numerosos, podendo dizer-se que não há lar onde não se encontrem, alguns desses produtos, destinados aos mais variados fins e sendo muitos deles potencialmente perigosos.
A sua ingestão acidental na criança põe problemas muito difíceis de resolver para o médico que é chamado a intervir em tais circunstâncias.
Segundo Dreisbach, os venenos são classificados em 5 grupos de harmonia com a sua origem:

tóxicos agrícolas
tóxicos industriais
tóxicos de uso caseiro
tóxicos medicamentosos
animais e plantas venenosos"

Diz ainda a Dr.ª Maria de Lurdes Levy:
"Numa época em que os progressos da Medicina, nomeadamente os da Pediatria, conseguiram baixas tão importantes na mortalidade e na morbilidade infantis, o problema das intoxicações acidentais na criança, reveste uma importância que se deve salientar. É um problema actual e sobretudo evidente para os médicos que trabalham em serviços de Urgência.
Em Portugal (Lisboa), sobretudo desde a abertura dos serviços de Urgência Infantis, o pediatra, obrigado a entrar em contacto frequente com estas situações, tomou delas maior consciência.
Assim, em Lisboa, nos serviços de urgência do Hospital de D. Estefânia observaram-se 740 crianças abaixo dos 10 anos, com intoxicações várias, desde 1957 até Julho de 1964 e no serviço de urgência do Hospital de Santa Maria, de Abril de 1961 até Julho de 1964, trataram-se 314 casos de crianças até 10 anos com Intoxicações."
Referindo o aumento de intoxicações na estatística de todos os países, a Dr.ª Maria de Lurdes Levy indicou os factores que condicionam esse aumento:
"1 - 0 progresso industrial e farmacêutico, que ampliou a uma enorme escala o espectro etiológico das intoxicações, lançando para uso do público uma gama cada vez maior de produtos químicos;
2 - A evolução da técnica de apresentação dos produtos, sobretudo dos medicamentos, em embalagens mais simplificadas, ou sob forma , aspecto ou sabor mais aliciantes para os sentidos aguçados da criança, que tem em si intacto o espírito de investigação e o sentido da experimentação. "

(Para dar ao leitor elementos seguros e muito concretos sobre as medidas de urgência a tomar em caso de acidente por tóxicos com crianças, socorremo-nos de um trabalho da Drª Maria de Lurdes Levy apresentado ao Simpósio sobre "Intoxicações Acidentais na Criança", organizado pela Sociedade Portuguesa de Pediatria e que teve lugar em Lisboa em Novembro de 1964.)

É o Prof. Mário Cordeiro que indica ainda outro factor condicionante das intoxicações em flecha: "As sensíveis modificações ambientais que se operaram nos últimos anos na vida da criança, a evolução das suas próprias características psicológicas, reflexo fisionómico do meio familiar e social em que ela gravita."

UM TELEFONO DE SOCORRO

Se a indústria os fabrica é, evidentemente, para bem do povo. A indústria nada faz que seja para mal: bombas ou bombons, acrílicos ou monóxido de carbono, pesticidas ou formicidas, é sempre ao serviço do homem, da civilização do progresso, do futuro. Pelo menos é o que lemos.
Além disso, a indústria pensa em tudo. Na ferida, mas logo no penso para a ferida. E se conseguiu lixívias, anticoncepcionais, desodorizantes de frigorifico (!), enfim, o que se chama por vezes a "ofensiva do consumo" e a que outros preferem chamar "romantismo do desperdício" - logo pensou nos antídotos.
Daí os Centros de Desintoxicação. Pois não é verdade que se inventou também a confissão para aliviar o herege de seus pesados pecados?


Os telefones estão largamente divulgados. Mas nunca é demais tomar nota, meter na carteira ou colar no próprio telefone:
76 11 76
76 77 77
76 34 56
No centro de intoxicações que existe em Lisboa (Av. Elias Garcia, 81) funciona um serviço informativo contra venenos. O único em Portugal. Os Estados Unidos, muito mais tóxicos, necessitam de 400 centros de desintoxicação, e não quer dizer que cheguem.
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(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado no semanário «O Século Ilustrado» (Lisboa), 15-9-1973