VARÍOLA 1972
1-2 - 72-05-16-ie-bd> = ideia ecológica = bibliografa doméstica - scan domingo, 17 de Novembro de 2002 – agora mesmo...
AGORA A VARÍOLA (*)
[16 de Maio de 1972] - Com o alarme habitual, ateia-se de novo, por causa da varíola, a psicose dramática anti-vírus, anti-endemia. Estamos à mercê, pois e mais uma vez, de um microscópico animalejo e, acesa a luz ver-melha, as agências esclarecem, os aeroportos reforçam medidas de vigilância sanitária e os países proíbem terminantemente a entrada de forasteiros.
Foco dos focos, Bangla Desh. Relacionar com as chacinas recentes ocorridas nesse território, não é com as agências. As agências telegrafam, não relacionam. Mas atenção à Reuter, que é explícita:
«Genebra, 29 - A Organização de Saúde anunciou que os seus representantes no Bangla Desh as-sinalaram ali 1077 casos de varíola, desde Fevereiro.
No entanto, um informador disse que não se trata de uma epidemia, uma vez que a varíola é endémica naquela região.
Ontem foi anunciado em Dacca que pelo menos 225 pessoas tinham morrido num só distrito do Bangla Uesh, em consequência do alastramento da doença.
A varíola é endémica também no Paquistão, na Índia, na Etiópia e no Sudão.»
Várias lições, todas elas morais, se podem extrair deste valioso telegrama genebrino.
1ª - Desde Fevereiro que no Bangla Desh morriam de varíola às centenas, mas nem Reuter, nem OMS, se ocupavam do facto, já tão banal, tão rotineiro nessas remotas paragens de gente infecciosamente inferior e infeliz;
2.ª - O caso, por ali, de tão endémico já, como o ar que se respira, a fome que se grama, a doença que alastra, etc., etc., de tão fatal, não move telexs nem agências: a rotina não é notícia e, onde se morre por rotina, quem vai telegrafar?
3.ª - A coisa já em Fevereiro alastrava ali, na península industânica, enorme como um continente, mas quem se preocupa com esse mundo perdido do terceiro mundo: ainda que o mais populoso da terra ?
4.ª - Quando a coisa aporta às capitais climatizadas da super-civilizada Europa, bem alimentadinha de tudo o que é bom, ah! então os telexs desatam numa berraria, agitam-se as OMS que, sempre solícitas, debitam estatísticas, emanam comunicados, etc., etc.. Fecham-se países à chave, aeroportos ficam de quarentena e tudo se mobiliza no combate ao vírus.
Pois: mas Bangla Desh continuará a ser foco dos focos. Esquece-mos isso, porque lembrá-lo seria aguçar a nossa má consciência. Enquanto a varíola não veio providencialmente (como a víbora de Cleópatra) morder-nos no seio, a gente respirou. Agora impa. E logo que ela morde, a gente grita «oh da guarda».
Não me dá prazer nenhum verificar estas infecciosas contradições e ver uma civilização (tão orgulhosa de si) tão descoberta e tão impotente, frente ao ataque de uma microscópica criatura viva. Para uma civilização que se auto-valoriza só em termos quantitativos, tudo isto é humilhante a partir dos próprios pressupostos que ela va-loriza. Repete-se a história do Golias contra o Gigante.
E nada, a não ser uma grande barafunda de comunicados cruzados, se pode fazer para evitar que as crónicas futuras dos marcianos sobre esta extinta civilização terrestre aludam a um contrasenso: uma civilização que manda homens à Lua e se deixa dizimar por coisas tão inocentes, tão minúsculas, tão ridiculamente sem peso que são os germes portadores da gripe, da cólera ou da varíola.
Concluirá o marciano historiador do Ano 2.000, entre outras coisas, que algo estava bastante pró podre neste reino da Dinamarca da (Abjecta) civilização do Número: e alguma coisa haveria a mudar no critério valorativo que sempre a guiou, qual era ele: o mais importante, pesa mais.
Conclusão minha, por agora: os pequenos nadas (têm de o admitir, senhores tecnocratas!) podem vir a ser o grande tudo. Já Lao Tse e Buda o sabiam, no entanto. Há uns bons milhares de anos, com licença de Vossas Excelências.
- - - -
(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado, com este título, no «Diário de Coimbra» , na coluna «diário de um sobrevivente», em 16 de Maio de 1972
AGORA A VARÍOLA (*)
[16 de Maio de 1972] - Com o alarme habitual, ateia-se de novo, por causa da varíola, a psicose dramática anti-vírus, anti-endemia. Estamos à mercê, pois e mais uma vez, de um microscópico animalejo e, acesa a luz ver-melha, as agências esclarecem, os aeroportos reforçam medidas de vigilância sanitária e os países proíbem terminantemente a entrada de forasteiros.
Foco dos focos, Bangla Desh. Relacionar com as chacinas recentes ocorridas nesse território, não é com as agências. As agências telegrafam, não relacionam. Mas atenção à Reuter, que é explícita:
«Genebra, 29 - A Organização de Saúde anunciou que os seus representantes no Bangla Desh as-sinalaram ali 1077 casos de varíola, desde Fevereiro.
No entanto, um informador disse que não se trata de uma epidemia, uma vez que a varíola é endémica naquela região.
Ontem foi anunciado em Dacca que pelo menos 225 pessoas tinham morrido num só distrito do Bangla Uesh, em consequência do alastramento da doença.
A varíola é endémica também no Paquistão, na Índia, na Etiópia e no Sudão.»
Várias lições, todas elas morais, se podem extrair deste valioso telegrama genebrino.
1ª - Desde Fevereiro que no Bangla Desh morriam de varíola às centenas, mas nem Reuter, nem OMS, se ocupavam do facto, já tão banal, tão rotineiro nessas remotas paragens de gente infecciosamente inferior e infeliz;
2.ª - O caso, por ali, de tão endémico já, como o ar que se respira, a fome que se grama, a doença que alastra, etc., etc., de tão fatal, não move telexs nem agências: a rotina não é notícia e, onde se morre por rotina, quem vai telegrafar?
3.ª - A coisa já em Fevereiro alastrava ali, na península industânica, enorme como um continente, mas quem se preocupa com esse mundo perdido do terceiro mundo: ainda que o mais populoso da terra ?
4.ª - Quando a coisa aporta às capitais climatizadas da super-civilizada Europa, bem alimentadinha de tudo o que é bom, ah! então os telexs desatam numa berraria, agitam-se as OMS que, sempre solícitas, debitam estatísticas, emanam comunicados, etc., etc.. Fecham-se países à chave, aeroportos ficam de quarentena e tudo se mobiliza no combate ao vírus.
Pois: mas Bangla Desh continuará a ser foco dos focos. Esquece-mos isso, porque lembrá-lo seria aguçar a nossa má consciência. Enquanto a varíola não veio providencialmente (como a víbora de Cleópatra) morder-nos no seio, a gente respirou. Agora impa. E logo que ela morde, a gente grita «oh da guarda».
Não me dá prazer nenhum verificar estas infecciosas contradições e ver uma civilização (tão orgulhosa de si) tão descoberta e tão impotente, frente ao ataque de uma microscópica criatura viva. Para uma civilização que se auto-valoriza só em termos quantitativos, tudo isto é humilhante a partir dos próprios pressupostos que ela va-loriza. Repete-se a história do Golias contra o Gigante.
E nada, a não ser uma grande barafunda de comunicados cruzados, se pode fazer para evitar que as crónicas futuras dos marcianos sobre esta extinta civilização terrestre aludam a um contrasenso: uma civilização que manda homens à Lua e se deixa dizimar por coisas tão inocentes, tão minúsculas, tão ridiculamente sem peso que são os germes portadores da gripe, da cólera ou da varíola.
Concluirá o marciano historiador do Ano 2.000, entre outras coisas, que algo estava bastante pró podre neste reino da Dinamarca da (Abjecta) civilização do Número: e alguma coisa haveria a mudar no critério valorativo que sempre a guiou, qual era ele: o mais importante, pesa mais.
Conclusão minha, por agora: os pequenos nadas (têm de o admitir, senhores tecnocratas!) podem vir a ser o grande tudo. Já Lao Tse e Buda o sabiam, no entanto. Há uns bons milhares de anos, com licença de Vossas Excelências.
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(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado, com este título, no «Diário de Coimbra» , na coluna «diário de um sobrevivente», em 16 de Maio de 1972
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