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2006-06-14

POLUIÇÕES 1975

1-5 - saramago-1-ac-js> ac a saramago – inéditos ac - Quinta-feira, 17 de Julho de 2003

CARTA A JOSÉ SARAMAGO POR CAUSA DA «NOTA DO DIA» QUE ELE PUBLICOU NO «DIÁRIO DE NOTÍCIAS» - O SISTEMA RECUPERA A POLUIÇÃO MAS NÃO A ECOLOGIA

Depois de um scanner que me deu mais trabalho do que uma nova teclagem, não resisto a fazer um comentário a esta carta que hoje, 11 de Março de 2001, decidi desenterrar da gaveta só porque o destinatário, na altura chefe de redacção do «Diário de Notícias», é hoje prémio Nobel da Literatura laureadíssimo.
Tenho de encontrar algumas virtudes nesta prosa, para me sentir minimamente justificado da asneira que foi repescá-la. De facto, à parte a grosseria da linguagem, que me parece hoje perfeitamente indecente, por ali passava a minha identificação com o Terceiro Mundo (que continua intacta) e a minha tese de que as doenças do Terceiro Mundo são doenças do subdesenvolvimento que o desenvolvimento foi criando.
Se publiquei esta merda de prosa (espero bem que não) só podia ser no livro « A Revolução Ecológica», que me parece, apesar de tudo, não conter as asneiras que este contém.
Como documento de uma certa paranóia minha, serve E como mais um episódio do meu anti-estalinismo primário (mein kampf). Mas o ódio aos senhores doutores que mandam em nós continua a ser o mesmo e a base de todas as minhas revoltas, andanças e contradanças.
Espero bem que tenha sido mais uma das muitas cartas que ficaram na gaveta e que nem ao Saramago a tenha mandado. Nesse caso, porque é que só restava a péssima cópia de péssimo papel químico, que me deu água pela barba a scannar? Naturalmente mandei mesmo, o que me permitirá, se um dia a descobrirem no espólio glorioso de Saramago, ascender eu também à imortalidade.
E pronto: chega de comentário besta para uma prosa besta. Mas uma vez que já está em word, pois que fique e que faça a todos bom proveito.
Ah, é verdade: outro dos méritos desta prosa sem mérito é reflectir a loucura paranóica dos célebres anos loucos do gonçalvismo. Era o auge e a linguagem, nesse aspecto, está conforme. Ipsis verbis.

*
14/Junho/1975 (ou 1974?) - Melhor do que vacina BCG, a má fé é recomendável em todos os casos de gripe intercostal e a desconfiança o único método crítico, quanto se trata do contestar, desde a raiz, a raiz das hipocrisias, duplicidades, manhas, crimes, mitos e sofismas do sistema.
Mas deverá a má fé ser um método universal aplicável em todas as circunstâncias e, um pouco segundo a lei do funil, não só em casos previamente classificados de alarmismo?
Que o Sistema já recuperou o alarme ecológico é evidente, é patente. Os maiores poluidores são os primeiros a falar da luta contra a poluição. Para cada Lisnave e sua má consciência de poluidor nº 1, há sempre uma boa consciência chamada Gás limpo.
Bob Dylan blasfema contra o capitalismo em espiras gravadas de que o capitalismo aufere lautos lucros. E depois? Veja-se o comércio praticado com literatura, arte, filosofia e até política de oposição, e chegar-se-á à mesma conclusão: o sistema lépido tenta deglutir o que lhe é, ab initio, indigesto.
O Sistema, pois, recupera a poluição. Mas não a Ecologia. A escassês de recursos há-de acabar primeiro com ele, do que ele consiga esmagar os que até agora tem explorado. Poderia ser a escassês de recursos uma «manobra de alarmismo»? Vou tentar provar que é tarde demais para ser manobra.

Entretanto, cabe perguntar: porque se usa de tal e tanta má fé com o alarme ecológico (que é única e simplesmente a voz da realidade, da verdade) e não se usa da mesmíssima má fé para com toda a mentira, os mitos, crimes, sofismas, duplicidades, hipocrisias e contradições em que o reformismo do sistema é mais que fértil, é apoplético? Porquê?
Se os países ricos o foram até agora por sistemática pilhagem e exploração daqueles que os calmos e objectivos economistas classificam de pobres e subdesenvolvidos quando não de atrasados, é óbvio que tudo farão, os bodes, que tudo continuarão a fazer para prorrogar essa pilhagem e essa exploração. Não me parece necessário ser universitário para chegar a tal brilhante conclusão.
Não se compreende, então, porque haviam os desenvolvidos de precisar agora de um argumento "novo" - a escassês de recursos - para continuar explorando, e para justificarem, pela primeira vez, uma exploração que sempre praticaram sem justificações e a céu descoberto e à tripa forra, como convém.
Quando o forte explora o fraco ( sempre com o beneplácito de ilustres universitários em Direito, Economia Política ou qualquer outra avançada ciência de que os desenvolvidos têm o monopólio) , não me parece que o forte tenha necessidade alguma de dar ao fraco satisfações, razões, motivos lógicos da expoliação.
A que viria pois uma manobra, agora, em 1973?
Se a campanha de imprensa ultimamente activada sobre escassês de recursos" deve ter uma segunda intenção velada inconfessável - e de certeza a terá, pois o sistema não dá ponto sem nó, nada faz às claras, que não seja para obter finalidades ocultas - não vejo, porém, por inútil, que essa intenção seja a manobra de ( intensificar o) alarmismo referida por Saramago na sua Nota do Dia.
É que nem sequer para pôr fim à política de proteccionismo - sob os rótulos de "ajuda ao Terceiro Mundo - necessitaria o sistema de tão balofo como inútil argumento.
A ser isto - pôr fim à tal ajuda que foi sempre mera demagogia e mera propaganda - o que os odres de banha pretendiam, a verdade é que o podiam perfeitamente fazer sem necessitar de campanhas.
A má fé é um princípio ou método perfeitamente lícito e necessário: é a condição sine qua non da lucidez, a única arma para impedir que o sistema nos enfie todos os barretes que pretenda: sem dúvida, e não cansa repeti-lo. Mas neste caso dos recursos - e da campanha que decorre - creio haver um fundamento para a berraria e para o alarme.

É que, mesmo explorando, mesmo prosseguindo a exploração, mesmo levando ao paroxismo os tumores de fixação (Sines é, no nosso país, o modelo desta nova fase paroxística do capitalismo moribundo com o unânime aplauso de todos os diplomados portugueses em economia, ciência , técnica, política, sociologia & etc), mesmo activando as escolas de mergulhadores para ir procurar nos fundos marinhos aquilo que já esgotaram no solo terrestre, mesmo mobilizando toda a mitologia da produtividade e dos rendimentos P.N.B.( aplaudidíssimos por todos os doutores em P.N.B. aqui do meio), os potentados, os donos do mundo e seus conselheiros universitários estão mesmo à rasca porque já não chega.

A ecologia mantém a calma e sorri. Porque das duas máquinas postas em movimento, nenhuma delas pode ser parada sem que fragorosamente vão colidir: a da produtividade histérica e a do histérico consumismo, a da exploração e a do desperdício.
No fim, as tripas do sistema estão à vista e chamam-lhe Poluição.
E berram de medo, pois claro, porque os galões de gasolina lhes estão a minguar.
Não é alarmismo desta vez, não é truque; desta feita os cães estão mesmo de caganeira e à rasca. Os prognósticos mais pessimistas estão ainda bastante longe dos factos, embora a berraria já tivesse começado. Os recursos findarão muitíssimo antes do que os economistas lhes fazem crer, pois também os economistas estão em riscos de ir todos para o olho da rua, logo que os patrões saibam que estão todos num beco sem saída.
Por exemplo: mais do que o aviador ou o astronauta, o mergulhador constitui hoje uma classe profissional de elite, que tende a ser, num futuro próximo, a mais bem paga. Mas mesma paga a ouro, haverá cada vez menos quem lá queira ir: mesmo com vocação de suicida.
Resulta daqui: mesmo na hipótese mais optimista - a de haver ainda muito petróleo para sacar dos fundos marinhos - o custo desta exploração acabará por se tornar ruinoso.
O próprio limite da mão de obra escrava (vigente no ouro da África do Sul ou na construção civil de Lisboa com a importação de cabo-verdianos) está prestes a romper-se.
Mas no caso do mergulhador, há a hipótese de fazer dele (como do astronauta ou do aviador) um robô, um completo alienado, mas um escravo pròpriamente dito... é mais difícil. E não se paga a um escravo ordenados de ministro. No caso do mergulhador, é a própria sofisticação dos métodos de trabalho engendrados pelo sistema que o levará à ruína, pois acabará por não ter quem pura e simplesmente o sirva.
Não contando com os outros factores de ruína ( a contradição já enunciada) entre desperdício histérico e produtividade histérica e o gigantismo, (fracasso de que o ruinoso "Concorde" é o símbolo arquetípico) a ecologia sabe que também por ali, pela mão de obra e pela sofisticação da mão de obra - o sistema está a dar os últimos traques das suas gibóicas digestões. É que nem a demagogia da anti-poluição o salvará, já que é precisamente nessa que ele definitivamente se afundará.
Por esta coisa muito simples que só um simples de coração sabe mas os doutores todos ignoram: supondo que de repente todos os focos de poluição cessavam de poluir, a situação de colapso não se alterava um ápice. Porque o colapso é ao nível dos recursos e não só de poluições. Os odres encheram-se demais: é tudo o que a ecologia constata. E agora gritam porque se lhes vai a chucha. Nada mais humano.

Porque há-de haver manobra alarmista?

Nós os do Terceiro Mundo, porém, temos a ciência da Miséria. Estamos diplomados em escassês. Ouvir falar do que falta, faz-nos sorrir. A minha mulher que é cabo–verdiana, sorri com as faltas de água no continente... Aprendemos a subsistir nas secas e no sub-desenvolvimento. Mais: aprendemos a não ter promiscuidade, mesmo sem água: alguma vez, em Cabo Verde, por exemplo, houve epidemias causadas pelo subdesenvolvimento?
Onde irá então parar esse famoso argumento de que o subdesenvolvimento é sinónimo de terríveis e tremebundas epidemias? Quando o branco entra a matar, a chacinar, a disseminar os vírus da sua baba e da sua porcaria, dos seus dejectos, é claro, é fatal! os subdesenvolvidos entram em crise de saúde.
Não é apenas o sub-desevolvimento que provoca a doença: são as humilhações infligidas à dignidade do cada povo – com suas economias de subsistência completamente destroçadas, sua cultura e sua personalidade destruída, é isso que provoca as endemias. É o etnocídio que dá origem às doenças do subdesenvolvimento - não a miséria económica.

É acima de tudo a miséria moral infligida a um povo que o torna presa das doenças endémicas. Ser espezinhado pelo porco branco, pelo canibal civilizado, isso é que é a doença.
E eu, aqui, que o diga.

Somos nós, pois, que temos a técnica da resistência passiva. Quando a eles lhes faltarem as orgias e os uísques, nós sabemos até onde é preciso cavar para conseguir água pura. Será o momento da nossa sobrevivência e da nossa vingança. Quem aprendeu a sobreviver debaixo das bombas americanas, saberá sobreviver quando as bombas e a gasolina dos helicópteros chegar ao fim. Nós, índios americanos, sabemos onde ir desenterrar venenos letais e curativos, quando eles já nem osso tiverem que roer. Mesmo que nos tenham exterminado a todos, saberemos renascer.

A esta hora, apopléticos, eles estão consultando os seus potentes computadores, os seus economistas de estimação, que, desta vez, mastigam em seco. Os primeiros a marchar para a cadeira eléctrica, serão essas bruxas obesas e falidas do tipo Khan. Engordaram que nem porcos, raciocinam como gibóias, emitem guinchos como os macacos: tudo isto no intervalo dos últimos arrotos dos últimos uísques.
Se o fim dos bodes capitalistas está perto, estejamos no entanto certos de que não serão - como se tem visto – certos suaves socialismos a contribuir para isso. O bode capitalista há-de esbodegar-se, mas de indigestão e muitos coexistentes o seguirão na peugada.
O socialismo vigora há mais de meio século e, tal como o cristianismo em dois milénios, soube apenas dar o beneplácito aos fortes, e aos fracos as palavras de consolação que os resignassem das bordoadas.
Falidos os suaves socialismos - também por apoplexia de fartura - só na Ecologia – quer dizer na Revolução- reside a derradeira e decisiva esperança de ver rebentar os odres de banha, as barricas de proteína de todos os magarefes, que, doutorados nisto ou naquilo, regem este mundo.
Só a Ecologia é Esperança, porque lhes retira o Poder, quer dizer, a chispalhada, o porco na brasa , a suculenta churrasqueira, o empanzinamento de combustíveis e etc.
Vamos a ver agora quem é capaz de sobreviver na penúria.
Quando eles gritam que não têm gasolina e começam à estalada, gozamos nós, os subdesenvolvidos, o momento feliz em que nos veremos livres das suas latas invadindo o mundo, dos seus claxons, das suas motorizadas e do seu mau hálito, do seu mau cheiro. Quando berram que lhes vai faltar energias, antegozo o momento em que verei as centrais nucleares todas no prego, e livre a humanidade dessa aberração que só poderia ter nascido nos cérebros sacrossantos de eminentes sábios que do nazismo hitleriano se refugiaram para criadas de todo o serviço no nazismo norte-americano.
Para maior esperança e gozo do meu coração de português, é justamente agora, quando o panorama mundial se apresenta com este lindo aspecto, que a febre economicista sobe ainda mais alto em Portugal.
Claro, à cabeça o inefável Expresso, berço do funeral tecnocrático. Mas novas revistas, novos grupos de economia se anunciam, o frenesi entra no auge com o não sei quantos plano de Fomento, os terminais oceânicos, a industrialização acelerada.
Acelerai, irmãos, que a gasolina está no fim e já falta pouco.
Eu bem os oiço, aos futuros economistas da Nação , aqui pelas ruas, praticando nas suas motocicletas, os moto-crosses da sua virilidade duvidosa, bem os ouço, agora na idade rósea dos 18, acelerando, acelerando, acelerando, naquele ruído típico dos aceleras e que é, ipsis verbis, igual ao de uma intensa diarreia pela pia abaixo. Tais crianças hão-de dar belíssimos economïstas à Nação, dirigentes de empresas e, de certeza, lindíssimos políticos do Ambiente simpáticos deputados liberais. Estão, com certeza, suficientemente cafrealizados pelo distinto ruído das suas queridas motoretas, estão com certeza, para poderem ascender a postos de tanta responsabilidade.

Perante este quadro paradisíaco, vem agora o meu amigo José Saramago sugerir que essa história da escassês de combustíveis é boato, alarme só para alarmismo.
Não queira tirar-me, amigo Saramago, a maior alegria da minha vida e a única esperança deste sub-desenvolvido que compartilha com alguns milhões a sorte de pertencer aos espoliados do Terceiro Mundo, via Ecologia, evidentemente.
Afonso Cautela
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