PAÍS 1979
país-1> os dossiês do silêncio
AS GRANDIOSAS OBRAS DO CONVENTO DE MAFRA(*)
«DELÍRIO DAS GRANDEZAS»,DOENÇA CONTAGIOSA...
16/6/1979 - E a situação psicopatológica é esta, sempre esta, contaminando da mesma «mania das grandezas» as populações que, pobres e rotas, interminamente sonham com o império das vestes douradas.
Entre os políticos – que, no intervalo de derrubar governos, consultam os seus gabinetes técnicos de planeamento - o tipo de raciocínio é o mesmo. Soluções maravilhosas temos nós, muitas, para tudo, mas tão caras, tão caras, tão caras que nem trocando a nossa alma colectiva de povo octossecular, o Diabo nos emprestaria a soma!
O técnico, porém, não desiste: tendo mecanicamente cumprido a obrigação de obrar o relatório, mecanicamente continua salivando os mesmos reflexos condicionados de sempre: «iremos pedir ao Banco Mundial, ao Banco Europeu, ao Banco Espírito Santo», aos ricos todos, mas enquanto eles decidem dar ou não (entretanto vão-nos espreitando até à roupa de baixo), outra cheia virá que levará haveres, pessoas, gados e culturas, outra crise de electricidade nos deixará (como no estio de 1976) metade do dia sem vátios, outro péssimo ano agrícola nos fará pagar as cenoiras a preço de ouro (ou as cenouras a preço de oiro), outra epidemia de cólera poderá vir (como vieram em 1974) anunciando ao mundo que este País de grandes ambições europeias - no que diz respeito às Doenças do Desenvolvimento - alinha no Terceiro Mundo do subdesenvolvimento e das endemias típicas da fome, da miséria, da pobreza.
Mas lá confessar a nossa indigência, nunca. Albanizar o País (como eles dizem, rangentes), nunca. Viver com o que temos, jamais.
REALISMO OU TECNUTOPIA?
Pobretes mas alegretes, sempre. Nunca solucionaremos um único pequeno problema real mas temos na gaveta, no cérebro privilegiado dos nossos técnicos e líderes, a solução ideal para todos os problemas, passados, presentes, futuros, locais, regionais, nacionais e (embora não nos digam respeito) internacionais também.
Sempre além do chinelo, sempre aspirando horizontes de glória e pompa, oceanos e continentes, ora o maior lago artificial da Europa, ora a única experiência com chuvas do mundo, ora o maior esporão de costa que já se fez por toda a galáxia, ora o convento de Mafra...
O técnico herdou do infante D. Henrique esta estrela ultramarina de conquista: sonhamos sempre o melhor rubi, embora já estejamos a empenhar alguns dedos.
Sempre a utopia, o sétimo império, o adamastor na nossa casa de banho, a reluzente coroa arquimperial, o nosso fado de senhores dominando continentes de escravos.
Será doença, mania, mácula ancestral, mas é a dominante caractereológica da classe dominante: a tecnostrutura e o seu tecnoterror.
O mínimo realismo - comum ao homem sensato e ao ecologista - esbarra estrondosamente nesta muralha de superutopia, em que todos os órgãos do poder - por muito que discordem no pormenor e se repartam na Assembleia - se encontram unânimes.
Entre o bom senso, o realismo, a noção do real concreto, a sensibilidade dialéctica à história e suas contradições, a plena consciência do nosso tamanho, das nossas finanças, da nossa magreza - e os sonhos (ora vermelhos, ora azuis, ora pretos) de grandiloquência, ouro, urânio e diamante, não há sintonia possível. Há um abismo. A inércia do hábito e da rotina. A esclerose do que vem de trás e obriga, sem alterações, a prosseguir em frente. Cegamente em frente.
Quando não é no fado e na providência divina, a classe técnica dominante deposita tudo (e a solução dos problemas):
1 - Na sapiência erudita dos gabinetes, diplomados e relatórios, tanto mais competentes quanto mais herméticos e indecifráveis em termos de gente;
2 - Na cornucópia divina que nos há-de ir despejando empréstimos sobre empréstimos até ao ano 2000;
3 -Nas obras públicas (de que foram 50 anos) e nas soluções megalómanas do tipo Alqueva-pirâmide-moderna, do tipo 42 diques de cimento armado para o Tejo, do tipo rede arquissofisticada de sanidade, do tipo central nuclear último modelo embora ferrugento.
BOM SENSO POPULAR & POLíTICA DA TERRA QUEIMADA
O português sabe que este esquema é generalizável a todas as circunstâncias, carências, necessidades da nossa vida colectiva e quotidiana. De pequeno e prático e imediato, nada se resolve. Mas tudo será feito e resolvido, daqui a muitos anos, se houver dinheiro, muito dinheiro, oceanos de dinheiro.
Como não há, nada (nem pouco nem muito) se fará.
Bem se esfalfa o povo, por aforismo, a lembrar que o «óptimo é inimigo do bom». A política da terra queimada - «quanto pior, melhor» - continua a ser o aforismo de quantos têm poder neste País. E, por definição, eles não ouvem a voz do povo que é a voz de Deus.
De olhos vendados e ouvidos surdos para o País real, só se ouve a si, ao seu umbigo, à sua psitacística subjectividade.
O homem sensato - a maioria do povo português, tenhamos fé! - só vê, nos palcos públicos, homens sonhando alto com castelos dourados, enquanto os casebres da vida portuguesa vão na voragem das águas, no abandono dos campos, na míngua de energias, na depressão de cíclicas endemias, no desespero de ver todos os horizontes cerrados.
A tecnutopia, de facto, encurrala-nos: para não termos um dilúvio universal no Ribatejo, precisamos de milhares de contos; mas como não temos um tostão, teremos o dilúvio até à consumação dos séculos.
Face aos sonhos imperiais de Alquevas impossíveis, ao povo português continua-se pondo apenas a questão muito concreta, territorial, urgente, sem flores nem cenários: salvar a pele, matar a fome, viver enquanto a redentora morte não nos libertar.
Salvar a pele, evitar que, depois dos anéis, vão também os dedos, ter e comer austeramente o que austeramente for humanamente possível, é o imperativo que cada vez mais se há-de impor a quem não esteja bêbado de grandezas ontem ultramarinas, hoje europeizantes.
À escala mundial, aliás, o realismo ecológico sempre se definiu nessa onda: um caso de vida ou de morte para o Terceiro Mundo dos «condenados da Terra», muito menos que um conforto, um luxo, uma limpeza maior para os sujos países do supercrescimento industrial.
Não se trata, para um País pobre como Portugal, de alindar a casa (primeiro é preciso tê-la), comprar mais «bibelots» (quando não temos banco nem mesa), resolver entre alcatifa verde-mar e verde-alface. Não se trata, para a velha casa portuguesa, de escolher modelo Luís XV ou Napoleão. Não se trata do continuar na fanfarronada de só planear empreendimentos de milhões que não temos, nem de prosseguir os triunfalismos com que continuamos a exibir, encobrindo, a nossa miséria e andrajos.
Para assumir o que somos, temos, podemos e queremos, é absolutamente necessário neutralizar o balofo triunfalismo que tudo resolve com milhões exactamente porque nada quer resolver. Já que milhões não os temos nem teremos.
SURREALISMO E FANTASMAS
Tem-se querido assimilar o realismo (ecológico) como actividade ainda mais supérflua ou marginal, gratuita, lúdica ou inútil que o desporto.
Mais platónica ainda do que a arte, a literatura, a cultura, a poesia (no pejorativo sentido em que os homens ditos práticos a tomam).
Estranha aberração que consegue inverter, por completo, a realidade de uma ideia e a ideia de realidade.
Face ao surrealismo das ideologias reinantes, o realismo (ecológico) é a única posição -consciência do mundo - de olhos e ouvidos abertos para a realidade. Num mundo de tecnossonâmbulos, ébrios de gigantescos empreendimentos que salvarão a pátria enquanto a pátria se afunda, o realismo não se embebeda de impossíveis, não sonha utopias, não teima em fazer omeletes sem ovos, não se afinca a propor «soluções» insolúveis, alvos inalcançáveis.
O realismo propõe soluções ao alcance de nós, pobres, modestas, eficazes, imaginosas. Sem vergonha se irmana aos povos do Terceiro Mundo, em vez de catalepticamente se pôr nos bicos dos pés para chegar à terrina de açúcar e veneno das Europas avançadas.
Viver em austeridade é viver na Verdade. No real concreto. Nas condições e circunstâncias que a história nos dá.
Para o realismo (ecológico), «qualidade de vida» (num país onde o primeiro problema é o custo de vida) não é mais conforto, consumos, açúcar, bebidas, refinados, embalagens, supermercado, colossos bestiais de engenharia.
É pura e simplesmente estar armado contra os chacais (do petróleo e nem só), prevenido para o que der e vier, sucintamente munido do essencial, com uma bucha no estômago (em vez do prometido banquete para o ano 2100), acautelado contra todas as armadilhas (inclusive climáticas, meteorológicas e pluviométricas...) dos imperialismos triunfantes, tufónicos e tubarónicos.
Não me envergonho de ser português pobre, mas envergonho-me de que teimem em nos exibir, na praça europeia, como eternos arrivistas, falsos ricaços à caça da fatia, tapando as lágrimas secas das nossas cheias e tragédias com o «rimel» (insulto) dos projectos megalómanos: Alqueva, rede sanitária, central nuclear, 42 diques para o Ribatejo.
Temo que a «mania das grandezas» seja, como doença nacional, incurável. E que todos os nossos desaires possam advir, em boa parte, deste paranóico delírio em que se comprazem tantos magnânimos e seus múltiplos conventos de Mafra. Mas do Brasil, agora, já não nos vem pepita de oiro, vem, sim, Jô Soares e «O Astro», que pepitas bem doiradas nos custam, embora justamente: são o melhor anestésico da nossa angústia colectiva.
Como então, sem ouro, construir conventos de Mafra?
SALVAR A PELE E JÁ NÃO ERA MAU...
Seja ou não seja certo este diagnóstico, ao estilo psiquiátrico, afigurava-se, ao menos, saudável, uma certa moderação nas nossas ambições e delíquios, raiando alguns já a histeria.
Políticos no Governo têm dito e redito que os portugueses, por mais pisadelas no calo e apalpadelas na bolsa, nunca mais aprendem a viver em austeridade. Por mais que a gasolina suba - dizem - não se nota diferença no movimento das estradas... E por mais que nos apertem o cinto, eles acusam-nos continuamente de não ter juízo, consumir desalmadamente, nunca mais percebermos que estamos no atoleiro e enterrados nas garras dos prestimosos prestamistas internacionais. Ouvimos e mais se reforça em nós o secular complexo de culpa que nos vem dos descobrimentos e outras piratarias. Mas, entretanto, quem fala em gastar os milhões que não temos? Serei eu, consumidor, contribuinte, peão, utente, munícipe, eleitor, eu, cidadão desta Pátria onde a única coisa estável é o Imposto?
Parece-me necessária aqui uma reflexão de fundo, reflexão que se prende com o equívoco, muito frequente entre pró e antiecologistas.
«Qualidade de vida» tornou-se um lugar-comum. E é um evidente sofisma, desde que desligado do custo de vida. Pode transformar-se assim na bandeira, também, dos que garantem a melhoria da «qualidade de vida» dos portugueses à custa das Alquevas & Cª.
Na perspectiva do realismo, é uma bandeira assaz suspeita e cheia de alçapões.
Ao reivindicar «qualidade de vida», logo os mais hábeis subentendem, como sinónimo, conforto, bem estar, abastança, nível europeu, boa casa, consumos sem restrições, etc
Eis o buraco. E eis como a ideia básica do realismo (ecológico) - viver com o que temos, como é realmente possível e de harmonia com as condições concretas herdadas de uma história megalómana - pode ser desvirtuada à partida.
Circunstâncias várias da vida nacional já nos ensinaram o suficiente para não dever haver enganos: não são larguezas, bacias doiradas, ócios e grandezas, europeizações e estilos alcatifados de vida o que o português, sensatamente, necessita.
Como as cheias de Fevereiro drástica e providencialmente explicitaram - é simples e infinito o que nós todos queremos. Salvar a pele, ter um naco de pão para comer ou um tecto para nos abrigar, enquanto as grandiosas obras dos conventos de Mafra prosseguem, prosseguem, prosseguem...
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(*) Publicado no jornal «A Capital» (O Mundo da Ecologia), 16/6/1979
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AS GRANDIOSAS OBRAS DO CONVENTO DE MAFRA(*)
«DELÍRIO DAS GRANDEZAS»,DOENÇA CONTAGIOSA...
16/6/1979 - E a situação psicopatológica é esta, sempre esta, contaminando da mesma «mania das grandezas» as populações que, pobres e rotas, interminamente sonham com o império das vestes douradas.
Entre os políticos – que, no intervalo de derrubar governos, consultam os seus gabinetes técnicos de planeamento - o tipo de raciocínio é o mesmo. Soluções maravilhosas temos nós, muitas, para tudo, mas tão caras, tão caras, tão caras que nem trocando a nossa alma colectiva de povo octossecular, o Diabo nos emprestaria a soma!
O técnico, porém, não desiste: tendo mecanicamente cumprido a obrigação de obrar o relatório, mecanicamente continua salivando os mesmos reflexos condicionados de sempre: «iremos pedir ao Banco Mundial, ao Banco Europeu, ao Banco Espírito Santo», aos ricos todos, mas enquanto eles decidem dar ou não (entretanto vão-nos espreitando até à roupa de baixo), outra cheia virá que levará haveres, pessoas, gados e culturas, outra crise de electricidade nos deixará (como no estio de 1976) metade do dia sem vátios, outro péssimo ano agrícola nos fará pagar as cenoiras a preço de ouro (ou as cenouras a preço de oiro), outra epidemia de cólera poderá vir (como vieram em 1974) anunciando ao mundo que este País de grandes ambições europeias - no que diz respeito às Doenças do Desenvolvimento - alinha no Terceiro Mundo do subdesenvolvimento e das endemias típicas da fome, da miséria, da pobreza.
Mas lá confessar a nossa indigência, nunca. Albanizar o País (como eles dizem, rangentes), nunca. Viver com o que temos, jamais.
REALISMO OU TECNUTOPIA?
Pobretes mas alegretes, sempre. Nunca solucionaremos um único pequeno problema real mas temos na gaveta, no cérebro privilegiado dos nossos técnicos e líderes, a solução ideal para todos os problemas, passados, presentes, futuros, locais, regionais, nacionais e (embora não nos digam respeito) internacionais também.
Sempre além do chinelo, sempre aspirando horizontes de glória e pompa, oceanos e continentes, ora o maior lago artificial da Europa, ora a única experiência com chuvas do mundo, ora o maior esporão de costa que já se fez por toda a galáxia, ora o convento de Mafra...
O técnico herdou do infante D. Henrique esta estrela ultramarina de conquista: sonhamos sempre o melhor rubi, embora já estejamos a empenhar alguns dedos.
Sempre a utopia, o sétimo império, o adamastor na nossa casa de banho, a reluzente coroa arquimperial, o nosso fado de senhores dominando continentes de escravos.
Será doença, mania, mácula ancestral, mas é a dominante caractereológica da classe dominante: a tecnostrutura e o seu tecnoterror.
O mínimo realismo - comum ao homem sensato e ao ecologista - esbarra estrondosamente nesta muralha de superutopia, em que todos os órgãos do poder - por muito que discordem no pormenor e se repartam na Assembleia - se encontram unânimes.
Entre o bom senso, o realismo, a noção do real concreto, a sensibilidade dialéctica à história e suas contradições, a plena consciência do nosso tamanho, das nossas finanças, da nossa magreza - e os sonhos (ora vermelhos, ora azuis, ora pretos) de grandiloquência, ouro, urânio e diamante, não há sintonia possível. Há um abismo. A inércia do hábito e da rotina. A esclerose do que vem de trás e obriga, sem alterações, a prosseguir em frente. Cegamente em frente.
Quando não é no fado e na providência divina, a classe técnica dominante deposita tudo (e a solução dos problemas):
1 - Na sapiência erudita dos gabinetes, diplomados e relatórios, tanto mais competentes quanto mais herméticos e indecifráveis em termos de gente;
2 - Na cornucópia divina que nos há-de ir despejando empréstimos sobre empréstimos até ao ano 2000;
3 -Nas obras públicas (de que foram 50 anos) e nas soluções megalómanas do tipo Alqueva-pirâmide-moderna, do tipo 42 diques de cimento armado para o Tejo, do tipo rede arquissofisticada de sanidade, do tipo central nuclear último modelo embora ferrugento.
BOM SENSO POPULAR & POLíTICA DA TERRA QUEIMADA
O português sabe que este esquema é generalizável a todas as circunstâncias, carências, necessidades da nossa vida colectiva e quotidiana. De pequeno e prático e imediato, nada se resolve. Mas tudo será feito e resolvido, daqui a muitos anos, se houver dinheiro, muito dinheiro, oceanos de dinheiro.
Como não há, nada (nem pouco nem muito) se fará.
Bem se esfalfa o povo, por aforismo, a lembrar que o «óptimo é inimigo do bom». A política da terra queimada - «quanto pior, melhor» - continua a ser o aforismo de quantos têm poder neste País. E, por definição, eles não ouvem a voz do povo que é a voz de Deus.
De olhos vendados e ouvidos surdos para o País real, só se ouve a si, ao seu umbigo, à sua psitacística subjectividade.
O homem sensato - a maioria do povo português, tenhamos fé! - só vê, nos palcos públicos, homens sonhando alto com castelos dourados, enquanto os casebres da vida portuguesa vão na voragem das águas, no abandono dos campos, na míngua de energias, na depressão de cíclicas endemias, no desespero de ver todos os horizontes cerrados.
A tecnutopia, de facto, encurrala-nos: para não termos um dilúvio universal no Ribatejo, precisamos de milhares de contos; mas como não temos um tostão, teremos o dilúvio até à consumação dos séculos.
Face aos sonhos imperiais de Alquevas impossíveis, ao povo português continua-se pondo apenas a questão muito concreta, territorial, urgente, sem flores nem cenários: salvar a pele, matar a fome, viver enquanto a redentora morte não nos libertar.
Salvar a pele, evitar que, depois dos anéis, vão também os dedos, ter e comer austeramente o que austeramente for humanamente possível, é o imperativo que cada vez mais se há-de impor a quem não esteja bêbado de grandezas ontem ultramarinas, hoje europeizantes.
À escala mundial, aliás, o realismo ecológico sempre se definiu nessa onda: um caso de vida ou de morte para o Terceiro Mundo dos «condenados da Terra», muito menos que um conforto, um luxo, uma limpeza maior para os sujos países do supercrescimento industrial.
Não se trata, para um País pobre como Portugal, de alindar a casa (primeiro é preciso tê-la), comprar mais «bibelots» (quando não temos banco nem mesa), resolver entre alcatifa verde-mar e verde-alface. Não se trata, para a velha casa portuguesa, de escolher modelo Luís XV ou Napoleão. Não se trata do continuar na fanfarronada de só planear empreendimentos de milhões que não temos, nem de prosseguir os triunfalismos com que continuamos a exibir, encobrindo, a nossa miséria e andrajos.
Para assumir o que somos, temos, podemos e queremos, é absolutamente necessário neutralizar o balofo triunfalismo que tudo resolve com milhões exactamente porque nada quer resolver. Já que milhões não os temos nem teremos.
SURREALISMO E FANTASMAS
Tem-se querido assimilar o realismo (ecológico) como actividade ainda mais supérflua ou marginal, gratuita, lúdica ou inútil que o desporto.
Mais platónica ainda do que a arte, a literatura, a cultura, a poesia (no pejorativo sentido em que os homens ditos práticos a tomam).
Estranha aberração que consegue inverter, por completo, a realidade de uma ideia e a ideia de realidade.
Face ao surrealismo das ideologias reinantes, o realismo (ecológico) é a única posição -consciência do mundo - de olhos e ouvidos abertos para a realidade. Num mundo de tecnossonâmbulos, ébrios de gigantescos empreendimentos que salvarão a pátria enquanto a pátria se afunda, o realismo não se embebeda de impossíveis, não sonha utopias, não teima em fazer omeletes sem ovos, não se afinca a propor «soluções» insolúveis, alvos inalcançáveis.
O realismo propõe soluções ao alcance de nós, pobres, modestas, eficazes, imaginosas. Sem vergonha se irmana aos povos do Terceiro Mundo, em vez de catalepticamente se pôr nos bicos dos pés para chegar à terrina de açúcar e veneno das Europas avançadas.
Viver em austeridade é viver na Verdade. No real concreto. Nas condições e circunstâncias que a história nos dá.
Para o realismo (ecológico), «qualidade de vida» (num país onde o primeiro problema é o custo de vida) não é mais conforto, consumos, açúcar, bebidas, refinados, embalagens, supermercado, colossos bestiais de engenharia.
É pura e simplesmente estar armado contra os chacais (do petróleo e nem só), prevenido para o que der e vier, sucintamente munido do essencial, com uma bucha no estômago (em vez do prometido banquete para o ano 2100), acautelado contra todas as armadilhas (inclusive climáticas, meteorológicas e pluviométricas...) dos imperialismos triunfantes, tufónicos e tubarónicos.
Não me envergonho de ser português pobre, mas envergonho-me de que teimem em nos exibir, na praça europeia, como eternos arrivistas, falsos ricaços à caça da fatia, tapando as lágrimas secas das nossas cheias e tragédias com o «rimel» (insulto) dos projectos megalómanos: Alqueva, rede sanitária, central nuclear, 42 diques para o Ribatejo.
Temo que a «mania das grandezas» seja, como doença nacional, incurável. E que todos os nossos desaires possam advir, em boa parte, deste paranóico delírio em que se comprazem tantos magnânimos e seus múltiplos conventos de Mafra. Mas do Brasil, agora, já não nos vem pepita de oiro, vem, sim, Jô Soares e «O Astro», que pepitas bem doiradas nos custam, embora justamente: são o melhor anestésico da nossa angústia colectiva.
Como então, sem ouro, construir conventos de Mafra?
SALVAR A PELE E JÁ NÃO ERA MAU...
Seja ou não seja certo este diagnóstico, ao estilo psiquiátrico, afigurava-se, ao menos, saudável, uma certa moderação nas nossas ambições e delíquios, raiando alguns já a histeria.
Políticos no Governo têm dito e redito que os portugueses, por mais pisadelas no calo e apalpadelas na bolsa, nunca mais aprendem a viver em austeridade. Por mais que a gasolina suba - dizem - não se nota diferença no movimento das estradas... E por mais que nos apertem o cinto, eles acusam-nos continuamente de não ter juízo, consumir desalmadamente, nunca mais percebermos que estamos no atoleiro e enterrados nas garras dos prestimosos prestamistas internacionais. Ouvimos e mais se reforça em nós o secular complexo de culpa que nos vem dos descobrimentos e outras piratarias. Mas, entretanto, quem fala em gastar os milhões que não temos? Serei eu, consumidor, contribuinte, peão, utente, munícipe, eleitor, eu, cidadão desta Pátria onde a única coisa estável é o Imposto?
Parece-me necessária aqui uma reflexão de fundo, reflexão que se prende com o equívoco, muito frequente entre pró e antiecologistas.
«Qualidade de vida» tornou-se um lugar-comum. E é um evidente sofisma, desde que desligado do custo de vida. Pode transformar-se assim na bandeira, também, dos que garantem a melhoria da «qualidade de vida» dos portugueses à custa das Alquevas & Cª.
Na perspectiva do realismo, é uma bandeira assaz suspeita e cheia de alçapões.
Ao reivindicar «qualidade de vida», logo os mais hábeis subentendem, como sinónimo, conforto, bem estar, abastança, nível europeu, boa casa, consumos sem restrições, etc
Eis o buraco. E eis como a ideia básica do realismo (ecológico) - viver com o que temos, como é realmente possível e de harmonia com as condições concretas herdadas de uma história megalómana - pode ser desvirtuada à partida.
Circunstâncias várias da vida nacional já nos ensinaram o suficiente para não dever haver enganos: não são larguezas, bacias doiradas, ócios e grandezas, europeizações e estilos alcatifados de vida o que o português, sensatamente, necessita.
Como as cheias de Fevereiro drástica e providencialmente explicitaram - é simples e infinito o que nós todos queremos. Salvar a pele, ter um naco de pão para comer ou um tecto para nos abrigar, enquanto as grandiosas obras dos conventos de Mafra prosseguem, prosseguem, prosseguem...
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(*) Publicado no jornal «A Capital» (O Mundo da Ecologia), 16/6/1979
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