UTOPIA 1986
ta-1> os dossiês do silêncio - discurso envenenado
NOVAS TECNOLOGIAS: MAS QUAIS?
3/5/1986 - Os novos tecnocratas ou ambientocratas são mais subtis do que os de ontem. Enfeitam-se com a vanguarda das «novas energias» e «novas tecnologias». Ora as «novas tecnologias» podem ser, evidentemente, encaradas como a reconversão in extremis do sistema imperialista mundial, o único a estar efectivamente em crise. Abandonar os sistemas tecnológicos actuais, pondo todo o mundo a comprar novos, a pretexto de que são ecológicos, biológicos e fazem bem ao ambiente, eis uma neo-estratégia que não pode deixar de entusiasmar os ecotecnocratas, a que, mais limpidamente, Michel Bosquet chama ecofascistas.
Alguém, por exemplo, dirá que «álcool combustível não é poluente». Dirá um outro que o nuclear não deita fumo nem produz dióxido de carbono, esse «terrível veneno».
E o discurso poluído da antipoluição prossegue, poluindo os cérebros.
A retórica da poluição (e respectiva anti-poluição) conduz, como se vê, à reconversão directa do sistema, permitindo instalar uma indústria anti poluição, ambientocrata, falsamente alternativa e abrindo um novo mercado de «novas tecnologias.
Se a poluição fosse critério para definir uma escolha ecológica, bem se podia perguntar: será a exploração do homem pelo homem poluente? E o fascismo, será poluente?
Poluente, antes de mais nada, é o discurso com que nos envenenam. Mitos, sofismas, eufemismos, mentiras, demagogia: as poluições mais mortíferas.
É pela análise e crítica destas «poluições» que começa o realismo ecológico.
A prática de agricultura natural e biológica, o uso das eco-energias e das tecnologias intermédias, tem mais a ver com uma posição filosófica ou moral perante a vida do que com a ciência e sua suposta neutralidade.
O grande problema é que essas tecnologias, enquanto tal, podem servir perfeitamente o sistema existente, e particularmente podem servir para o capitalismo ganhar novo fôlego, na medida em que as alternativas, nomeadamente no campo energético, permitem uma reconversão de mercado para as economias energívoras agonizantes.
São, afinal, novos mercados que se abrem: nada impede assim que uma empresa de energia nuclear ou petrolífera esteja a investir, já, no fomento das energias limpas e infinitas.
Jogam estas multinacionais nas energias da destruição e do apocalipse, mas jogam também nas energias que já são parte intrínseca dos que estão tentando construir o ainda possível mundo de amanhã.
Livres, leves e limpas serão as energias, tecnologias e indústrias de um mundo (futura e necessariamente) civilizado, um mundo que suceda à barbárie dos 5 M.
As alternativas ecológicas na Agricultura, na Energia, na Medicina, correm este risco: são usurpadas com a maior facilidade pelo sistema do desperdício que adapta então à direita e à esquerda as teses de uma ecologia que não tem esquerda nem direita.
TECNOLOGIAS APROPRIADAS
As respostas do realismo ecológico (à crise) são por natureza plurais e diversificadas. São parciais e não totalitárias, democráticas e não estatais.
Não se deposita a esperança num sistema, numa engrenagem, numa instituição ou num messias salvador, não se exige que seja o Estado a fazer e a resolver tudo, mas aos homens enquanto pessoas, a cada grupo de homens enquanto comunidade democrática fica o encargo de se organizarem para praticar as tecnologias apropriadas e as alternativas possíveis.
Não se trata de salvar a pátria ou o mundo de uma penada, como dizem fazer as ideologias revolucionárias - de dar a felicidade total ao povo de uma vez por todas, de engendrar, por milagre totalitário, a transformação ou mudança prometida, de transmutar magicamente todo o mal em bem total.
«Vamos contribuindo para...», vamos dando passos pequenos mas seguros e, principalmente, irreversíveis: é o lema. Vamos semeando, vamos somando, parcela e parcela, libertando passo a passo, emancipando pessoa a pessoa, cada um às suas próprias mãos.
Seja qual for o sistema, o regime, o governo, o partido, a coligação que estiver no poder, trata-se de exercitar cada vez melhor e um número cada vez maior de pessoas nas tecnologias apropriadas.
Comecemos pelo A B C.
As tecnologias apropriadas a que se chama, no mundo moderno, «alfabetização», revelam até que ponto é restritivo esse conceito de alfabetização mas, por outro lado, mostra também como as tecnologias apropriadas não são uma novidade, uma inovação recente, mas coexistem com as técnicas de alienação.
Escrever, Ler e Contar são, com efeito e sem dúvida, tecnologias libertadoras básicas: e a nossa admiração é que elas, também elas, não tenham já sido banidas do (nosso) sistema escolar, feito para escravizar as pessoas ao sistema.
Mas só com esta alfabetização elementar também não se formam homens para a liberdade, para a democracia, para o «self-government» e para a auto-suficiência.
A instrução básica, como diria um iluminista de novecentos, inclui hoje outras tecnologias apropriadas. Centenas de «TA.».
TÉCNICAS PERSONALIZADAS
Sempre no pressuposto de que a «revolução cultural» começará por ser uma revolução pedagógica, é indispensável que o sistema escolar se diversifique e maleabilize, de forma a preparar as pessoas para as tarefas que, enquanto pessoas, têm que realizar.
Como se calcula, é aqui que se abre o abismo com o sistema escolar vigente. Na sua quase totalidade, ele prepara as pessoas para as transformar em servidores funcionários e funcionais do sistema.
O que se pressupõe, como reivindicação prioritária, é uma Escola aberta e Livre, não comprometida com o sistema mas com as pessoas enquanto tal, com os cidadãos enquanto células vivas da democracia viva, células do tecido social.
Á escola aberta, ecológica ou democrática, cabe abrir brecha no sistema monolítico, na sociedade unidimensional, encarregada de reproduzir o sistema até ao infinito.
Quase inconcebível num Estado moderno - preocupado em manipular as pessoas para que sigam, obedientes, servindo servilmente o sistema - a Escola aberta é a aposta e a proposta ecológica por excelência.
Dela decorrem as propostas centrais que a caminhada para a sociedade ecológica implica:
Renascimento Rural.
Reciclagem sistemática de resíduos, desperdícios e materiais.
Técnicas de cooperativismo activo.
Organização (tácita ou explícita) de uma Oposição Crítica Radical ao sistema vigente.
Técnicas de apropriação de cultura agrícola ecológica.
Aproveitamento das leis existentes favoráveis à defesa pontual ou sectorial do ambiente, da natureza, da segurança, etc.
DEFRONTAR UM DOGMA
O projecto ecológico é, por natureza e na sua máxima extensão, pedagógico. Ou, se quiserem, informativo. É no mundo da comunicação, em sentido lato, que se decidirá a subversão ou alteração de fundo da ordem estabelecida: quer dizer, o sistema que assassina os ecossistemas.
É na área da informação ou da comunicação que se trava a batalha ecológica, que aposta na transformação da superestrutura, independentemente das infra-estruturas estarem ou não a caminho da mudança.
Mas como se sabe, isto é afrontar um dos dogmas mais poderosos da ideologia marxista, que faz depender toda a superestrutura das infra-estruturas económicas.
A «utopia» de António Sérgio radica aí, no afrontamento desse dogma, e volta até nós com o projecto ecologista, que alguns, certa ou erradamente, classificam de neo-franciscanismo, mudar os homens para mudar a humanidade.
Tal como António Sérgio, acreditamos na «reforma das mentalidades» para a transformação da sociedade portuguesa. O sentido das palavras sergianas talvez tenha que ser apurado e depurado, adequando-o aos tempos de hoje, menos racionalistas e mais humanistas. Mas, na essência, as categorias básicas do seu pensamento e do seu projecto pedagógico, permanecem no ecologismo de 1983, quanto às respostas e propostas práticas, às apostas da opção ecologista.
QUE FAZER?
Onde estão as chaves, respostas ou soluções?
Para o habitante da cidade, prisioneiro da engrenagem urbana, a resposta é Renascimento Rural.
Para o consumidor alienado a produtos tóxicos e cancerígenos, a resposta é produção descentralizada e biológica à medida do homem.
Para o cidadão eleitor que se limita a pôr nas urnas o voto, a solução, alternativa, resposta ou chave, é autogestão dos meios de produção, auto-organização com outros cidadãos por afinidades de base, autarcia, independência local.
Para o aluno alienado à escola teórica, dogmática, mnemónica, a alternativa é a escola paralela, prática, de tecnologias apropriadas, energias suavas, aprendizagem de autocontrole.
Para o funcionário cansado de ser um número no rebanho, a solução ou alternativa é um sindicato de revoltados e descontentes, um sindicato de desempregados, um sindicato de marginalizados pelo sistema.
Para o desempregado, a solução alternativa é formar um sindicato de desocupados, tal como todas as outras vítimas da engrenagem trituradora; peão, consumidor, aluno, paciente, doente, eleitor, munícipe, etc.
Para todos em geral e para o ecologista em particular - a alternativa é aprender a ler criticamente a vida e o mundo, não ter medo de doutores, cientistas, técnicos, engenheiros, médicos, professores, advogados, e outros animais ferozes, atrever-se a pensar pela própria cabeça.
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(*) Publicado no jornal «A Capital» (Crónica do Planeta Terra), 3/5/1986
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NOVAS TECNOLOGIAS: MAS QUAIS?
3/5/1986 - Os novos tecnocratas ou ambientocratas são mais subtis do que os de ontem. Enfeitam-se com a vanguarda das «novas energias» e «novas tecnologias». Ora as «novas tecnologias» podem ser, evidentemente, encaradas como a reconversão in extremis do sistema imperialista mundial, o único a estar efectivamente em crise. Abandonar os sistemas tecnológicos actuais, pondo todo o mundo a comprar novos, a pretexto de que são ecológicos, biológicos e fazem bem ao ambiente, eis uma neo-estratégia que não pode deixar de entusiasmar os ecotecnocratas, a que, mais limpidamente, Michel Bosquet chama ecofascistas.
Alguém, por exemplo, dirá que «álcool combustível não é poluente». Dirá um outro que o nuclear não deita fumo nem produz dióxido de carbono, esse «terrível veneno».
E o discurso poluído da antipoluição prossegue, poluindo os cérebros.
A retórica da poluição (e respectiva anti-poluição) conduz, como se vê, à reconversão directa do sistema, permitindo instalar uma indústria anti poluição, ambientocrata, falsamente alternativa e abrindo um novo mercado de «novas tecnologias.
Se a poluição fosse critério para definir uma escolha ecológica, bem se podia perguntar: será a exploração do homem pelo homem poluente? E o fascismo, será poluente?
Poluente, antes de mais nada, é o discurso com que nos envenenam. Mitos, sofismas, eufemismos, mentiras, demagogia: as poluições mais mortíferas.
É pela análise e crítica destas «poluições» que começa o realismo ecológico.
A prática de agricultura natural e biológica, o uso das eco-energias e das tecnologias intermédias, tem mais a ver com uma posição filosófica ou moral perante a vida do que com a ciência e sua suposta neutralidade.
O grande problema é que essas tecnologias, enquanto tal, podem servir perfeitamente o sistema existente, e particularmente podem servir para o capitalismo ganhar novo fôlego, na medida em que as alternativas, nomeadamente no campo energético, permitem uma reconversão de mercado para as economias energívoras agonizantes.
São, afinal, novos mercados que se abrem: nada impede assim que uma empresa de energia nuclear ou petrolífera esteja a investir, já, no fomento das energias limpas e infinitas.
Jogam estas multinacionais nas energias da destruição e do apocalipse, mas jogam também nas energias que já são parte intrínseca dos que estão tentando construir o ainda possível mundo de amanhã.
Livres, leves e limpas serão as energias, tecnologias e indústrias de um mundo (futura e necessariamente) civilizado, um mundo que suceda à barbárie dos 5 M.
As alternativas ecológicas na Agricultura, na Energia, na Medicina, correm este risco: são usurpadas com a maior facilidade pelo sistema do desperdício que adapta então à direita e à esquerda as teses de uma ecologia que não tem esquerda nem direita.
TECNOLOGIAS APROPRIADAS
As respostas do realismo ecológico (à crise) são por natureza plurais e diversificadas. São parciais e não totalitárias, democráticas e não estatais.
Não se deposita a esperança num sistema, numa engrenagem, numa instituição ou num messias salvador, não se exige que seja o Estado a fazer e a resolver tudo, mas aos homens enquanto pessoas, a cada grupo de homens enquanto comunidade democrática fica o encargo de se organizarem para praticar as tecnologias apropriadas e as alternativas possíveis.
Não se trata de salvar a pátria ou o mundo de uma penada, como dizem fazer as ideologias revolucionárias - de dar a felicidade total ao povo de uma vez por todas, de engendrar, por milagre totalitário, a transformação ou mudança prometida, de transmutar magicamente todo o mal em bem total.
«Vamos contribuindo para...», vamos dando passos pequenos mas seguros e, principalmente, irreversíveis: é o lema. Vamos semeando, vamos somando, parcela e parcela, libertando passo a passo, emancipando pessoa a pessoa, cada um às suas próprias mãos.
Seja qual for o sistema, o regime, o governo, o partido, a coligação que estiver no poder, trata-se de exercitar cada vez melhor e um número cada vez maior de pessoas nas tecnologias apropriadas.
Comecemos pelo A B C.
As tecnologias apropriadas a que se chama, no mundo moderno, «alfabetização», revelam até que ponto é restritivo esse conceito de alfabetização mas, por outro lado, mostra também como as tecnologias apropriadas não são uma novidade, uma inovação recente, mas coexistem com as técnicas de alienação.
Escrever, Ler e Contar são, com efeito e sem dúvida, tecnologias libertadoras básicas: e a nossa admiração é que elas, também elas, não tenham já sido banidas do (nosso) sistema escolar, feito para escravizar as pessoas ao sistema.
Mas só com esta alfabetização elementar também não se formam homens para a liberdade, para a democracia, para o «self-government» e para a auto-suficiência.
A instrução básica, como diria um iluminista de novecentos, inclui hoje outras tecnologias apropriadas. Centenas de «TA.».
TÉCNICAS PERSONALIZADAS
Sempre no pressuposto de que a «revolução cultural» começará por ser uma revolução pedagógica, é indispensável que o sistema escolar se diversifique e maleabilize, de forma a preparar as pessoas para as tarefas que, enquanto pessoas, têm que realizar.
Como se calcula, é aqui que se abre o abismo com o sistema escolar vigente. Na sua quase totalidade, ele prepara as pessoas para as transformar em servidores funcionários e funcionais do sistema.
O que se pressupõe, como reivindicação prioritária, é uma Escola aberta e Livre, não comprometida com o sistema mas com as pessoas enquanto tal, com os cidadãos enquanto células vivas da democracia viva, células do tecido social.
Á escola aberta, ecológica ou democrática, cabe abrir brecha no sistema monolítico, na sociedade unidimensional, encarregada de reproduzir o sistema até ao infinito.
Quase inconcebível num Estado moderno - preocupado em manipular as pessoas para que sigam, obedientes, servindo servilmente o sistema - a Escola aberta é a aposta e a proposta ecológica por excelência.
Dela decorrem as propostas centrais que a caminhada para a sociedade ecológica implica:
Renascimento Rural.
Reciclagem sistemática de resíduos, desperdícios e materiais.
Técnicas de cooperativismo activo.
Organização (tácita ou explícita) de uma Oposição Crítica Radical ao sistema vigente.
Técnicas de apropriação de cultura agrícola ecológica.
Aproveitamento das leis existentes favoráveis à defesa pontual ou sectorial do ambiente, da natureza, da segurança, etc.
DEFRONTAR UM DOGMA
O projecto ecológico é, por natureza e na sua máxima extensão, pedagógico. Ou, se quiserem, informativo. É no mundo da comunicação, em sentido lato, que se decidirá a subversão ou alteração de fundo da ordem estabelecida: quer dizer, o sistema que assassina os ecossistemas.
É na área da informação ou da comunicação que se trava a batalha ecológica, que aposta na transformação da superestrutura, independentemente das infra-estruturas estarem ou não a caminho da mudança.
Mas como se sabe, isto é afrontar um dos dogmas mais poderosos da ideologia marxista, que faz depender toda a superestrutura das infra-estruturas económicas.
A «utopia» de António Sérgio radica aí, no afrontamento desse dogma, e volta até nós com o projecto ecologista, que alguns, certa ou erradamente, classificam de neo-franciscanismo, mudar os homens para mudar a humanidade.
Tal como António Sérgio, acreditamos na «reforma das mentalidades» para a transformação da sociedade portuguesa. O sentido das palavras sergianas talvez tenha que ser apurado e depurado, adequando-o aos tempos de hoje, menos racionalistas e mais humanistas. Mas, na essência, as categorias básicas do seu pensamento e do seu projecto pedagógico, permanecem no ecologismo de 1983, quanto às respostas e propostas práticas, às apostas da opção ecologista.
QUE FAZER?
Onde estão as chaves, respostas ou soluções?
Para o habitante da cidade, prisioneiro da engrenagem urbana, a resposta é Renascimento Rural.
Para o consumidor alienado a produtos tóxicos e cancerígenos, a resposta é produção descentralizada e biológica à medida do homem.
Para o cidadão eleitor que se limita a pôr nas urnas o voto, a solução, alternativa, resposta ou chave, é autogestão dos meios de produção, auto-organização com outros cidadãos por afinidades de base, autarcia, independência local.
Para o aluno alienado à escola teórica, dogmática, mnemónica, a alternativa é a escola paralela, prática, de tecnologias apropriadas, energias suavas, aprendizagem de autocontrole.
Para o funcionário cansado de ser um número no rebanho, a solução ou alternativa é um sindicato de revoltados e descontentes, um sindicato de desempregados, um sindicato de marginalizados pelo sistema.
Para o desempregado, a solução alternativa é formar um sindicato de desocupados, tal como todas as outras vítimas da engrenagem trituradora; peão, consumidor, aluno, paciente, doente, eleitor, munícipe, etc.
Para todos em geral e para o ecologista em particular - a alternativa é aprender a ler criticamente a vida e o mundo, não ter medo de doutores, cientistas, técnicos, engenheiros, médicos, professores, advogados, e outros animais ferozes, atrever-se a pensar pela própria cabeça.
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(*) Publicado no jornal «A Capital» (Crónica do Planeta Terra), 3/5/1986
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