ADOECER 1961
61-05-06-sa> = selecção autobiográfica - chave ac para 1961 - o livro do desassossego em reedição
SER DOENTE
Tavira, 6 de Maio de 1961
Não vejo necessidade de «joeirar os grãos surrealistas» que possa ter. Não sei, aliás, o que seja surrealismo e apenas dou por conhecidos e amigos alguns poetas de quem a propaganda literária ou o jornalismo irresponsável disse serem surrealistas.
Se Lautréamont, se Rimbaud, se Jarry, se Sade (digo Sade, não digo Sartre), se Artaud, se Bousquet, se Michaux, se Prévert, se Raul de Carvalho, se O’Neill e Cesariny são, porventura, surrealistas ou surrealizantes, acontece que estão neles alguns dos meus companheiros inseparáveis; e nesse caso posso, com eles, ser surrealista.
Também George Bataille e Blanchot, ao que parece, manifestam afinidades surrealistas e acontece que são meus ensaístas de cabeceira. Joeirar-me disso, curar-me deles? Eis uma petição de princípio, porque intoxicado de uma literatura literata estava eu e foram precisos muitos anos perdidos para me encontrar nestes raros companheiros em que me encontrei.
A doença ou saúde de cada um, bem assim a normalidade ou anormalidade, depende muito do ponto de vista, e ainda há-de vir o primeiro génio capaz de resolver satisfatoriamente o problema. Louco, doente, anormal, desviado, out-sider, knok-out - eis tudo conceitos relativos, termos de posição em relação a outra posição fixa e convencionalizada.
Atitude objectiva, positiva e científica parece-me ser a que atende à relatividade sejamos todos Einstein!) sem se deixar influir pela convencionalidade dos conceitos e hábitos mentais.
Relativamente a um livro ou a um corpo (e um livro não será um corpo, um corpo que pode adoecer?...), importa pouco sabê-lo são ou doente. Importa pouco, se com isso queremos arrumar o assunto e desde que se queira, ao classificá-lo de doente, impor um juízo definitivo e condenatório, pejorativo e dogmático.
Ser doente é uma forma de ser. Mais importante, pelo menos, que todas as formas de parecer que o nosso quotidiano comporta: as adopções ideológicas, políticas, profissionais, partidárias, rotineiras, que não passam da epiderme e que afinal nos alimentam como se da nossa mais profunda e verdadeira substância se tratasse.
Ser doente, unifica, clarifica, polariza as energias físicas e anímicas, em vez de as dispersar e degradar.
Ser doente, define uma condição de estruturas, afecta o ser vivo na sua totalidade, na sua origem, no seu núcleo e na sua escatologia.
Ser doente modifica a óptica epistemológica da vítima, o seu aparelho de ver , perceber e pensar o mundo, bem assim mecanismo de acção e ataque sobre o mesmo mundo.
Ser doente, significa sofrer uma experiência irredutível e necessária, significa saber o peso ou gravidade do necessário e por isso aquilatar do valor e gravidade do livre (necessidade e liberdade determinam-se).
Ser doente, implica una das formas de intromissão do relativo no absoluto, do natural no sobrenatural, do físico no psíquico e reciprocamente.
Eis porque considero os meus livros censuráveis na medida em que não são tão doentes como deveriam ser e que neles transpira muito ainda de uma pretensa atmosfera optimista, humanista ou saudável que me é profundamente desgostante.
Agradeço-lhe a sugestão que me deu para reflectir sobre estas coisas e a paciência que teve agora em lê-las. Aceite as saudações gratas e a camaradagem ao dispor do
Afonso Cautela
***
SER DOENTE
Tavira, 6 de Maio de 1961
Não vejo necessidade de «joeirar os grãos surrealistas» que possa ter. Não sei, aliás, o que seja surrealismo e apenas dou por conhecidos e amigos alguns poetas de quem a propaganda literária ou o jornalismo irresponsável disse serem surrealistas.
Se Lautréamont, se Rimbaud, se Jarry, se Sade (digo Sade, não digo Sartre), se Artaud, se Bousquet, se Michaux, se Prévert, se Raul de Carvalho, se O’Neill e Cesariny são, porventura, surrealistas ou surrealizantes, acontece que estão neles alguns dos meus companheiros inseparáveis; e nesse caso posso, com eles, ser surrealista.
Também George Bataille e Blanchot, ao que parece, manifestam afinidades surrealistas e acontece que são meus ensaístas de cabeceira. Joeirar-me disso, curar-me deles? Eis uma petição de princípio, porque intoxicado de uma literatura literata estava eu e foram precisos muitos anos perdidos para me encontrar nestes raros companheiros em que me encontrei.
A doença ou saúde de cada um, bem assim a normalidade ou anormalidade, depende muito do ponto de vista, e ainda há-de vir o primeiro génio capaz de resolver satisfatoriamente o problema. Louco, doente, anormal, desviado, out-sider, knok-out - eis tudo conceitos relativos, termos de posição em relação a outra posição fixa e convencionalizada.
Atitude objectiva, positiva e científica parece-me ser a que atende à relatividade sejamos todos Einstein!) sem se deixar influir pela convencionalidade dos conceitos e hábitos mentais.
Relativamente a um livro ou a um corpo (e um livro não será um corpo, um corpo que pode adoecer?...), importa pouco sabê-lo são ou doente. Importa pouco, se com isso queremos arrumar o assunto e desde que se queira, ao classificá-lo de doente, impor um juízo definitivo e condenatório, pejorativo e dogmático.
Ser doente é uma forma de ser. Mais importante, pelo menos, que todas as formas de parecer que o nosso quotidiano comporta: as adopções ideológicas, políticas, profissionais, partidárias, rotineiras, que não passam da epiderme e que afinal nos alimentam como se da nossa mais profunda e verdadeira substância se tratasse.
Ser doente, unifica, clarifica, polariza as energias físicas e anímicas, em vez de as dispersar e degradar.
Ser doente, define uma condição de estruturas, afecta o ser vivo na sua totalidade, na sua origem, no seu núcleo e na sua escatologia.
Ser doente modifica a óptica epistemológica da vítima, o seu aparelho de ver , perceber e pensar o mundo, bem assim mecanismo de acção e ataque sobre o mesmo mundo.
Ser doente, significa sofrer uma experiência irredutível e necessária, significa saber o peso ou gravidade do necessário e por isso aquilatar do valor e gravidade do livre (necessidade e liberdade determinam-se).
Ser doente, implica una das formas de intromissão do relativo no absoluto, do natural no sobrenatural, do físico no psíquico e reciprocamente.
Eis porque considero os meus livros censuráveis na medida em que não são tão doentes como deveriam ser e que neles transpira muito ainda de uma pretensa atmosfera optimista, humanista ou saudável que me é profundamente desgostante.
Agradeço-lhe a sugestão que me deu para reflectir sobre estas coisas e a paciência que teve agora em lê-las. Aceite as saudações gratas e a camaradagem ao dispor do
Afonso Cautela
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