MITOS 1972
1-2 - 72-08-05-di>
MITOLOGIAS DE CONSUMO(*)
5-8-1972 - Os mitos da ciência têm que se lhes diga. E tanto faz que venham de Leste como de Oeste, a fancaria é quase sempre a mesma.
Até há pouco o mito do crescimento económico (a que se chamou também progresso, "tout court") era daqueles que ninguém podia questionar, sob pena de morte. Agora, como são os próprios funcionários do sistema a questioná-lo, a coisa já passa, já não se ameaça com pena de morte aquele que ouse pôr em dúvida a omnipotência da técnica, capítulo aliás de toda uma mitologia imbecil que, em nome da ciência, da técnica, do progresso e não sei de que mais, gerações de funcionários (do Sistema) nos andaram e andam impingindo.
Como é óbvio, a novelística chamada de ficção-científica revela esses mitos e, embora de maneira romanceada (ou exactamente por isso), não deixa de os denunciar na sua vileza, melhor mesmo do que o faria outra literatura, quiçá mais técnica, mais especializada, mais ortodoxa.
Um dos mitos que continuam intocáveis mas que (tenhamos esperança) mais dia menos dia terá de sofrer o mesmo processo de contestação já iniciado contra o mito do crescimento económico, é o da "mensurabilidade" .
Tudo se pode medir: Eis a crença em que se baseia toda a ciência. A matéria humana também e as ciências humanas, portanto, terão que submeter-se à mesma histeria de pesos e medidas que invadiu as ciências físicas, as ciências do inorgânico em geral.
Quer dizer: o mito da mensurabilidade o que fez foi, pura e simplesmente, submeter o superior ao inferior.
Todas as ciências humanas baseadas no mito da mensurabilidade são um rebaixamento do humano. E isso é verificável na prática, muito mais na prática do que teoricamente.
Sobre a criminalidade que este mito tem provocado não falemos agora. Um tribunal pós-apocalíptico o fará. Falemos antes das ridículas contradições a que tal mito dá ensejo e de que a "ficção cientifica" se faz eco regra geral bastante folclórico.
OBNUBILADOS COM A SERINGA
Num filme realizado por Boris Sagal, baseado no romance de Curt Siodmark - Hauser's Memory - evidencia-se a ridícula convicção de que toda a complexidade dos fenómenos humanos (psíquicos, na emergência) será redutível a uma contagem, a um cálculo, a uma operação aritmética.
Daí a convicção de que tudo, no futuro, será computarizável e de que a viagem na memória, por exemplo (para nos fixarmos no evento que a tal novela foca ) será pura e simplesmente conseguida por via intravenosa.
Os cientistas destas ficções vivem obnubilados com a seringa. Injecta-se e já está. Que Robert Louis Stevenson não tivesse imaginado no seu ingénua Dr. Jekyll and Mr. Hyde coisa diferente de um líquido injectável, à base do qual se operava uma mutação da personalidade, enfim, estávamos nos tempos eufóricos da "retórica da retorta". Tudo - toda a omnipotência da ciência - convertia na retorta. Ou na seringa. Ou em qualquer coisinha assim prática, assim à mão de semear.
Mas tal ingenuidade é ainda hoje a dos novelistas de amanhã, e (o que é pior) nem só dos novelistas. É dos que possivelmente se consideram técnicos e se arrogam uma mentalidade rigorosamente científica.
Porque a mesma "psicose da seringa" é extensível a outros domínios, sejam os da medicação terapêutica, sejam os da ministração de droga estupefaciente e alucinogénea. A determinante, ao fim e ao cabo, é sempre a do consumo: tudo está facilitado para o provocar, tudo está previsto - em nome da ciência, claro! - para convidar o consumidor a meter no corpinho toda e qualquer mistela que a indústria inventa.
Depois da retorta com fervilhantes líquidos aos pulos lá dentro, a seringa hipodérmica tornou-se um dos símbolos de toda uma mitologia que julga (ou não julga?) responder à complexidade das coisas humanas (do corpo, esse infinito) com a mesma superficialidade epidérmica e hipodérmica com que tem respondido ao simplório das coisas não humanas.
A mesma falta de respeito pela vida e, acima de tudo, a mesma falta de imaginação para inventar outras hipóteses (de trabalho), outras vias (de estudo), outras soluções, outros caminhos de investigação (que não sejam os do consumismo para o consumismo): eis o que simboliza o signo da seringa. Seringa, automóvel, boca - são três signos simbólicos da civilização do objecto, que a é também do dejecto (este implícito no da boca).
Civilização que reduz essa aventura magnífica e maravilhosa que é a da existência humana ao acto inverosímil de tudo engolir, tudo absorver, tudo injectar, tudo consumir, em suma. Como se existir fosse consumir.
E no mito da mensurabilidade se pode ir buscar a origem «semântica» do pan-consumismo. Quem tiver imaginação que tire as ilacções devidas.
----
(*) Este texto de Afonso Cautela, menos vergonhoso do que outros destes anos 70, não sei se chegou a ser publicado e se já passou pelo scan
MITOLOGIAS DE CONSUMO(*)
5-8-1972 - Os mitos da ciência têm que se lhes diga. E tanto faz que venham de Leste como de Oeste, a fancaria é quase sempre a mesma.
Até há pouco o mito do crescimento económico (a que se chamou também progresso, "tout court") era daqueles que ninguém podia questionar, sob pena de morte. Agora, como são os próprios funcionários do sistema a questioná-lo, a coisa já passa, já não se ameaça com pena de morte aquele que ouse pôr em dúvida a omnipotência da técnica, capítulo aliás de toda uma mitologia imbecil que, em nome da ciência, da técnica, do progresso e não sei de que mais, gerações de funcionários (do Sistema) nos andaram e andam impingindo.
Como é óbvio, a novelística chamada de ficção-científica revela esses mitos e, embora de maneira romanceada (ou exactamente por isso), não deixa de os denunciar na sua vileza, melhor mesmo do que o faria outra literatura, quiçá mais técnica, mais especializada, mais ortodoxa.
Um dos mitos que continuam intocáveis mas que (tenhamos esperança) mais dia menos dia terá de sofrer o mesmo processo de contestação já iniciado contra o mito do crescimento económico, é o da "mensurabilidade" .
Tudo se pode medir: Eis a crença em que se baseia toda a ciência. A matéria humana também e as ciências humanas, portanto, terão que submeter-se à mesma histeria de pesos e medidas que invadiu as ciências físicas, as ciências do inorgânico em geral.
Quer dizer: o mito da mensurabilidade o que fez foi, pura e simplesmente, submeter o superior ao inferior.
Todas as ciências humanas baseadas no mito da mensurabilidade são um rebaixamento do humano. E isso é verificável na prática, muito mais na prática do que teoricamente.
Sobre a criminalidade que este mito tem provocado não falemos agora. Um tribunal pós-apocalíptico o fará. Falemos antes das ridículas contradições a que tal mito dá ensejo e de que a "ficção cientifica" se faz eco regra geral bastante folclórico.
OBNUBILADOS COM A SERINGA
Num filme realizado por Boris Sagal, baseado no romance de Curt Siodmark - Hauser's Memory - evidencia-se a ridícula convicção de que toda a complexidade dos fenómenos humanos (psíquicos, na emergência) será redutível a uma contagem, a um cálculo, a uma operação aritmética.
Daí a convicção de que tudo, no futuro, será computarizável e de que a viagem na memória, por exemplo (para nos fixarmos no evento que a tal novela foca ) será pura e simplesmente conseguida por via intravenosa.
Os cientistas destas ficções vivem obnubilados com a seringa. Injecta-se e já está. Que Robert Louis Stevenson não tivesse imaginado no seu ingénua Dr. Jekyll and Mr. Hyde coisa diferente de um líquido injectável, à base do qual se operava uma mutação da personalidade, enfim, estávamos nos tempos eufóricos da "retórica da retorta". Tudo - toda a omnipotência da ciência - convertia na retorta. Ou na seringa. Ou em qualquer coisinha assim prática, assim à mão de semear.
Mas tal ingenuidade é ainda hoje a dos novelistas de amanhã, e (o que é pior) nem só dos novelistas. É dos que possivelmente se consideram técnicos e se arrogam uma mentalidade rigorosamente científica.
Porque a mesma "psicose da seringa" é extensível a outros domínios, sejam os da medicação terapêutica, sejam os da ministração de droga estupefaciente e alucinogénea. A determinante, ao fim e ao cabo, é sempre a do consumo: tudo está facilitado para o provocar, tudo está previsto - em nome da ciência, claro! - para convidar o consumidor a meter no corpinho toda e qualquer mistela que a indústria inventa.
Depois da retorta com fervilhantes líquidos aos pulos lá dentro, a seringa hipodérmica tornou-se um dos símbolos de toda uma mitologia que julga (ou não julga?) responder à complexidade das coisas humanas (do corpo, esse infinito) com a mesma superficialidade epidérmica e hipodérmica com que tem respondido ao simplório das coisas não humanas.
A mesma falta de respeito pela vida e, acima de tudo, a mesma falta de imaginação para inventar outras hipóteses (de trabalho), outras vias (de estudo), outras soluções, outros caminhos de investigação (que não sejam os do consumismo para o consumismo): eis o que simboliza o signo da seringa. Seringa, automóvel, boca - são três signos simbólicos da civilização do objecto, que a é também do dejecto (este implícito no da boca).
Civilização que reduz essa aventura magnífica e maravilhosa que é a da existência humana ao acto inverosímil de tudo engolir, tudo absorver, tudo injectar, tudo consumir, em suma. Como se existir fosse consumir.
E no mito da mensurabilidade se pode ir buscar a origem «semântica» do pan-consumismo. Quem tiver imaginação que tire as ilacções devidas.
----
(*) Este texto de Afonso Cautela, menos vergonhoso do que outros destes anos 70, não sei se chegou a ser publicado e se já passou pelo scan
<< Home