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2006-02-19

BIOENERGIA 1976

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KARATE E ARTES MARCIAIS: UM BOM EXEMPLO DE AUTO-SUFICIÊNCIA(*)

(*) Este texto de Afonso Cautela, que eu saiba e ainda bem, ficou inédito, apesar de cinco estrelas, como me parece óbvio, na ponte east-west

20-2-1976

TÉCNICA ESCRAVIZANTE OU TÉCNICAS DE LIBERTAÇÃO?

Por vezes esquecemos que as técnicas são um prolongamento do poder das mãos. E que técnica é, afinal, o poder do homem, que se socorre às vezes de alguns instrumentos que lhe prolongam o braço...
A disponibilidade: condição sine qua non.
Um dos conceitos em que mais insistem os praticantes das artes derivadas do Zen é a "disponibilidade".
Quando entra num ginásio para aprender, para se iniciar, para se treinar no judo e no karate, o melhor que o discípulo tem a fazer dentro de si é despir-se...
Despir-se de pre-conceitos, de arrogância, de ideias feitas, de lugares comuns sobre a superioridade da Europa e dos europeus, sobre o "exotismo" das artes que vai aprender.
Assim como a gratidão e a admiração pelo próximo são virtudes chinesas - desconhecidas ou quase desconhecidas em Portugal 1976 -, assim como o reconhecimento contínuo e quotidiano do homem por tudo quanto lhe acontece já corresponde a um grau "evoluído" da consciência zénica (tao, budista) eis que a disponibilidade aparece também como condição sine qua non para progredir no culto e cultivo da arte marcial.
Não basta o quimono, não basta um ginásio, não basta um treinador. Também conta muito o estado de espírito com que o aluno se presta à experiência, o grau de confiança ou desconfiança com que se entrega às artes do autodomínio.

PSICANÁLISE: A DESCOBERTA DA PÓLVORA!...

Com um certo simplismo - mas sem medo de errar - pode considerar-se a psicanálise um esforço, entre outros, que a cultura ocidental desenvolveu para perceber de que lado estava a verdade maior.
Pode considerar-se a psicanálise uma brecha - estreita - na grande "muralha da China" para compreender o que estava por trás dessa muralha.
O que historicamente ficou da psicanálise, para lá do biologismo de Freud, corrigido com a sociologia da escola norte-americana de Karen Horney e Erich Fromm, foi este redespertar do Ocidente para as luzes e sois que do Oriente nos vêm.
Dai que a maior parte dos livros tratando práticas orientais, aludam à psicanálise e seus corifeus como os "descobridores”, no Ocidente, da pólvora. Pólvora que, como se sabe, já estava há muitos séculos descoberta pelos chineses.
Enquanto o psicanalista tem o divã de confessor, o negócio montado, cobrando bom dinheiro para dizer que "cura o doente", que atenua a neurose, que faz arrecuar a psicose, que ajuda o desintegrado paciente à reunificação psicosomática, enquanto isto, provam as artes e práticas orientais que a grande doença é o dualismo, que o grande "cancro" do Ocidente é a cultura dos contrários opostos, que a neurose ocidental é a irreconciliação do homem consigo mesmo, com o Meio Ambiente, com o Cosmos, com a Natureza, com a Ordem do Universo.
A grande moléstia ocidental é a desordem e o caos, é o diverso que leva à desintegração(da Ordem)do Universo.
Daí que a "cura" para o diverso seja de novo a marcha para o Uni-verso.
Tem isto a ver com karate mas tem a ver com psicanálise, também.
Note-se ainda o carácter unitário das terapias orientais, contrariamente ao carácter analítico que a própria psicanálise implica.
A curiosa terapia de Shoma Morita, catedrático de Psiquiatria na Escola Médica de Jikeikai (Tóquio) - embora se encaminhe para o "tratamento" de várias maleitas, como angústia, hipocondria, vertigem, ansiedade e outros transtornos neuróticos - está, no entanto, muito longe dos conceitos que interessam à análise, desde a análise dos sonhos à livre associação de ideias ( o automatismo dos surrealistas).

NUM MUNDO DE INSTABILIDADE, ESTABILIZAR O INDIVÍDUO: DAR-LHE AUTONOMIA PRODUTIVA

Entre os muitos comentários que poderíamos colher dos livros ocidentais sobre o Oriente, antologiámos estes:
"O zen e a psicanálise possuem vários princípios comuns que interessa analisar, sem que isso queira dizer que exista entre ambos os sistemas uma marcada semelhança,
"Ambos tendem a estabilizar o indivíduo, ambos são cépticos em matéria religiosa, ambos limpam a mente ajudando o indivíduo a estar mais alerta, mais consciente da sua identidade, ambos se esforçam para que o indivíduo resolva satisfatoriamente os seus conflitos interiores e entre em contacto com a realidade. Tanto a psicanálise como o Zen são uma terapia mental, ainda que este último vá muito além e se sirva de distintos processos,"
Outro ponto capital neste percurso pela grande fronteira entre Ocidente e Oriente é a libertação, a independência do sujeito em relação a objectos, sistemas, escolas, estados, igrejas, partidos, lojas, supermercados...
Técnicas de autoconfiança, de autosegurança, de autoregulação e de autoequilíbrio, o Zen, o ioga, o karate, o judo, contribuem para, em muitos pontos e aspectos, o sujeito se autobastar e tornar autosuficiente.
Não precisa ele, no karate - por exemplo - de "arma" nenhuma suplementar.
E' o próprio corpo, a dinâmica desse maravilhoso complexo, a energia e o jogo de acumulação/desacumulação que dessa energia se aprende a fazer que servirá de "arma".
Daí que esteja eminente uma greve aos consumos e à sociedade de consumo.
Daí que, por si, o homem pensante dispense (porque pensa) os funcionários do sistema, pagos para o adoecer e alienar até ao envilecimento e à morte.
Resumindo em termos esquemáticos, o zen e as práticas terapêuticas ocidentais não só são um instrumento de trabalho, análise e investigação, são não só um método de conhecimento mas uma arma de defesa e uma técnica de não-violência para fazer greve geral a todos os tipos de violência (alimentar, médica, cirúrgica, agrícola, económica, social, político-partidária, etc)

CADA HOMEM: UMA CENTRAL DE BIONERGIA

Quando os adeptos da não-violência preconizam alternativas ecológicas para as energias hiperpoluentes, quando defendem as tecnologias leves contra o gigantismo das técnicas pesadas, quando preconizam as energias infinitas (solar, eólica, maremotriz, das ondas, geotérmica, etc,) para substituir as energias finitas (carvão, petróleo, nuclear) estão apontando precisamente no mesmo sentido da arte marcial: descentralizar o poder energético, fazendo de cada indivíduo uma "central produtora de energia biomotriz" (ver folheto da colecção, "Mini-Ecologia", n° 9 - «A Idade Solar, Ivan Illich e Wilhelm Reich – Dois Profetas da Utopia Ecológica» , parcialmente teclado no file
AUTO-DISCIPLINA (ACEITE) É CRIADORA E DISPENSA A DISCIPLINA IMPOSTA

O constante apelo à “rigorosa disciplina" por parte das artes marciais pode muito bem confundir-se com qualquer autoritarismo ocidental, de cariz violento ou até nazi-fascista.
É preciso, no entanto, estar vendo o fenómeno de maneira muito viciada para que
tal "disciplina" se entenda em tais termos.
É evidente que o apelo a uma rigorosa disciplina serve exactamente para dispensar qualquer disciplina externa, coercitiva, tirânica. O "self-control" , como já o ensina António Sérgio, é a condição sine que non de uma educação cívica para a democracia
e para a prática da tolerância democrática. Só com "tenência" – dizia Sérgio - só com muita tenência um verdadeiro democrata contribui para evitar tiranias e ditaduras.
Quanto mais disciplinado for cada indivíduo, mais o grupo formado por esses indivíduos dispensa a disciplina externa, imposta, tirânica e ditatorial.
A disciplina a que um judoca livremente se submete é condição sine que non da sua liberdade. E só se sentirá essa disciplina como sacrifício, se o judoca não perspectivar a sua isolada actuação presente num contexto temporal onde passado, presente e futuro são uma só e real unidade.

REALIDADE EM VEZ DE VERBORREICOMANIA

O que assombra o iniciado nas práticas orientais é que tudo vai , em última instância, redundar numa técnica do homem ao serviço directo do homem, sem intermediários parasitas.
O que espanta e fascina o homem ocidental - onde técnicas e tecnologias, tecnocracias e tecnoterrores só o conseguiram alienar e separar sempre mais de si próprio, o que alerta e conforta um iniciado é ver que do Oriente não vem teoria, verborreia, ensino livresco, especialidades, superespecialidades, ciências e mais ciências, coisas mentais e só (apenas) mentais.
O que dá ao iniciado a certeza de o Oriente não mentir é que o Oriente lhe dá realidades concretas, lhe ensina técnicas, lhe fornece "armas" , em vez de palavras, torrentes de palavras, dilúvios de palavras, verborreia, verborreia & verborreia!...

O PODER (MENTAL) METE MEDO AOS PODEROSOS?

Há quem, lamuriento, vendido ou guarda de presídio, aponte "o perigo das práticas orientais".
Como todas as técnicas, tudo depende nas artes marciais do sistema e contexto que elas vão servir.
É possível pôr as artes marciais ao serviço de propósitos moralmente hediondos?
Claro que sim: as técnicas ocidentais, segundo parece, bem o provam, também andam (quase) sempre por maus caminhos e por sujas mãos.
Não admira, pois, que um poder tão grande como o que a arte marcial proporciona, não ponha sérios riscos, conforme o sistema moral, político, económico e social a quem serve.
É evidente que um karate ou um jiu-jutsi não cabem naquele conceito latino muito café-com-leite do olímpico "mens sana in corpore sano".
Não se trata de sadias mentes em corpos sãos.
Não se trata de vinho novo em odres velhos.
Não se trata de moral judaico-cristã, e sua asquerosa, antiquíssima inoperância dentro de técnicas orientais.
Trata-se de técnicas rigorosas para uma Ética poderosa , que é o Tao, o princípio único, a Ordem do Universo.
Daí o fascínio mas também o medo que as técnicas orientais podem imprimir ao Establishment e suas morais nazi-fascistas estruturais.

Esse e outros slogans têm afinal inspirado a escolástica acidental, viciando desde a origem todo o sistema educativo e pedagógico.
Desde a mais remota antiguidade que o ensino é teórico, livresco, mnemónico. Os pedagogos europeus modernos chegaram a essa brilhante conclusão mas continuaram a laborar em termos de ensino livresco porque não tinham técnicas de autosuficiência a que recorrer.
A educação no Ocidente , mesmo nas escolas consideradas "modernas", é uma farsa e uma mascarada.
A educação deseduca.
A educação não chega mas enche de nomes, teorias, nomenclaturas, mitos, conceitos abstractos as mentes e memórias do educando.
Vemos, no entanto, claramente como a melhor maneira de educar consiste em dar ao educando as técnicas fundamentais da sua autosuficiência e libertação.
Se se ensina as técnicas de ler, escrever e contar, mais importantes são as artes e técnicas de comer, lutar, pensar, andar, dormir, analisar, respirar, trabalhar, poupar energias, divertir-se, ocupar o tempo, amar, nadar, etc, etc; mais importante do que ler, escrever e contar, é a técnica de saber pensar, raciocinar, problematizar, criar, imaginar, reflectir, meditar.
A escola, no entanto, ingorgita o aluno de conhecimentos teóricos, ditos conhecimentos técnicos, mas sofre técnicas de auto-suficiência, nicles. Ensina técnicas, talvez, que tornem o aluno mais dependente e mais escravo do sistema, da macro-técnica escravizante, do Establishment.

TÉCNICAS DE AUTODIAGNÓSTICO OU BRUXARIAS MEDIEVAIS?

Outro exemplo da poder é o que a técnica de autodiagnóstico pode dar.
Se pela íris, pela face, pelos lóbulos da orelha, pelas unhas, pela actividade psicomotriz de uma pessoas eu posso diagnosticar-lhe o passado, revelar-lhe o presente e até adivinhar-lhe parte do futuro, é evidente que tenho na mão um poderoso instrumento de trabalho que posso transformar em arma contra a vítima.
Daí o clima emocional que rodeia a "bruxa", o curandeiro, o charlatão.
Daí o terror que o adivinho pode infundir.
À luz do princípio único e da ordem monista do Universo, porém, tudo é devido a técnicas precisas e rigorosas, ao mais estrito racionalismo, à mais absoluta relação de causa e efeito,
"Ver as doenças de alguém pela iris não é magia, nem bruxaria, valha-nos Buda!"
Sim, saber ler (observar), saber interpretar os sinais ou sintomas externos através dos quais a Natureza humana se nos revela nas suas perturbações, desequilíbrios, carências, patologias, etc não é magia nem bruxaria; é apenas a técnica que ignorámos ou esquecemos, porque havia que consumir as tecnologias do mercado e supermercado
Enquanto se compra um frasquinho ou se desembrulha uma embalagem não estamos aprendendo as nossas técnicas de autosuficiência!.
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(*) Este texto de Afonso Cautela, que eu saiba e ainda bem, ficou inédito, apesar de cinco estrelas, como me parece óbvio, na ponte east-west
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