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2006-04-22

SISTEMA 1973

1-2 - 73-04-22-ie> =ideia ecológica - quinta-feira, 5 de Dezembro de 2002-scan

CARTA A MINHA FILHA (*)

(*) Este texto de Afonso Cautela, a que não retiro hoje uma vírgula, foi publicado no livro edição do autor, «Contributo à Revolução Ecológica», Paço de Arcos, 1976

22/Abril/1973 - Um dos temas predilectos glosados pelo inimigo da Revolução ecológica é o da recuperação da Resistência pelo Sistema.
É, por exemplo, o reaburguesamento dos "hippies", recuperados e transformados em atracção turística do município de Amesterdão, que a princípio os varria e depois os atraía, logo que descobriu o negócio; Bob Dylan recuperado e devorado pela indústria do disco que logo transformou o protesto ''pop'' num elemento decorativo dos salões burgueses; enfim, o ecologista acabará também por cair nas malhas, na sua condição de protesto minoritário, de resistente individual, já foi recuperado e está à venda, sob a forma de antipoluentes e estações de tratamento de dejectos industriais os mais diversos.
Por agora, não pretendo relacionar com outros aspectos e sublinho apenas este: é curioso como se critica rápida e acerbamente um erro ou um fracasso da Resistência, enquanto se omite e oculta as condições em que essa Resistência se efectua; enquanto se esquece de que é condição sine qua non dessa Resistência o erro e o relativo fracasso (Êxitos rotundos só o Sistema os obtém, pudera: êxitos principalmente nos crimes que ninguém critica).
Multiplica-se, porém. E é este fenómeno da multiplicação das minorias resistentes que o cronista de serviço ao serviço do Sistema finge ignorar. Se há um "hippy" que se aburguesa e joga o jogo do município de Amesterdão, há 20 ou 30 que nascem em outro lugar qualquer da Terra (para se aburguesar ou não, não importa).
Caminhar é errar. E quem caminha para a utopia, é natural que erre, que fraqueje, se a bocarra do Sistema está sempre pronta a engoli-lo, à espera que ele caia, fazendo tudo para que ele caia. Mas são assim todas as histórias de todas as resistências. Nem por isso deixam de ser e de terem razão de ser.
O facto de tudo me obrigar diariamente a entrar no jogo, e apesar de entrar no jogo sempre que a isso a estrita sobrevivência me obriga, não me leva a deixar de pensar como penso, antes pelo contrário; ou de escrever como escrevo, antes pelo contrário (e já que é escrever a minha verdadeira forma de agir, tudo o mais são tropismos de sobrevivência, com que engano os que desejariam suprimir-me).
E se alguma coisa me dá ganas de continuar vivo (para lá de todo o fastio e de todo o nojo de existir Nisto) é precisamente e unicamente a ideia de resistência ao Sistema, de o criticar e sabotar onde possível, de o denunciar.
Os que vierem depois e virem em que estado lhes deixaram o Mundo, saberão quem resistiu e como resistiu até aos limites do humanamente possível.
Assim tivessem resistido aqueles que no alto das suas tribunas vão debitando as suas crónicas sobre os "hippies" e sua traição, sobre os provos e sua deserção, sobre os ecomaníacos e a sua desistência.
É a única herança decente que se pode deixar a um filho: dizer-lhe que algo se fez para sustentar o rosto humano. Que se resistiu, enquanto se existiu.

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(*) Este texto de Afonso Cautela, a que não retiro hoje uma vírgula, foi publicado no livro edição do autor, «Contributo à Revolução Ecológica», Paço de Arcos, 1976
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