PSIQUIATRIA 1990
saraiva-1> notas de leitura – inédito ac de 1990 – texto de 5 estrelas
O CASO CLÍNICO DA PSIQUIATRIA - APROPÓSITO DO LIVRO DE MÁRIO SARAIVA «O CASO CLÍNICO DE FERNANDO PESSOA» - A MEDICINA COMO SISTEMA REPRESSIVO EXEMPLAR
Quando se julgava completamente fora de perigo, o caso da Psiquiatria académica agrava-se.E tem recidivas graves, como este livro escrito por Mário Saraiva, sobre "O Caso Clínico de Fernando Pessoa". Volta-se o feitiço contra o feiticeiro
Só ha uma posição sexualmente correcta , moral, certa e relevante: mandar a psiquiatria e os psiquiatras, todos, para o inferno. E que lhes faça bom proveito.
Fernando Pessoa morto nunca mais acaba de alimentar os vivos. Depois de servir para nome de uma loja maçónica, vê-se outra vez alvo do ataque médico, que acaba de deslindar o seu "caso clínico" com base em documentos comprovativos. Parafraseando Antonin Artaud, "os que vivem, vivem dos mortos".
20/5/1990 - Se o próprio Fernando Pessoa, em carta a Gaspar Simões (11/12/1931), se classificava de "histeroneurasténico" com predominância do elemento histérico na emoção e do elemento neurasténico na inteligência e na vontade", deixou campo aberto e lícito para que a medicina psiquiátrica o declare, mesmo post-mortem, um "caso clínico", como faz, em livro publicado pela editora Referendo, o Dr. Mário Saraiva, médico de clínica geral mas interessado nos casos patológicos que deram obras de arte.
Se é certo que o Dr. Mário Saraiva duvida que Fernando Pessoa seja um génio, não vendo grande beleza nas suas poesias, não deixa no entanto de o considerar um "poeta interessante" como nos disse em conversa amena.
Mesmo na "Mensagem", Mário Saraiva já julga perceber sinais de uma certa "perturbação" e de "dissociação psíquica" que viria a culminar numa "esquizofrenia paranoide", facto que o leva a aprofundar pormenores da "doença mental" de que o poeta padecia.
E como as confissões de Fernando Pessoa , devido à sua incurável "graforreia" (''não parava nunca de escrever" exclama Mário Saraiva) são abundantes, o olho clínico de um médico sente-se irresistivelmente atraído para terreno tão fértil, inclinando-se de imediato para um diagnóstico reservado, ainda que, para a terapêutica (de choque) seja um bocado tarde.
Munindo-se dos tratados da ciência médica que classificaram todas as doenças mentais possíveis e imaginárias, criando um armário de gavetas tão grande como um hospital, Mário Saraiva não tarda em descobrir, como nos diz, alguns dos rótulos que esses tratados compendiam e que se ajustam, como uma luva, a "esquizofrenia mista" ( esquizofrenia com paranóia) do poeta e seus heterónimos.
Para ele, os heterónimos não constituem qualquer mistério, antes a prova declarada de que se trata de uma "personalidade" oscilante nas suas várias partes, ora integradas, ora desintegradas.
A SEXUALIDADE DE FERNANDO PESSOA
Um ponto que logo agradará à posteridade saber sobre um poeta como Fernando Pessoa é o da sua "sexualidade", como dizem os tratados, separando a partida e a priori os órgãos genitais do corpo afectivo-erótico.
A esse respeito, Mário Saraiva não encontrou nada definido no sexo de Pessoa, por mais que prescrute à lupa:
" Este único namoro (Ofélia Marques), foi, portanto, um devaneio que lhe bastou, e talvez aquele que somente se deparou como possível à sua timidez e aos complexos que o inibiam de tratar com mulheres. "
E acrescenta: "Para a maneira de ser de Fernando Pessoa, era fatal que o idílio sui generis com Ofélia (como aliás com qualquer outra que fosse) se frustraria. Na realidade não passou de uma ficção, só durável enquanto foi exercício e deleite dos sentidos. Este namoro nunca poderia ser o prelúdio do casamento, ou qualquer coisa parecida, por evidente carência de masculinidade de Fernando Pessoa."
Para lá do recorte harmonioso que o Dr. Saraiva confere a esta frase, é de salientar, como aguda observação científica, o "deleite dos sentidos", o "idílio sui generis” e o "namoro como prelúdio do casamento" : vem tudo nos tratados de Psiquiatria e a nomenclatura está conforme.
Depois de mais algumas elocubrações de grande profundidade, Saraiva define lapidarmente: "Estamos em frente de uma misoginia fundamental a provocar a misogamia".
Quem não queria estar em frente era eu.
MASCULINIDADE DE PESSOA
A dúvida de Saraiva sobre o grau de "masculinidade" de Pessoa advém de uma descoberta sensacional que fez na arca-espólio do poeta, onde vampiros e comadres bisbilhoteiras desde Gaspar Simões e Jacinto Prado Coelho até Eduardo Lourenço e Taborda de Vasconcelos, se têm ido abastecer.
Trata-se de uma carta assinada por uma tal Maria José e dirigida a um serralheiro do bairro...
O Dr. Saraiva considera não só que é uma prova explícita da ambiguidade sexual de Pessoa (travestindo-se de Maria José ...) mas vai ao ponto de considerar este simples personagem de um conto (sob forma) epistolar... um novo heterónimo.
Segundo este doutor em medicina, o facto de Pessoa ter inventado uma narrativa que põe na boca de uma personagem feminina, é prova mais do que suficiente para duvidar da masculinidade do poeta.
O que diria então Saraiva de Flaubert, que se considerava a própria Madame Bovary "herself"...
Uma das coisas que as comadres bisbilhoteiras estão ansiosas por saber é se Fernando Pessoa teve ou não teve relações com mulheres, se tinha inclinações para o mesmo e o outro sexo, etc, etc.
Isto excita sempre as comadres bisbilhoteiras e a psiquiatria, desta feita, fez-lhes a vontade, pois o livro do Dr. Mário Saraiva antecipa a publicação que a Drª Teresa Rita Lopes, guardiã da arca, tinha intencionado fazer, do mais "comprometedor" - na opinião do Dr. Saraiva - texto de Pessoa.
Então não é que ele escreve uma carta em nome de uma tal Maria José dirigida a um tal serralheiro do bairro?
Pouco faltou para termos uma "lady Chaterley" em versão de Alfama... Maior escândalo ainda do que quando Flaubert se disse Madame Bovary...
O autor de "O Caso Clínico de Fernando Pessoa" não se mostra muito disposto a aceitar o "mito" Fernando Pessoa e ao detectar-lhe os "fracos" , está exactamente a reduzi-lo a proporções muito mais modestas do que aquelas que a posteridade lhe quer dar.
Talvez porque a medicina em geral e a psiquiatria em particular seja incapaz de duas coisas:
- Por um lado, incluir-se ela própria como objecto patológico e caso clínico incurável
- Por outro lado, aceitar que um poeta não se destina só a ser rotulado disto e daquilo mas a servir (com o seu testemunho, as suas confissões, a sua sinceridade fingida) de companheiro aos outros homens que nele encontram eco de si próprios.
INCAPACIDADE CONGÉNITA DA PSIQUIATRIA
Perante esta incapacidade congénita da Psiquiatria para se auto-diagnosticar e para se curar, a conclusão só pode ser uma: se Pessoa encontrou o eco que encontrou, por toda a parte, do seu caso, é porque o seu caso (a sua doença mental) é, afinal, a de muitos milhões de pessoas.
Exclui-se, destes milhões, o Dr. Saraiva e aqueles psiquiatras que se colocam sempre para lá dessas fraquezas humanas que tanto gostam de rotular nos outros com nomes esquisitos e rebarbativos.
Destinado a novas polémicas em torno da personalidade mais discutida, comentada e esquartejada da poesia portuguesa, o livro do Dr. Mário Saraiva tem o mérito de se expor a críticas que também lhe serão necessariamente feitas pelos que admitem uma indissociável dimensão patológica nos homens de génio.
Mérito, ainda, é ter compilado, num conjunto homogéneo, embora recheado de inocuidades, o que o poeta disse do seu próprio "caso clínico" e das suas permanentes contradições.
O trabalho aí fica, acrescentando-se assim mais um título à interminável bibliografia pessoana, como diria acacianamente Gaspar Simões, seu primeiro biógrafo.
RECIDIVAS DO POSITIVISMO
Quando se pensava que o positivismo já dera a alma ao seu criador - Augusto Comte - eis que surgem "recidivas" e se notam manifestações patológicas inesperadas no corpo clínico da ciência médica, inquietantes manifestações de anacronismo.
Uma "inocência" assim como a do Dr. Mário Saraiva, descascando "o caso clínico de Fernando Pessoa" como quem descasca amendoins, pensavam os mais bem intencionados que já não era possível nem passível de surgir hoje no mundo das artes, letras e ciências.
Ora, como sempre acontece nestas emergências "anacrónicas", o mal que Pedro diz de Paulo acaba por nos revelar muito mais sobre Pedro do que propriamente sobre Paulo. É assim que o mal que Saraiva diz de Pessoa acaba por revelar muito mais do Saraiva do que do Pessoa, que este a gente já conhece de ginjeira e em todas as posições.
Se o Dr. Saraiva é, para todos nós, um ilustre desconhecido, a verdade é que a pessoa de Pessoa , a sua multiforme personalidade, a sua incrível energia criadora, passou a barreira do Bem e do Mal, da Doença e da Sanidade, do Belo e do Feio, do Formal e do Anormal - passou a barreira "moralizante" dos termos contrários antagonistas em que a ciência em geral, a ciência médica em particular e a ciência psiquiátrica ainda mais em particular, ainda hoje chafurda, convencida de que há-de redimir o Mundo dos bons, exterminando a outra parte (a dos Maus). Daí que o Dr. Saraiva pesquise em Pessoa, até ao penico, todas as perversões, inversões e aversões possíveis e impossíveis, reais e imaginarias, numa fúria persecutória que não tem par em qualquer época, mesmo áurea, da santa inquisição.
QUANDO O PEQUENO QUER SUBMETER O GRANDE
Com esta obra de Mário Saraiva, é toda a ciência médica que se expõe. Quando ele se atreve a colocar o caso imenso de Fernando Pessoa na mesa pequenina das observações anatómicas , é a sua pequenez que se acentua.
E é muito bem feito que aconteça o que vai acontecer. Atrevendo-se a tanto, Mário Saraiva irá suscitar sobre si e não sobre Pessoa o odioso e o patético que sempre têm que surgir quando o pequeno quer submeter o grande à sua lei.
Esta é que é a perversão e a inversão fundamental do Universo, Dr. Saraiva.
O livro de Saraiva é assim "um caso clínico da Psiquiatria" que se julgava historicamente ultrapassado mas que surge a pedir assistência médica urgente.
Ao surgir no mercado, o livro da editorial Referendo ficará como o típico exemplar do discurso "beato" sobre o génio criador - o que deve fazer lei em Psicologia - tentando ressuscitar o cadáver de todas as psicologias e psiquiatrias académicas, devidamente embalsamadas já e há muito.
No fundo, é um triste espectáculo de revivalismo sem clima da época. É um triste espectáculo de embalar mortos - os preconceitos todos de uma ciência fóssil e completamente exangue.
Mas - o que é pior para o Establishment - Saraiva coloca, com o seu livro, o sistema médico em posição extremamente delicada , obrigado a "demarcar-se" relativamente ao "caso clínico” do Dr. Saraiva, com o qual, evidentemente, depois da Psicanálise e não da Anti-psiquiatria (neosofistica médica) se não deseja ver identificado.
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O CASO CLÍNICO DA PSIQUIATRIA - APROPÓSITO DO LIVRO DE MÁRIO SARAIVA «O CASO CLÍNICO DE FERNANDO PESSOA» - A MEDICINA COMO SISTEMA REPRESSIVO EXEMPLAR
Quando se julgava completamente fora de perigo, o caso da Psiquiatria académica agrava-se.E tem recidivas graves, como este livro escrito por Mário Saraiva, sobre "O Caso Clínico de Fernando Pessoa". Volta-se o feitiço contra o feiticeiro
Só ha uma posição sexualmente correcta , moral, certa e relevante: mandar a psiquiatria e os psiquiatras, todos, para o inferno. E que lhes faça bom proveito.
Fernando Pessoa morto nunca mais acaba de alimentar os vivos. Depois de servir para nome de uma loja maçónica, vê-se outra vez alvo do ataque médico, que acaba de deslindar o seu "caso clínico" com base em documentos comprovativos. Parafraseando Antonin Artaud, "os que vivem, vivem dos mortos".
20/5/1990 - Se o próprio Fernando Pessoa, em carta a Gaspar Simões (11/12/1931), se classificava de "histeroneurasténico" com predominância do elemento histérico na emoção e do elemento neurasténico na inteligência e na vontade", deixou campo aberto e lícito para que a medicina psiquiátrica o declare, mesmo post-mortem, um "caso clínico", como faz, em livro publicado pela editora Referendo, o Dr. Mário Saraiva, médico de clínica geral mas interessado nos casos patológicos que deram obras de arte.
Se é certo que o Dr. Mário Saraiva duvida que Fernando Pessoa seja um génio, não vendo grande beleza nas suas poesias, não deixa no entanto de o considerar um "poeta interessante" como nos disse em conversa amena.
Mesmo na "Mensagem", Mário Saraiva já julga perceber sinais de uma certa "perturbação" e de "dissociação psíquica" que viria a culminar numa "esquizofrenia paranoide", facto que o leva a aprofundar pormenores da "doença mental" de que o poeta padecia.
E como as confissões de Fernando Pessoa , devido à sua incurável "graforreia" (''não parava nunca de escrever" exclama Mário Saraiva) são abundantes, o olho clínico de um médico sente-se irresistivelmente atraído para terreno tão fértil, inclinando-se de imediato para um diagnóstico reservado, ainda que, para a terapêutica (de choque) seja um bocado tarde.
Munindo-se dos tratados da ciência médica que classificaram todas as doenças mentais possíveis e imaginárias, criando um armário de gavetas tão grande como um hospital, Mário Saraiva não tarda em descobrir, como nos diz, alguns dos rótulos que esses tratados compendiam e que se ajustam, como uma luva, a "esquizofrenia mista" ( esquizofrenia com paranóia) do poeta e seus heterónimos.
Para ele, os heterónimos não constituem qualquer mistério, antes a prova declarada de que se trata de uma "personalidade" oscilante nas suas várias partes, ora integradas, ora desintegradas.
A SEXUALIDADE DE FERNANDO PESSOA
Um ponto que logo agradará à posteridade saber sobre um poeta como Fernando Pessoa é o da sua "sexualidade", como dizem os tratados, separando a partida e a priori os órgãos genitais do corpo afectivo-erótico.
A esse respeito, Mário Saraiva não encontrou nada definido no sexo de Pessoa, por mais que prescrute à lupa:
" Este único namoro (Ofélia Marques), foi, portanto, um devaneio que lhe bastou, e talvez aquele que somente se deparou como possível à sua timidez e aos complexos que o inibiam de tratar com mulheres. "
E acrescenta: "Para a maneira de ser de Fernando Pessoa, era fatal que o idílio sui generis com Ofélia (como aliás com qualquer outra que fosse) se frustraria. Na realidade não passou de uma ficção, só durável enquanto foi exercício e deleite dos sentidos. Este namoro nunca poderia ser o prelúdio do casamento, ou qualquer coisa parecida, por evidente carência de masculinidade de Fernando Pessoa."
Para lá do recorte harmonioso que o Dr. Saraiva confere a esta frase, é de salientar, como aguda observação científica, o "deleite dos sentidos", o "idílio sui generis” e o "namoro como prelúdio do casamento" : vem tudo nos tratados de Psiquiatria e a nomenclatura está conforme.
Depois de mais algumas elocubrações de grande profundidade, Saraiva define lapidarmente: "Estamos em frente de uma misoginia fundamental a provocar a misogamia".
Quem não queria estar em frente era eu.
MASCULINIDADE DE PESSOA
A dúvida de Saraiva sobre o grau de "masculinidade" de Pessoa advém de uma descoberta sensacional que fez na arca-espólio do poeta, onde vampiros e comadres bisbilhoteiras desde Gaspar Simões e Jacinto Prado Coelho até Eduardo Lourenço e Taborda de Vasconcelos, se têm ido abastecer.
Trata-se de uma carta assinada por uma tal Maria José e dirigida a um serralheiro do bairro...
O Dr. Saraiva considera não só que é uma prova explícita da ambiguidade sexual de Pessoa (travestindo-se de Maria José ...) mas vai ao ponto de considerar este simples personagem de um conto (sob forma) epistolar... um novo heterónimo.
Segundo este doutor em medicina, o facto de Pessoa ter inventado uma narrativa que põe na boca de uma personagem feminina, é prova mais do que suficiente para duvidar da masculinidade do poeta.
O que diria então Saraiva de Flaubert, que se considerava a própria Madame Bovary "herself"...
Uma das coisas que as comadres bisbilhoteiras estão ansiosas por saber é se Fernando Pessoa teve ou não teve relações com mulheres, se tinha inclinações para o mesmo e o outro sexo, etc, etc.
Isto excita sempre as comadres bisbilhoteiras e a psiquiatria, desta feita, fez-lhes a vontade, pois o livro do Dr. Mário Saraiva antecipa a publicação que a Drª Teresa Rita Lopes, guardiã da arca, tinha intencionado fazer, do mais "comprometedor" - na opinião do Dr. Saraiva - texto de Pessoa.
Então não é que ele escreve uma carta em nome de uma tal Maria José dirigida a um tal serralheiro do bairro?
Pouco faltou para termos uma "lady Chaterley" em versão de Alfama... Maior escândalo ainda do que quando Flaubert se disse Madame Bovary...
O autor de "O Caso Clínico de Fernando Pessoa" não se mostra muito disposto a aceitar o "mito" Fernando Pessoa e ao detectar-lhe os "fracos" , está exactamente a reduzi-lo a proporções muito mais modestas do que aquelas que a posteridade lhe quer dar.
Talvez porque a medicina em geral e a psiquiatria em particular seja incapaz de duas coisas:
- Por um lado, incluir-se ela própria como objecto patológico e caso clínico incurável
- Por outro lado, aceitar que um poeta não se destina só a ser rotulado disto e daquilo mas a servir (com o seu testemunho, as suas confissões, a sua sinceridade fingida) de companheiro aos outros homens que nele encontram eco de si próprios.
INCAPACIDADE CONGÉNITA DA PSIQUIATRIA
Perante esta incapacidade congénita da Psiquiatria para se auto-diagnosticar e para se curar, a conclusão só pode ser uma: se Pessoa encontrou o eco que encontrou, por toda a parte, do seu caso, é porque o seu caso (a sua doença mental) é, afinal, a de muitos milhões de pessoas.
Exclui-se, destes milhões, o Dr. Saraiva e aqueles psiquiatras que se colocam sempre para lá dessas fraquezas humanas que tanto gostam de rotular nos outros com nomes esquisitos e rebarbativos.
Destinado a novas polémicas em torno da personalidade mais discutida, comentada e esquartejada da poesia portuguesa, o livro do Dr. Mário Saraiva tem o mérito de se expor a críticas que também lhe serão necessariamente feitas pelos que admitem uma indissociável dimensão patológica nos homens de génio.
Mérito, ainda, é ter compilado, num conjunto homogéneo, embora recheado de inocuidades, o que o poeta disse do seu próprio "caso clínico" e das suas permanentes contradições.
O trabalho aí fica, acrescentando-se assim mais um título à interminável bibliografia pessoana, como diria acacianamente Gaspar Simões, seu primeiro biógrafo.
RECIDIVAS DO POSITIVISMO
Quando se pensava que o positivismo já dera a alma ao seu criador - Augusto Comte - eis que surgem "recidivas" e se notam manifestações patológicas inesperadas no corpo clínico da ciência médica, inquietantes manifestações de anacronismo.
Uma "inocência" assim como a do Dr. Mário Saraiva, descascando "o caso clínico de Fernando Pessoa" como quem descasca amendoins, pensavam os mais bem intencionados que já não era possível nem passível de surgir hoje no mundo das artes, letras e ciências.
Ora, como sempre acontece nestas emergências "anacrónicas", o mal que Pedro diz de Paulo acaba por nos revelar muito mais sobre Pedro do que propriamente sobre Paulo. É assim que o mal que Saraiva diz de Pessoa acaba por revelar muito mais do Saraiva do que do Pessoa, que este a gente já conhece de ginjeira e em todas as posições.
Se o Dr. Saraiva é, para todos nós, um ilustre desconhecido, a verdade é que a pessoa de Pessoa , a sua multiforme personalidade, a sua incrível energia criadora, passou a barreira do Bem e do Mal, da Doença e da Sanidade, do Belo e do Feio, do Formal e do Anormal - passou a barreira "moralizante" dos termos contrários antagonistas em que a ciência em geral, a ciência médica em particular e a ciência psiquiátrica ainda mais em particular, ainda hoje chafurda, convencida de que há-de redimir o Mundo dos bons, exterminando a outra parte (a dos Maus). Daí que o Dr. Saraiva pesquise em Pessoa, até ao penico, todas as perversões, inversões e aversões possíveis e impossíveis, reais e imaginarias, numa fúria persecutória que não tem par em qualquer época, mesmo áurea, da santa inquisição.
QUANDO O PEQUENO QUER SUBMETER O GRANDE
Com esta obra de Mário Saraiva, é toda a ciência médica que se expõe. Quando ele se atreve a colocar o caso imenso de Fernando Pessoa na mesa pequenina das observações anatómicas , é a sua pequenez que se acentua.
E é muito bem feito que aconteça o que vai acontecer. Atrevendo-se a tanto, Mário Saraiva irá suscitar sobre si e não sobre Pessoa o odioso e o patético que sempre têm que surgir quando o pequeno quer submeter o grande à sua lei.
Esta é que é a perversão e a inversão fundamental do Universo, Dr. Saraiva.
O livro de Saraiva é assim "um caso clínico da Psiquiatria" que se julgava historicamente ultrapassado mas que surge a pedir assistência médica urgente.
Ao surgir no mercado, o livro da editorial Referendo ficará como o típico exemplar do discurso "beato" sobre o génio criador - o que deve fazer lei em Psicologia - tentando ressuscitar o cadáver de todas as psicologias e psiquiatrias académicas, devidamente embalsamadas já e há muito.
No fundo, é um triste espectáculo de revivalismo sem clima da época. É um triste espectáculo de embalar mortos - os preconceitos todos de uma ciência fóssil e completamente exangue.
Mas - o que é pior para o Establishment - Saraiva coloca, com o seu livro, o sistema médico em posição extremamente delicada , obrigado a "demarcar-se" relativamente ao "caso clínico” do Dr. Saraiva, com o qual, evidentemente, depois da Psicanálise e não da Anti-psiquiatria (neosofistica médica) se não deseja ver identificado.
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