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*DEEP ECOLOGY - NOTE-BOOK OF HOPE - HIGH TIME *ECOLOGIA EM DIÁLOGO - DOSSIÊS DO SILÊNCIO - ALTERNATIVAS DE VIDA - ECOLOGIA HUMANA - ECO-ENERGIAS - NOTÍCIAS DA FRENTE ECOLÓGICA - DOCUMENTOS DO MEP

2006-06-03

LISBOA 1972

1-2 - 72-06-03-ie> quinta-feira, 12 de Dezembro de 2002-scan

A ECOLOGIA É REACCIONÁRIA (*)

[3/Junho/1972, in «Notícias da Amadora»] - A TV ocupa-se agora dos "problemas sem importância" que são os do meio ambiente e os flagelos ignorados por todos (mas de que todos pagam as sequelas) que são os do desequilíbrio cada vez maior entre homem e terra, entre biologia e física, entre felicidade e prosperidade.
"Há só uma terra", proclama a rubrica do deputado Correia da Cunha, e de facto eu fartei-me de procurar debaixo da cómoda e não consegui encontrar mais nenhuma.
Há só uma Terra, e, a propósito, numa das últimas emissões, abordou-se o ruído da cidade de Lisboa, como que a avisar-nos também de que Lisboa é só uma e o engenheiro Santos e Castro não nos dará mais nenhuma se a gente estragar esta. Vamos, pois, estragar e o mais de-pressa melhor.
Acho que rubrica exagera. Ruídos em Lisboa é coisa que não conheço, nem de vista. Comboios ao rés da porta, claxons pelo patamar dentro, aviões a rasar o telhado e as (nossas) cabecinhas, a construção civil por todos os lados a martelar, a derrubar, a reconstruir, a necessidade camarária de esburacar a cidade à razão de 10 buracos por minuto, - não, não me parece que sejam coisas graves, sequer problemas, e que haja, nesta cidade, sensibilidade que se incomode com tão subtis variações de meio ambiente.
O homem (refiro-me ao homo sapiens), especialmente se munícipe alfacinha, habitua-se a tudo. Adapta-se para sobreviver. É um verdadeiro sobrevivente nato. As consequências a longo prazo? Que interessa isso? A quem importa que tudo isso vá reflectir-se na saúde pública, física e mental? Que importa a saúde, pública ou privada, se temos tanto bom medicamento para nos salvar da doença e da morte? Que importa a doença? Que importa a morte? São acaso problemas políticos, tais e que tantas insignificâncias?
Quando a doença irrompe, é verdade que ficam todos muito admirados, mas arma-se logo uma campanha filantrópica, subsidiada pela Fundação e acompanhada pela solícita Imprensa da modalidade.
Quando ao surtos endémicos irrompem explosivamente, remenda-se, vacina-se, põe-se o penso. É uma posição, uma medida progressiva à brava, científica, racional, prospectiva e bastante política, o Remendo.
Aliás, que é que se não remenda aqui? Depois de roubado, portas novas. Tudo se trata caritativamente, porque lá caridade não falta nos nossos corações, que acorrem em cardume ao cha-mamento de qualquer campanha em prol, em prol, em prol. Em prol, senhor munícipe! que bons e confortáveis os panos quentes do reformismo!
Acho que o deputado Correia da Cunha exagerou no seu progra-ma sobre ruídos da cidade. Exagerou em considerar o ruído um flagelo, um problema, sequer um epidérmico incómodo. Suspeito de que não terá ninguém por ele. As pessoas até gostam, até se lambem e arranjam ruídos suplementares para enganar a solidão e ajudar o sono (que não vem, o sono!). Arranjam transistores para lhes berra-rem aos ouvidos.
E acima de tudo, as pessoas que não são parvas, arranjam cães, cães que ladram, que abanam o rabo, que não mordem, cães que uivam, cães que gritam, cães asseptizados que, de dois em dois mi-nutos, entoam em coro no mais delicioso e mozartiano terceto, quarteto mesmo, quando Deus quer, quinteto. Não é raro, não é difícil encontrar em casas de 2 assoalhadas, pessoas dormindo às três numa cama e amamentando 2 ou 3 cães que, como não cabem nas assoalhadas, vão para a varanda entoar seu harmónico concerto a 2, 3 e, quando Deus quer, a 4 vozes!
Ruído a mais, em Lisboa, senhor deputado Correia da Cunha? Parece-me exagero! No fundo, não me parece que ninguém, nem tão pouco as autoridades que vigiam a cidade e seu sono, sua saúde, seu sossego, sua paz, sua ordem, que ninguém esteja incomodado com esta perfeita invasão de canídeos que ocupou literal e cultural-mente a cidade. Aliás, cada um na sua casa, paga a peso de ouro (1 000 escudos por assoalhada), é rei e dá o biberon aos cãezinhos que tiver no apetite.
Tão pouco as autoridades me parecem preocu-padas com o colérico surto que tais canídeos podem promover. E todas as doenças de que, culturalmente, podem ser os higiénicos transmissores. Sejamos coerentes e não exageremos: eu, que até gosto dos cantantes animaizinhos, destes domésticos bibelôs, acho que fazem falta na cidade mais uns milhares para repovoarem o reino.
Acho que cada família de 4 membros deveria ter direito pelo menos a 5, para haver sempre um sobresselente. Acho justíssimo e um direito familiar tão importante como o abono.
Isso de ruídos e de poluição são cantigas, histórias de reaccionários que, em vez de se preocuparem com os problemas sérios da política e sócio-económicos, querem mas é distrair a atenção das massas com perigos (imaginários) como o oxigénio que está em vias de esgotar-se, e outras, outras mirabolantes manias.
A Ecologia é reaccionária, é a primeira ciência reaccionária da História, dizem-nos os nossos melhores e mais abalizados técnicos, os nossos médicos mais eminentes. Para que anda agora a TV e o Luís Filipe Costa, que é homem inteligente como poucos na nossa Rádio, iludido com esses boatos de maus profetas?
Deixemos que os cães se multipliquem, biblicamente, ainda a maior velocidade, deixemos que ergam em coro as suas cristalinas vozes e façam da cidade, em breve, não o habitat dos homens que nós já deixámos de ser mas no canil superpovoado que todos merecemos e necessitamos como domesticados canídeos que de há muito já somos.
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(*) Este texto de Afonso Cautela, um pouco menos execrável do que o outro que já hoje scanei, sobre cães, não deixa de ser execrável, com a agravante de ter sido publicado, creio que no «Notícias da Amadora»
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