VELHICE 1967
67-09-07-de-diário do escriba – antologia das memórias – inédito ac de 1967 – diário de um leitor de livros
Lisboa, 7/Setembro/67 - Será que perdi a capacidade de admirar e a juventude de espírito? Será que um pretenso sentido crítico exilou de mim todas as possibilidades de afecto e sentimento, a simples adesão das coisas sem um aparelho de suspeita e desconfiança a separar-nos? Receio bem que tudo isto sejam sinais de velhice: retomo autores que ontem lia com avidez e nada me dizem hoje.
Os místicos parecem-me de um impudor sacrílego, ofensivo, absurdo, a exporem como chagas as suas inquietações fundadas numa ética ignominiosa e mistificatória; os gritos cristãos de Kazantzaki, por exemplo, o tema da abstenção, da austeridade e do ascetismo que a sua obra ilustra, já nem com todo o molho literário me comovem e convencem. Será isto um progresso? Significará que um lento processo de amadurecimento, só hoje faz aparecer, em toda a nudez de ilusões, mitos e disparates, conceitos, obras e autores que ontem tinha na conta de bons ou razoáveis?
Por este caminho, bem pouca coisa ficará de tudo quanto encheu ontem de ilusões e crenças o meu mundozinho literário; um endurecimento emocional tem acompanhado esta evolução e, para melhor ou para pior, resulta daqui uma útil lição; nada daquilo em que se crê é tão perdurável como se crê.
A uma fase decididamente romântica - ainda que até há pouco me recusasse classificá-la assim - parece suceder-se uma fase realista, com força assim o espero para renunciar aos mitos propostos de tantos lados e ver a que dimensões de inutilidade deverei reduzir mais alguns "génios" de uma humanidade tão fértil deles... Brevíssimas luzes de inspiração marxista não são alheias a esta mudança, a esta óptica e é curioso notar como a leitura de certas obras - estou só a lembrar-me de Josué de Castro, Frantz Fanon, e alguns outros ideólogos do Terceiro Mundo - inutiliza por completo tantas e tantas Bibliotecas, tantos e tantos autores, tantas e tantas obras.
Trabalho de escolha e selecção que não deixa de ser benéfico para quem tenha cada vez menos tempo a consagrar aos prazeres líricos, platónicos e românticos da leitura.
MALDITOS OS QUE ACREDITAM
E não me venham com a velha história do valor literário das obras se sobrepor à sua ideologia, quando esta é transparentemente reaccionária, burlona, chata, parva ou odiosa; não me digam suportável o Shakespeare e o José Régio, o Kazantzaki e o Sá Carneiro, em favor de possíveis méritos literários. Se posso hesitar em Coccioli e Pascoaes, se mais hesito em Camus ou Fernando Pessoa, não é tanto porque o talento literário os iliba mas porque na própria ideologia, embora de mística abstenção, há elementos compensadores de avanço e superação. Nessa superação, aliás, precedida ou não de exigente auto-crítica, pode residir aliás o mérito e o agrado com que ainda leia alguns (poucos )dos muitos místicos em que ontem perdia o meu tempo.
Malditos os que continuam a proclamar uma conduta moral no pequeno inferno quotidiano, malditos porque, acossado de cínicos e de hipócritas, só sofre o que, por hábito ou vício, teima em querer as relações humanas fundadas não no comodismo utilitário, no egoísmo voraz, no canibalismo feroz mas numa recíproca entrega, na recíproca fraternidade, na ideal irmandade.
Malditos os que me fizeram crer nisso e por isso me obrigam a sofrer; teimo em adaptar-me e, depois de tantas tentativas, não aprendi; só vejo os que, seguros de si, pisam e sorriem, esmagam e sorriem, tripudiam e sorriem.
Claro, a moral é outra cantiga e os que cantam socialismo para amanhã têm uma razão suplementar para ignorar a moral "retrógrada" que, inclusive, ainda por cima, precisa de um fundamento transcendente para se praticar e que, porque esse fundamento não existe, não se pratica.
Claro, o mal vem de que ainda há em mim restos de uma crente descrença num transcendente, num céu da consciência que li em Antero ou Sérgio ou Espinosa haver nos homens (e leio agora em Danilo Dolci e outros "dolci" reformistas da não-violência).
Claro, o mal vem desses e de outros místicos da fraternidade, vem de Romain Rolland e de Kazantzaki (que agora releio), vem do Coccioli que ontem li, vem de todos os pacifistas em que me enlevava ontem quando já os místicos da brutalidade me pisavam os calos sem saber que os tinha.
Será esta a maior frustração da minha vida, a que menos me perdoarei. Nunca poderei reaver o tempo e a habilidade que me permitam manter rígido, frígido, duro, frio, insensível à insensibilidade dos meus queridos próximos, colocados ou a colocar-se, a caminho do melhor despotismo de onde, por fatalidade, me hão-de fazer a cama completa. Já sei: mania da perseguição, ressentimento, não saber compreender e perdoar, etc., etc.
Se algum dia me matar, não haverá outro motivo: insuportável me parece cada vez mais um mundo de onde foi corrida literalmente qualquer hipótese de tréguas: de proceder (platónica e mìsticamente) por amor dos outros, sem que o amor dos outros não me liquide logo a multiplicar por cinco Uma merda a moral do amor, uma fábula para menores a mística da Fraternidade.
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SINAIS DE VELHICE
O QUE NÃO VENCE É VENCIDOS
Lisboa, 7/Setembro/67 - Será que perdi a capacidade de admirar e a juventude de espírito? Será que um pretenso sentido crítico exilou de mim todas as possibilidades de afecto e sentimento, a simples adesão das coisas sem um aparelho de suspeita e desconfiança a separar-nos? Receio bem que tudo isto sejam sinais de velhice: retomo autores que ontem lia com avidez e nada me dizem hoje.
Os místicos parecem-me de um impudor sacrílego, ofensivo, absurdo, a exporem como chagas as suas inquietações fundadas numa ética ignominiosa e mistificatória; os gritos cristãos de Kazantzaki, por exemplo, o tema da abstenção, da austeridade e do ascetismo que a sua obra ilustra, já nem com todo o molho literário me comovem e convencem. Será isto um progresso? Significará que um lento processo de amadurecimento, só hoje faz aparecer, em toda a nudez de ilusões, mitos e disparates, conceitos, obras e autores que ontem tinha na conta de bons ou razoáveis?
Por este caminho, bem pouca coisa ficará de tudo quanto encheu ontem de ilusões e crenças o meu mundozinho literário; um endurecimento emocional tem acompanhado esta evolução e, para melhor ou para pior, resulta daqui uma útil lição; nada daquilo em que se crê é tão perdurável como se crê.
A uma fase decididamente romântica - ainda que até há pouco me recusasse classificá-la assim - parece suceder-se uma fase realista, com força assim o espero para renunciar aos mitos propostos de tantos lados e ver a que dimensões de inutilidade deverei reduzir mais alguns "génios" de uma humanidade tão fértil deles... Brevíssimas luzes de inspiração marxista não são alheias a esta mudança, a esta óptica e é curioso notar como a leitura de certas obras - estou só a lembrar-me de Josué de Castro, Frantz Fanon, e alguns outros ideólogos do Terceiro Mundo - inutiliza por completo tantas e tantas Bibliotecas, tantos e tantos autores, tantas e tantas obras.
Trabalho de escolha e selecção que não deixa de ser benéfico para quem tenha cada vez menos tempo a consagrar aos prazeres líricos, platónicos e românticos da leitura.
MALDITOS OS QUE ACREDITAM
E não me venham com a velha história do valor literário das obras se sobrepor à sua ideologia, quando esta é transparentemente reaccionária, burlona, chata, parva ou odiosa; não me digam suportável o Shakespeare e o José Régio, o Kazantzaki e o Sá Carneiro, em favor de possíveis méritos literários. Se posso hesitar em Coccioli e Pascoaes, se mais hesito em Camus ou Fernando Pessoa, não é tanto porque o talento literário os iliba mas porque na própria ideologia, embora de mística abstenção, há elementos compensadores de avanço e superação. Nessa superação, aliás, precedida ou não de exigente auto-crítica, pode residir aliás o mérito e o agrado com que ainda leia alguns (poucos )dos muitos místicos em que ontem perdia o meu tempo.
Malditos os que continuam a proclamar uma conduta moral no pequeno inferno quotidiano, malditos porque, acossado de cínicos e de hipócritas, só sofre o que, por hábito ou vício, teima em querer as relações humanas fundadas não no comodismo utilitário, no egoísmo voraz, no canibalismo feroz mas numa recíproca entrega, na recíproca fraternidade, na ideal irmandade.
Malditos os que me fizeram crer nisso e por isso me obrigam a sofrer; teimo em adaptar-me e, depois de tantas tentativas, não aprendi; só vejo os que, seguros de si, pisam e sorriem, esmagam e sorriem, tripudiam e sorriem.
Claro, a moral é outra cantiga e os que cantam socialismo para amanhã têm uma razão suplementar para ignorar a moral "retrógrada" que, inclusive, ainda por cima, precisa de um fundamento transcendente para se praticar e que, porque esse fundamento não existe, não se pratica.
Claro, o mal vem de que ainda há em mim restos de uma crente descrença num transcendente, num céu da consciência que li em Antero ou Sérgio ou Espinosa haver nos homens (e leio agora em Danilo Dolci e outros "dolci" reformistas da não-violência).
Claro, o mal vem desses e de outros místicos da fraternidade, vem de Romain Rolland e de Kazantzaki (que agora releio), vem do Coccioli que ontem li, vem de todos os pacifistas em que me enlevava ontem quando já os místicos da brutalidade me pisavam os calos sem saber que os tinha.
Será esta a maior frustração da minha vida, a que menos me perdoarei. Nunca poderei reaver o tempo e a habilidade que me permitam manter rígido, frígido, duro, frio, insensível à insensibilidade dos meus queridos próximos, colocados ou a colocar-se, a caminho do melhor despotismo de onde, por fatalidade, me hão-de fazer a cama completa. Já sei: mania da perseguição, ressentimento, não saber compreender e perdoar, etc., etc.
Se algum dia me matar, não haverá outro motivo: insuportável me parece cada vez mais um mundo de onde foi corrida literalmente qualquer hipótese de tréguas: de proceder (platónica e mìsticamente) por amor dos outros, sem que o amor dos outros não me liquide logo a multiplicar por cinco Uma merda a moral do amor, uma fábula para menores a mística da Fraternidade.
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