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2006-09-06

LAGARTAS 1980

1-2- -80-09-06-ie> quinta-feira, 2 de Janeiro de 2003-scan

LAGARTAS, LAGARTAS...(*)

[6-9-1980]

O agricultor deverá tomar partido: ou utiliza "sensatamente" (quer dizer, em escalada) os pesticidas, e nunca mais se livra deles nem dos respectivos aumentos de preço, ou se deixa invadir por um exército de lagartas (verdes, verdes:) como sucedeu agora, numa cidade norte-americana e pudemos, evidentemente, ver através do Telejornal 1, no sábado, dia 6 de Setembro de 1980.

Moral desta fábula: ser ou não ser. Comido pelos pesticidas, ou lambido pelas lagartas.

Pior quando forem ratos. E melhor ainda, quando forem super-ratos, imunes às doses e que já não têm medo de praguicidas: antes pelo contrário, até se lambem e pedem mais.

Moral da fábula: quem lagarticidas quiser dispensar, à despensa a praga lhe irá dar.

O noticiarista do Telejornal 1 teve o cuidado de pôr os pontos nos iis e as lagartas (verdes, verdes!) no seu lugar: a bárbara e truculenta invasão de larvas, com meninos à porta a fazer festas nos bichinhos, era assim comentada (evidentemente:) segundo e conforme as premissas da Lógica Multinacional:

"Como a população" - noticiarista dixit - " se queixara das nuvens de pesticidas que lhe entravam pela casa dentro e caíam no prato, alguém teve a ideia de seguir Maquiavel num dos seus capítulos mais benevolentes: "quanto pior, melhor", teria cogitado o espertíssimo técnico agrário lá da zona e deu ordens para suspender, abruptamente, as toneladas de pesticidas".

Claro: como um drogado de alta dose que de repente corta com a toxicomania, o resultado não se fez esperar. Para humilhação humana e gáudio da indústria química, milhões de lagartas começaram a proliferar ao ritmo dos tecnocratas e engenheiros do Ambiente, para os quais ainda não foi descoberto o pesticida específico.

Fotógrafos, camara-men, estavam lã. Eurovisão, especialmente, tinha que estar lá. Ou se não estavam, foram chamados de urgência, que a ocasião era baril para uma propaganda grátis à marca.

O QUE SE DIZ PARA NUNCA DIZER O QUE SE DEVIA DIZER

Não disse o locutor, nem a imagem (claro!) registou que o fenómeno poderá ter sido subtilmente bem outro. Aliás, como todo o fenómeno dos ecossistemas, é sempre uma questão de subtileza.

O que logicamente (ou ecologicamente) aconteceu foi concerteza outra coisa, bem mais cómica, quer dizer, bem mais trágica.

Contidas as pragas à custa de doses cada vez maiores de produtos químicos, que por sua vez vão produzir desequilíbrios que por sua vez produzem pragas cada vez mais devastadoras (em ritmo de escalada), virá o momento em que já não há dose que chegue por maior que seja. O momento em que a escalada não pode subir mais nenhum degrau. Vem o momento da saturação. O momento em que a «taça» (de veneno...) transborda.

Rompe-se o dique, digamos assim. E o exército de lagartas avança. Tal como têm avançado os de gafanhotos, mosquitos e... até pulgas, segundo recentes notícias de Milão. Ratos então são os imperadores de cena, rindo-se do slogan "mata que se farta". Eles respondem, reproduzindo-se aos milhões.

Para gáudio dos inimigos da Natureza, os jornais noticiam estas "invasões" de criminosos roedores (e outros). Invasões metodicamente criadas, provocadas, produzidas e multiplicadas pela escalada dos praguicidas.

A malvadez de tais criaturas que assolam a tranquilidade e a paz das populações não deixa de ser posta em relevo pelo redactor.

ENTRA O CÓDIGO, SAI ASNEIRA

Se o código de publicidade nada prevê (claro) sobre praguicidas, ao abrigo de toda a moral, e se entre os produtos cancerígenos indicados pelo Dr. Saraiva de Carvalho, no recente Congresso de Paris sobre o Cancro e Poluição, não figuram (claro!) os medicamentos e todos os derivados dos hidrocarbonetos como principais cancerígenos, se tudo isto existe, se tudo isto é triste, e se tudo isto é fado, esperam as lagartas, ansiosamente, verdes, verdes, que sejam, eventualmente chocantes, fatalmente cancerígenas.

A peste dos pesticidas podia bem figurar já na alínea do código.

Outras pragas - maltusianos, derwinistas, hedonistas - haverá que enfrentar.

A partir destas pragas, exemplares, o leitor que deduza agora todas as outras para as quais ainda não foi encontrada vacina. Mas se quiser avivar a memória, peça-nos a lista.

Moral desta outra fábula: a higiene é um luxo e quem não quiser ter piolhos tem de gastar, por dia, uma embalagem de piolhicida. De contrário, se cair no pecado mortal de desobediência, acontece-lhe o mesmo que aquela cidadezinha matreira, sodoma e gomorra de 1980 que, segundo o telejornal 1, se viu invadida de uma lagartinagem, castigo divino da sua libertinagem, da sua desobediência ao código internacional das multinacionais.

Enfim uma praga. Uma não: várias.
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(*) Este texto de Afonso Cautela deverá ter ficado inédito
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