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2006-04-09

ABJECÇÃO 1970

1-3- 70-04-09-di = diário de ideias - 10-12-2002-scan

DEFINIÇÃO DE UM CRÍTICO ABJECCIONISTA 
OU A CRÍTICA DEFINIDA COMO CONTESTAÇÃO(*)


9-4-1970 - Na tentativa de tudo compreender e sem tomar posição definitiva, o crítico abjeccionista procura esboçar algumas formas assumidas pela abjecção e as formas de resistência que se lhe opõem: a resistência crítica, a resistência das culturas não ocidentais, a resistência do homem isolado ou franco-atirador, a resistência anarquista, a resistência surrealista dadaísta, a resistência das minorias étnicas ou psico-patológicas (o negro, o diminuído mental e físico), a resistência de grupos juvenis (provos, hippies), a resistência dos escritores-corpo ou escritores anti-literários (Caryl Chessman, Jean Genet, Violette Leduc, Panait Istrati, Máximo Gorki, Franz Kafka, Antonin Artaud), a resistência da poesia polémica, etc.

Para o crítico que a si mesmo se considera e intitula de abjeccionista, todas ao formas de revolta e denúncia padecem de um defeito comum: não apontam a totalidade do que ele, crítico, designará de Abjecção.
No seu entender,  a crítica à Abjecção não pode omitir nenhum átomo dela, sob qualquer pretexto ou alibi, inclusive o da especialização técnica e profissional (alibi muito usado pelos críticas de artes e letras em exercício).
Urge - diz ele - delimitar o campo da Abjecção e, se for necessário, ir até onde os outros não vão; não recuará mesmo perante a incurabilidade da espécie humana, se tiver de reconhecer que a origem dos males radica no homem enquanto espécie e não em formas da sua arrumação social.
Os que se apresentam como descontentes são, muitas vezes, apenas inconformados com um estado de coisas bastante local.
O observador abjeccionista caracteriza-se pela extensão do seu inconformismo: para já, ele encontra-se irreconciliado não só com o capitalismo e o neo-capitalismo, não só com a civilização industrial-urbana, mas também (à maneira da Beckett, detractor último da condição humana, como Desmond Morris e Arthur Koestler) com o homem na sua fase actual de macaco nu.
O crítico abjeccionista diz: a crítica marxista critica a sociedade capitalista. Sim, muito bem, e depois? O resto da Abjecção que ultrapassa esse âmbito? Porque se poupa? Porque não se prossegue a crítica iniciada ao capitalismo e às suas formas de opressão, repressão, violência, exploração, com a crítica às outras formas de opres-ão, às outras contradições e alienações?
Porque não se há-de ir mesmo à crítica do inevitável?

COMO DISTINGUIR SE UMA OBRA SERVE

No entender do crítico abjeccionista, basta ter uma noção clara da totalidade para encontrar, em matéria de teorização estética, as linhas de força, o sentido que hoje importa definir dentro de uma concepção progressiva, prospectiva  da História, do Mundo, da Condição Humana.
Se se definir o espaço ou habitat psicológico (o sistema de mitos, pois claro!) em que radica a existência quotidiana do consumidor (assim mesmo, consumidor, ainda sem estatuto de indivíduo e, muito menos, de pessoa humana) fácil é definir na arte a função criadora de mitos positivos e à crítica atribuições rigorosamente precisas: a destrinça entre esses mitos negativos (os que se fabricam para consumo, para entorpecer e alienar ainda mais) e os mitos positivos que só o esforço do artista, do escritor, do poeta para superar a sua própria escravidão-alienação e a dos seus compatriotas, e a dos seus contemporâneos, a da sua classe e a da sua profissão, a da sua nacionalidade e a da sua etnia, pode criar.
O mérito de um poema como de um filme, define-o o crítico abjeccionista por essa superação dos condicionalismos e opressões que limitam o artista enquanto homem e a sua matéria-prima de trabalho. Por isso a crítica abjeccionista, embora parta do particular aponta sempre o universal e embora arranque da parcela se dirige sempre ao todo do processo humano.
Não interessam ao crítico abjeccionista (ou só interessam subsidiariamente) as proezas da "oficina", o estilo, a luta com a matéria-prima, porque entende o crítico tal luta uma coisa pessoal e intransmissível, insusceptível de crítica. Nessa luta, o artista, de duas, uma: ou sai vencido, ou sai vencedor, e qualquer das soluções só interessa ao crítico na medida em que uma realização estética quanto mais perfeita mais amplia a comunicabilidade da obra, logo o seu alcance "pedagógico" junto de uma maior, mais lata camada de "consumidores".
Quando um crítico abjeccionista se refere a uma obra ou a um autor, não é um técnico que está em funções especializadas - analisar, minudenciar, escalpelizar - mas um homem total que põe e repõe, que formula e reformula, em cada obra ou autor observado, a totalidade, a máxima totalidade no momento possível, as mil e uma caras da Abjecção, os problemas nela implícitos.
No mais exacto sentido, o crítico abjeccionista quando critica, filosofa: põe em questão tudo aquilo que no seu entender importa (nada do que é humano lhe pode ser indiferente...) à luz de um movimento histórico mais ou menos cego, mais ou menos lúcido.
Mas nunca por nunca ele se cantona - a pretexto de especialização - na desmontagem das técnicas, das proezas, das habilidades realizadas pelo autor, que essas - frisa ele - só ao autor dizem respeito na solidão que cada qual tem o dever de resolver e assumir por si.
No meio português, tal concepção de crítica equivale quase a um suicídio de quem a pratica e basta olhar em torno para o moral de qualquer um, por mais animoso, se abater e fraquejar. Do formalismo das direitas ao formalismo das esquerdas, a crítica mexe-se no pantanoso charco das influências, dos estilos, das técnicas oficinais, das terminologias pseudo-técnicas, das nomenclaturas esotéricas, das hiper-sapiências e das hiper-suficiências.

A ARTE COMO COMBATE

Exactamente porque tem da crítica esta concepção "ambiciosa", o abjeccionista considera a sua acção, enquanto escreve, não uma renda frívola, não uma variante extra-profissional de ocupar o tempo e de se fazer notado, não uma ocupação mais ou menos, mas como uma acção, tensão ou luta ou resistência onde se empenha todo (e a isso chama "engagement") de alcance eminentemente político, sempre.
Porque tem da literatura e da arte uma tão ambiciosa concepção é que pode reclamar, para a literatura e para a arte, não funções decorativas mas a capital função da Crítica, da Denúncia, da Revolta e, depois, da Prospectiva.


NO PARTICULAR DOS FILMES

No caso particular do cinema, o crítico terá a seu cargo avaliar: o filme como factor educativo, quer dizer aquilo em que, como arma de uma Indústria, o filme molda e agride a consciência do espectador e tenciona fazer dele, não um homem consciente e desperto, mas um consumidor cada vez maus assíduo, obediente e subserviente, um animal movido por reflexos condicionados dentro do exclusivo circuito do consumo.
No caso particular do cinema, o crítico terá a seu cargo avaliar o filme como etapa, vitoriosa ou frustrada, de um artista e de uma equipa, sobre as forças de conformismo que o subjugam.
Enfim: o filme como integrante cultural que se insere num processo de esclarecimento ou de mistificação do espectador; o filme como factor de elucidação ou de mentira; o filme como exercício para as meninges do espectador ou como factor de esvaziamento mental; o filme como descrição ou ilustração de uma ideia-chave que pode ser justa ou injusta; o filme como fonte de alegria ou como distracção inconsequente que não se destina a criar alegria (a alegria é revolucionária!) mas a fazer perder tempo, a adiar, a esquecer; o filme como despertador ou como suporífero e ópio; o filme como ilustração de mitos positivos ou como veículo publicitário de mitos negativos, os que interessa ao Negócio propagar, instintivar, subconsciencializar no real e potencial homem-consumidor, homem-objecto, homem-abjecto.
Mais do que ocupar-se e preocupar-se com enquadramentos, qualidade de fotografia e som, desempenhos, o crítico abjeccionista faz ao filme este tipo de perguntas:
- Critica a Abjecção, algumas das mil caras da Abjecção?
- Informa e discute?
- Suscita controvérsia?
- Analisa ou acumula eventos?

- Que sinais de revolta, insubmissão aos status quo, de individualização, de heresia e subversão?
- O seu autor é contemporâneo do futuro? Ou nem pensa nisso? Ou ri-se disso?
- Sentido lírico, trágico ou descritivo da existência?
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(*) Este texto de Afonso Cautela, algo tolinho graças a Deus, ficou com certeza inédito e ainda bem : inédito deverá continuar ...
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