BEHAVIOR 1993
moda-1> os dossiês do silêncio – como a imprensa nos manipula
9-8-1993
NOVA IMPRENSA FEMININA DESCOBRE BEHAVIOR(*)
198? - Há cerca de dois anos, a Imprensa portuguesa descobriu a "pólvora": o "behavior" oferecia uma temática quase infinita de grande interesse público e quem se resolvesse a explorar tão vasto e aliciante campo - o do "comportamento" - sem preconceitos vitorianos contra o corpo, faria um negócio chorudo e abriria à publicidade rios, oceanos de possibilidades. O mercado vibrou então com o ki ou bioenergia recentemente descoberta.
Estando a publicidade baseada nos instintos hedonistas do povo , concluiu-se que o mais conveniente para o manipular era não continuar a massacrá-lo só com os cifrões da Economia e o discurso enlatado ( cassetético) da política.
Perdendo a vergonha que a tolhia, ao longo dos anos, em que o cifrão dominava e a cassete predominava na formação das mentalidades, a Imprensa descobriu, com espanto por vezes bacoco, que nem só de economia vive o homem, que ele não vive mesmo de economia mas que, afinal, há pessoas. E que as pessoas eram seres humanos com vida emotiva, intelectual e volitiva, com privacidade e crises passionais, com sentimentos, com dúvidas e perplexidades, complexos , traumas, pesadelos, tiques, sistema nervoso.
Que o mundo psíquïco era não só mais vasto e aliciante do que o mundo material mas era também o centro do universo e não a Economia.
Que, sendo a Economia e os tecnocratas , por definição, uma chatice, as pessoas queriam quem lhes falasse antes dos seus grandes nadas quotidianos, pois estavam-se nas tintas para a política e o bla-bla dos políticos.
Descobriu-se assim que as pessoas dormiam, comiam, amavam, ressonavam, tinham emoções, órgãos genitais, acessos de raiva, ódio ou ternura, podiam sofrer de ciúme, saudade, expectativa, stress, tédio, depressão, alergia ao fisco.
As pessoas tinham, afinal, necessidades afectivas diárias e, uma vez por mês, sexuais. Se havia a menopausa para as mulheres, havia também a andropausa para os homens. Se havia machismo, havia também feminismo. Se as mulheres tinham o direito de interferir no mundo fechado dos hábitos masculinos, os homens também não lhes ficaria mal meterem-se a lavar a loiça ou a tratar do bebé.
As pessoas sabiam-se manipuladas pelos "media" mas continuavam a confundir sadomasoquisticamente prazer com dor e dor com prazer. Afinal, havia dor e prazer, irritação e calma, indiferença e paixão, o que era outra descoberta sensacional, depois de tantos anos em que a moral dizia não haver nada disso por causa das conveniências.
Mais: os sonhos eram interessantes, os sonhos e os dicionários que os interpretavam, mesmo os que a Barateira pioneiramente editara, há quase meio século.
Mais: os signos também eram uma coisa giríssima, as pessoas estavam sujeitas a estes influxos astro-ecológicos e holísticos, como as marés estavam à atracção da lua.
Mais: o biótipo e a biotipologia eram matéria de uma ciência fascinante, por vezes designada "psicologia diferencial", o autoconhecimento dos caracteres, das psicologias, dos temperamentos tornava-se matéria de secções semanais tanto como os biorritmos (vituperados na altura pelo jornalista Baptista Bastos, porque reaccionários).
Mais: os consultórios podiam voltar-se para o aconselhamento familiar , porque a família, imagine-se, também existia, e existiam os problemas familiares, o divórcio, as separações, a vergonha dos filhos dilacerados, o problema das várias toxicodependências.
Existia o sentido lúdico mas existia também o sentido trágico da existência. No meio termo da mediania e só para burgueses, continuaria a existir o sentido dramático.
Mais: a Acupunctura é uma arte de curar milenária mas actual, muito parecida com a medicina que mata por causa das agulhas (não hipodérmicas) que usa. E atrás da acupunctura, na calada da noite, chamam-se ao palco as outras artes de curar tradicionais, já abençoadas pela OMS mas ainda amaldiçoadas, no faroeste português, pelos Drs. Gentil Martins e Machado Macedo.
E atrás das artes de curar tradicionais, acabam por ser também uma simpatia as modernas tecnologias apropriadas de saúde, as eco-tecnologias que, do campo da saúde se estendem também ao da energia, do trabalho, etc sob o rótulo simpático de TA'S (tecnologias apropriadas).
A emoção volta a estar na moda e as novas revistas femininas chegam mesmo a proclamar que as lágrimas são próprias do homem e da mulher (tal como já se dissera do riso).
A Natália Correia viu-se ultrapassada nas suas teses militantes a favor de um neo-romantismo radical, com toda a malta aos abraços, quando as revistas ditas femininas apontam outra vez para essas coisas a que a tecnoburocracia do cifrão e da histeria bolsista relegara para o porão das doenças infecto-contagiosas e sexualmente transmissíveis (vergonhosas, portanto).
Incesto e homosexualidade, tantos anos censuradas pela moral católica e judaica, deixaram de ser tema de psiquiatras loucos para se tornarem temas quotidianos de público debate, nesta Imprensa que, gaguejando ainda com o impacto da novidade, empreende a viagem pelos novos territórios que no entanto já estavam descobertos desde o Príncípio do Mundo: era a descoberta pela imprensa da espécie humana, essa espécie em vias de extinção mas que, vista de Marte ou mesmo da Lua e abstraindo os cínicos do cifrão que parecem ratos mexendo-se no esterco, tanto carinho e ternura suscita.
Um bando de historiógrafos, em Paris, comandado por [???], descobre também a pólvora: e não hesitam em pôr os alunos todos a trabalhar para eles, na pesquisa da vida privada ou quotidiana desde o império romano até aos nossos dias (agora em tradução portuguesa ).
De caminho, a Imprensa também descobre , engasgada, como é interessante , como tem pinta a Ecologia Humana e como a defesa do consumidor até tem público
Há, é claro, aqueles aspectos horrorosos do Cancro e outras epidemias da sociedade industrial (essa porca), tudo assuntos deprimentes e sem público, mas aí a Imprensa tecnicolorida abstém-se ou pega-lhes com pinça. Tratando-se do cancro da Mama, essa imprensa pega-lhe com garfo e faca (uma vergonha ),
E o yoga tântrico, cuja versatilidade permite ter relações sexuais sem gastar energias no orgasmo, como é que as revistas femininas não se lembraram ainda de fazer nas suas páginas um curso acelerado para homens?
O hata-yoga, então, não é menos sedutor, pois ao mesmo tempo que dá boas fotografias em várias posições (posturas como diria o Eng. Hermínio Martinho), faz pressupor o Kamasutra uma brincadeira de crianças (salvo seja).
Para quem goste de sassaricar, não há nada como estas técnicas, com toda a vantagem de serem lúdicas e nenhuma das desvantagens de serem lúbricas (ainda o orgasmo delapidador de energias e de cálcio no organismo).
Entretanto, a publicidade da cosmética (feminina e masculina), uísques, automóveis ligeiros de passeio, viagens turísticas, cruzeiros mediterrânicos, etc atinge as mais altas facturações, impulsionando, portanto, tudo o que é lúdico e hedonístico. Precisou, portanto, de uma Imprensa lúdica e hedonística que lhe desaguasse os slogans sedutores. Nada melhor do que uma Imprensa que tenha sabido, com os assuntos do "behavior", condicionar até á célula e ao inconsciente, o consumidor.
Através de um bom artigo sobre a ternura nas relações sexuais, o coração mais perto dos órgãos genitais, quantas marcas de perfume Ana Salazar, uísque Tripoli e automóveis Na Esgalha é possível impingir?
Dos Estados Unidos chegou a voar uma palavra mágica: Holística.
Era a resposta aos paranoicos e outros cientistas que tinham dividido o universo em diversos, ciências, gavetas, cacifos, sectores, secções, etc
Holística respondia à fome de unidade sindical e síntese que ataca o homem actual, feito em migas pela tecnologia de carregar pela boca. Holística torna-se a palavra de guerra com que se barricaram, depois de Maio 68, todas as aventuras humanistas de construir um mundo viável e vivável, sem psiquiatras, cães polícias, tecnocratas dementas e economistas no olho da rua.
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(*) Este artigo, inédito, foi escrito dois anos depois de terem aparecido, em simultâneo, três revistas ditas femininas: Máxima, Marie Claire e (como se chama a outra?)
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9-8-1993
NOVA IMPRENSA FEMININA DESCOBRE BEHAVIOR(*)
198? - Há cerca de dois anos, a Imprensa portuguesa descobriu a "pólvora": o "behavior" oferecia uma temática quase infinita de grande interesse público e quem se resolvesse a explorar tão vasto e aliciante campo - o do "comportamento" - sem preconceitos vitorianos contra o corpo, faria um negócio chorudo e abriria à publicidade rios, oceanos de possibilidades. O mercado vibrou então com o ki ou bioenergia recentemente descoberta.
Estando a publicidade baseada nos instintos hedonistas do povo , concluiu-se que o mais conveniente para o manipular era não continuar a massacrá-lo só com os cifrões da Economia e o discurso enlatado ( cassetético) da política.
Perdendo a vergonha que a tolhia, ao longo dos anos, em que o cifrão dominava e a cassete predominava na formação das mentalidades, a Imprensa descobriu, com espanto por vezes bacoco, que nem só de economia vive o homem, que ele não vive mesmo de economia mas que, afinal, há pessoas. E que as pessoas eram seres humanos com vida emotiva, intelectual e volitiva, com privacidade e crises passionais, com sentimentos, com dúvidas e perplexidades, complexos , traumas, pesadelos, tiques, sistema nervoso.
Que o mundo psíquïco era não só mais vasto e aliciante do que o mundo material mas era também o centro do universo e não a Economia.
Que, sendo a Economia e os tecnocratas , por definição, uma chatice, as pessoas queriam quem lhes falasse antes dos seus grandes nadas quotidianos, pois estavam-se nas tintas para a política e o bla-bla dos políticos.
Descobriu-se assim que as pessoas dormiam, comiam, amavam, ressonavam, tinham emoções, órgãos genitais, acessos de raiva, ódio ou ternura, podiam sofrer de ciúme, saudade, expectativa, stress, tédio, depressão, alergia ao fisco.
As pessoas tinham, afinal, necessidades afectivas diárias e, uma vez por mês, sexuais. Se havia a menopausa para as mulheres, havia também a andropausa para os homens. Se havia machismo, havia também feminismo. Se as mulheres tinham o direito de interferir no mundo fechado dos hábitos masculinos, os homens também não lhes ficaria mal meterem-se a lavar a loiça ou a tratar do bebé.
As pessoas sabiam-se manipuladas pelos "media" mas continuavam a confundir sadomasoquisticamente prazer com dor e dor com prazer. Afinal, havia dor e prazer, irritação e calma, indiferença e paixão, o que era outra descoberta sensacional, depois de tantos anos em que a moral dizia não haver nada disso por causa das conveniências.
Mais: os sonhos eram interessantes, os sonhos e os dicionários que os interpretavam, mesmo os que a Barateira pioneiramente editara, há quase meio século.
Mais: os signos também eram uma coisa giríssima, as pessoas estavam sujeitas a estes influxos astro-ecológicos e holísticos, como as marés estavam à atracção da lua.
Mais: o biótipo e a biotipologia eram matéria de uma ciência fascinante, por vezes designada "psicologia diferencial", o autoconhecimento dos caracteres, das psicologias, dos temperamentos tornava-se matéria de secções semanais tanto como os biorritmos (vituperados na altura pelo jornalista Baptista Bastos, porque reaccionários).
Mais: os consultórios podiam voltar-se para o aconselhamento familiar , porque a família, imagine-se, também existia, e existiam os problemas familiares, o divórcio, as separações, a vergonha dos filhos dilacerados, o problema das várias toxicodependências.
Existia o sentido lúdico mas existia também o sentido trágico da existência. No meio termo da mediania e só para burgueses, continuaria a existir o sentido dramático.
Mais: a Acupunctura é uma arte de curar milenária mas actual, muito parecida com a medicina que mata por causa das agulhas (não hipodérmicas) que usa. E atrás da acupunctura, na calada da noite, chamam-se ao palco as outras artes de curar tradicionais, já abençoadas pela OMS mas ainda amaldiçoadas, no faroeste português, pelos Drs. Gentil Martins e Machado Macedo.
E atrás das artes de curar tradicionais, acabam por ser também uma simpatia as modernas tecnologias apropriadas de saúde, as eco-tecnologias que, do campo da saúde se estendem também ao da energia, do trabalho, etc sob o rótulo simpático de TA'S (tecnologias apropriadas).
A emoção volta a estar na moda e as novas revistas femininas chegam mesmo a proclamar que as lágrimas são próprias do homem e da mulher (tal como já se dissera do riso).
A Natália Correia viu-se ultrapassada nas suas teses militantes a favor de um neo-romantismo radical, com toda a malta aos abraços, quando as revistas ditas femininas apontam outra vez para essas coisas a que a tecnoburocracia do cifrão e da histeria bolsista relegara para o porão das doenças infecto-contagiosas e sexualmente transmissíveis (vergonhosas, portanto).
Incesto e homosexualidade, tantos anos censuradas pela moral católica e judaica, deixaram de ser tema de psiquiatras loucos para se tornarem temas quotidianos de público debate, nesta Imprensa que, gaguejando ainda com o impacto da novidade, empreende a viagem pelos novos territórios que no entanto já estavam descobertos desde o Príncípio do Mundo: era a descoberta pela imprensa da espécie humana, essa espécie em vias de extinção mas que, vista de Marte ou mesmo da Lua e abstraindo os cínicos do cifrão que parecem ratos mexendo-se no esterco, tanto carinho e ternura suscita.
Um bando de historiógrafos, em Paris, comandado por [???], descobre também a pólvora: e não hesitam em pôr os alunos todos a trabalhar para eles, na pesquisa da vida privada ou quotidiana desde o império romano até aos nossos dias (agora em tradução portuguesa ).
De caminho, a Imprensa também descobre , engasgada, como é interessante , como tem pinta a Ecologia Humana e como a defesa do consumidor até tem público
Há, é claro, aqueles aspectos horrorosos do Cancro e outras epidemias da sociedade industrial (essa porca), tudo assuntos deprimentes e sem público, mas aí a Imprensa tecnicolorida abstém-se ou pega-lhes com pinça. Tratando-se do cancro da Mama, essa imprensa pega-lhe com garfo e faca (uma vergonha ),
E o yoga tântrico, cuja versatilidade permite ter relações sexuais sem gastar energias no orgasmo, como é que as revistas femininas não se lembraram ainda de fazer nas suas páginas um curso acelerado para homens?
O hata-yoga, então, não é menos sedutor, pois ao mesmo tempo que dá boas fotografias em várias posições (posturas como diria o Eng. Hermínio Martinho), faz pressupor o Kamasutra uma brincadeira de crianças (salvo seja).
Para quem goste de sassaricar, não há nada como estas técnicas, com toda a vantagem de serem lúdicas e nenhuma das desvantagens de serem lúbricas (ainda o orgasmo delapidador de energias e de cálcio no organismo).
Entretanto, a publicidade da cosmética (feminina e masculina), uísques, automóveis ligeiros de passeio, viagens turísticas, cruzeiros mediterrânicos, etc atinge as mais altas facturações, impulsionando, portanto, tudo o que é lúdico e hedonístico. Precisou, portanto, de uma Imprensa lúdica e hedonística que lhe desaguasse os slogans sedutores. Nada melhor do que uma Imprensa que tenha sabido, com os assuntos do "behavior", condicionar até á célula e ao inconsciente, o consumidor.
Através de um bom artigo sobre a ternura nas relações sexuais, o coração mais perto dos órgãos genitais, quantas marcas de perfume Ana Salazar, uísque Tripoli e automóveis Na Esgalha é possível impingir?
Dos Estados Unidos chegou a voar uma palavra mágica: Holística.
Era a resposta aos paranoicos e outros cientistas que tinham dividido o universo em diversos, ciências, gavetas, cacifos, sectores, secções, etc
Holística respondia à fome de unidade sindical e síntese que ataca o homem actual, feito em migas pela tecnologia de carregar pela boca. Holística torna-se a palavra de guerra com que se barricaram, depois de Maio 68, todas as aventuras humanistas de construir um mundo viável e vivável, sem psiquiatras, cães polícias, tecnocratas dementas e economistas no olho da rua.
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(*) Este artigo, inédito, foi escrito dois anos depois de terem aparecido, em simultâneo, três revistas ditas femininas: Máxima, Marie Claire e (como se chama a outra?)
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