MEDICINAS 1989
89-03-29-cm> = dcm89-5> = diário de um consumidor de medicinas 1989
DISFARÇAR A FARSA - MEDICINA, MEU AMOR
29/Março/1989 - A medicina é formidável.
Tem artes exímias de reduzir o doente aos esquemas que previamente montou para o enquadrar (aquilo a que chama o diagnóstico), os rótulos que inventou para o rotular.
Tem artes de convencer um homem de que vale a pena viver a vida.
Mas serei eu um homem que me deixe convencer pela medicina?
Queixava-me eu à drª M.J.R.F.M., uma excelente médica de crianças, dos sintomas que ultimamente, nos últimos três séculos, se me têm agravado mas que resultam de um núcleo depressivo inicial que me é estruturalmente inato.
Não pedi à doutora reformas estruturais, já que me contentava em cortar o mal pela raiz e que ela me dissesse como o havia de fazer, com menos dor possível.
Falei de insónias (quando sempre consegui dormir bem, até de pé e nas bichas de autocarro) falei de falhas cada vez maiores e mais frequentes de memória, falei da cabeça ocupada com as obsessões que agora se me tornaram rotina, desde a acção de despejo que me vai comendo aos bocadinhos, desde 8 de Julho de 1989, dia em que recebi a notificação, até à mais recente notificação-mistério para comparecer no tribunal criminal de Oeiras, sem saber do que se trata , de que me acusam e quem me acusa.
Enfim, falei à médica do que me «doía», embora, como sempre a alma me doesse muito mais do que a própria pontada nas costas, no flanco contrário ao que é habitual ser atacado pelas periódicas crises do meu artritismo crónico.
Falei da «angústia», que não distingo bem da «ansiedade» - e a doutora explicou que a angústia é mais vago do que a ansiedade.
Resumindo: nada de grave . Ao fim e ao cabo não parti perna nenhuma, graças a deus, nem tenho que transplantar nenhum fígado. Estou, além disso, suficientemente lúcido para ter consciência do meu caso, e isso só prova de que não estou doido: posso estar à beira de um esgotamento (agora diz-se em termos de Almodólar , «ataque de nervos») mas nos dias mais próximos não estou ainda à beira da loucura.
Suicídio, também é muito improvável que me consiga safar por aí. E porquê? Porque a minha depressão não é endógena, diz-me a doutora. Aí está a magia da palavra «endógena» a delimitar , com fronteiras de betão, o meu problema.
É seguro, para a medicina, que não tenho uma depressão endógena, pois se a tivesse, a doutora, que é de clínica geral, me remeteria, de imediato, para um especialista, ou seja, um psiquiatra: ela, de clínica geral, só se sente autorizada a tratar neuroses ligeiras. No melhor dos casos, eu tenho uma neurose ligeira. Quer dizer: ainda não sou um caso de psiquiatria. Nem sequer nisto tenho o melhor, vou-me ficando pelo mediano e pelo medíocre.
Mas tentando ver agora as coisas post mortem, o que se verifica, em casos extremos, quando há homicídio e/ou suicídio, é que a medicina encontra sempre desculpas.
Ao Vítor Jorge e ao Cabo Antunes - os dois casos classificados de esquizofrenia , à posteriori, pelas sumidades e autoridades psiquiátricas (depois de os dois terem cometido os homicídios) os médicos também não diagnosticaram uma «depressão endógena». Até darem o resultado que deram - duas chacinas - eram casos de rotina, ligeiros, sem gravidade, pois depressões há por aí aos montes, todos somos ou estamos deprimidos e mal seria se, com esta sociedade que temos, assim não acontecesse.
Classificado o eu caso de menos grave ou sem gravidade, bem poderá ele, portanto, agravar-se até aos desenlaces fatais, porque - depois - foi apenas, na perspectiva médica, mais um erro de diagnóstico e errar é próprio do homem e, portanto, do médico, um ser humano como outro qualquer (quando isso lhe convém) à parte a arrogância que especialmente e habitualmente o caracteriza.
Com o argumento de que há sempre um caso mais grave do que o nosso, é evidente que tudo pode acontecer e que tudo se justifica,
Talvez haja um objectivo humanitário neste procedimento que ultimamente verifico em médicos e advogados. Eles procuram, afinal, consolar-nos das nossas desgraças com as desgraças maiores dos outros.
É a terapia humanitária.
Fazendo-nos crer que o nosso caso não é pior, nem é dos piores, deixa-nos mais tranquilos com a comparação, até o momento em que essa minimização de gravidade contribua efectiva e realmente para o agravar, definitivamente, irreversivelmente.
Nesse caso e a posteriori, post mortem, paciência. Coitado, que se lhe há-de fazer? É a vida. Lá se foi desta. Descansou, finalmente, o pobre.
Para isto serve a medicina tanto como um ramo de flores murchas sobre a cova.
Depende também do que eu ia pedir nesta consulta médica à drª M.J.R.F.M.. A consulta surgiu de maneira um tanto forçada para mim - que não ando propriamente a visitar médicos todos os dias e cá me vou aguentando. A consulta estava marcada para a A.C.M.P.C., mas ela faltou e eu não queria cometer a indelicadeza de, à última hora, deixar vazio aquele espaço na agenda da doutora. Fui eu o doente, portanto, nesta emergência médica.
A partir daí só me competia falar à médica das minhas queixas. mas no fundo não estava, como não estou há muito tempo, disposto a aceitar medicações, quer dizer, a mascarar a angústia com tratamentos de suavização.
Acho que em matéria psíquica não é disso que se trata, para o doente, mas de o ajudar a encontrar a melhor forma de sair da vida (eutanásia).
Eu sei que, para lá da minha estrutura psicótica, os factores desencadeantes e condicionantes são muitos, porque muitas são as chatices diárias. E muitas, muitas, muitas têm sido as chatices que há não sei quantos anos não têm cessado de me cair em cima (desde que nasci, em boa verdade).
Mas é preciso ser objectivo, positivo, neutral - como quer a ciência médica. E objectivo, positivo, neutral, é reconhecer que os factores condicionantes ou desencadeantes desempenham um papel bastante secundário em relação ao que chamo estrutura depressiva e a doutora chama depressão endógena.
Os factores condicionantes, as chatices, o chicote diário, o ambiente, podem funcionar como agravantes mas podem também funcionar como terapia, na medida em que provocam revolta e, em caso de neurose depressiva, a revolta, ao produzir níveis mais elevados de adrenalina, é de facto uma terapia, capaz de empurrar mais alguns passos para a arena p nado morto, o morto vivo, o zombie que eu sou.
Daqui resulta sem grande significado que a doutora me conte casos piores do que o meu, inclusive o seu. Foi um gesto de extrema delicadeza e cordialidade, sem dúvida, mas para uma nossa amizade futura (e o que eu queria, acima de tudo, era ter pouco ou nenhum futuro). Para o caso em apreço - o doente de um lado e o médico do outro - considero apenas uma manobra de distracção essas confissões pessoais que a doutora me fez da génese da sua própria neurose.
No fundo, o médico (tal como o advogado) quer cumprir o seu dever. O dever do advogado é ganhar causas - como me diz o Dr. F.T.da M. -e o dever do médico é tratar o doente - neste caso, impedir que ele se suicide, como me diz a doutora.
Mas, doutora, o que eu queria mesmo é que me encaminhasse na via do suicídio mais prático e sem dor.
«Dessa pode você estar bem livre» - responde-me ela.
Insisto: «Como ei-de fazer para me livrar disto, com o menor estrilho possível? E da maneira menos dolorosa, para mim e para os meus próximos mais imediatos?
Isto - repito eu - era o que eu queria de si, doutora, na qualidade que manifesta de ser minha amiga.
Não consegui. O suicídio, como todas as poucas coisas que valem verdadeiramente a pena na vida, é para se fazer a sós. A regra de ouro confirma-se (e toda a minha desfilosofia também): estaremos sempre sós, infinitamente sós, quando precisarmos verdadeiramente de ajuda.
Trouxe, portanto, em troca, uma medicação estupenda para me pôr fino num m~es.
Quer dizer: se seguir à risca este tratamento sem dúvida eficaz, dentro de um mês terei conseguido encobrir, mascarar a minha neurose depressiva básica e enganado, com mil e um alibis, com mil e uma desculpas, com mil e um celofanes cor de rosa, a certeza básica, profunda, estrutural, irrecusável, endógena, da chatice sem nome, da burla que é esta farsa, da farsa que é esta burla de viver.
Exacto:a medicina, no seu melhor, ajuda a disfarçar a farsa.
***
DISFARÇAR A FARSA - MEDICINA, MEU AMOR
29/Março/1989 - A medicina é formidável.
Tem artes exímias de reduzir o doente aos esquemas que previamente montou para o enquadrar (aquilo a que chama o diagnóstico), os rótulos que inventou para o rotular.
Tem artes de convencer um homem de que vale a pena viver a vida.
Mas serei eu um homem que me deixe convencer pela medicina?
Queixava-me eu à drª M.J.R.F.M., uma excelente médica de crianças, dos sintomas que ultimamente, nos últimos três séculos, se me têm agravado mas que resultam de um núcleo depressivo inicial que me é estruturalmente inato.
Não pedi à doutora reformas estruturais, já que me contentava em cortar o mal pela raiz e que ela me dissesse como o havia de fazer, com menos dor possível.
Falei de insónias (quando sempre consegui dormir bem, até de pé e nas bichas de autocarro) falei de falhas cada vez maiores e mais frequentes de memória, falei da cabeça ocupada com as obsessões que agora se me tornaram rotina, desde a acção de despejo que me vai comendo aos bocadinhos, desde 8 de Julho de 1989, dia em que recebi a notificação, até à mais recente notificação-mistério para comparecer no tribunal criminal de Oeiras, sem saber do que se trata , de que me acusam e quem me acusa.
Enfim, falei à médica do que me «doía», embora, como sempre a alma me doesse muito mais do que a própria pontada nas costas, no flanco contrário ao que é habitual ser atacado pelas periódicas crises do meu artritismo crónico.
Falei da «angústia», que não distingo bem da «ansiedade» - e a doutora explicou que a angústia é mais vago do que a ansiedade.
Resumindo: nada de grave . Ao fim e ao cabo não parti perna nenhuma, graças a deus, nem tenho que transplantar nenhum fígado. Estou, além disso, suficientemente lúcido para ter consciência do meu caso, e isso só prova de que não estou doido: posso estar à beira de um esgotamento (agora diz-se em termos de Almodólar , «ataque de nervos») mas nos dias mais próximos não estou ainda à beira da loucura.
Suicídio, também é muito improvável que me consiga safar por aí. E porquê? Porque a minha depressão não é endógena, diz-me a doutora. Aí está a magia da palavra «endógena» a delimitar , com fronteiras de betão, o meu problema.
É seguro, para a medicina, que não tenho uma depressão endógena, pois se a tivesse, a doutora, que é de clínica geral, me remeteria, de imediato, para um especialista, ou seja, um psiquiatra: ela, de clínica geral, só se sente autorizada a tratar neuroses ligeiras. No melhor dos casos, eu tenho uma neurose ligeira. Quer dizer: ainda não sou um caso de psiquiatria. Nem sequer nisto tenho o melhor, vou-me ficando pelo mediano e pelo medíocre.
Mas tentando ver agora as coisas post mortem, o que se verifica, em casos extremos, quando há homicídio e/ou suicídio, é que a medicina encontra sempre desculpas.
Ao Vítor Jorge e ao Cabo Antunes - os dois casos classificados de esquizofrenia , à posteriori, pelas sumidades e autoridades psiquiátricas (depois de os dois terem cometido os homicídios) os médicos também não diagnosticaram uma «depressão endógena». Até darem o resultado que deram - duas chacinas - eram casos de rotina, ligeiros, sem gravidade, pois depressões há por aí aos montes, todos somos ou estamos deprimidos e mal seria se, com esta sociedade que temos, assim não acontecesse.
Classificado o eu caso de menos grave ou sem gravidade, bem poderá ele, portanto, agravar-se até aos desenlaces fatais, porque - depois - foi apenas, na perspectiva médica, mais um erro de diagnóstico e errar é próprio do homem e, portanto, do médico, um ser humano como outro qualquer (quando isso lhe convém) à parte a arrogância que especialmente e habitualmente o caracteriza.
Com o argumento de que há sempre um caso mais grave do que o nosso, é evidente que tudo pode acontecer e que tudo se justifica,
Talvez haja um objectivo humanitário neste procedimento que ultimamente verifico em médicos e advogados. Eles procuram, afinal, consolar-nos das nossas desgraças com as desgraças maiores dos outros.
É a terapia humanitária.
Fazendo-nos crer que o nosso caso não é pior, nem é dos piores, deixa-nos mais tranquilos com a comparação, até o momento em que essa minimização de gravidade contribua efectiva e realmente para o agravar, definitivamente, irreversivelmente.
Nesse caso e a posteriori, post mortem, paciência. Coitado, que se lhe há-de fazer? É a vida. Lá se foi desta. Descansou, finalmente, o pobre.
Para isto serve a medicina tanto como um ramo de flores murchas sobre a cova.
Depende também do que eu ia pedir nesta consulta médica à drª M.J.R.F.M.. A consulta surgiu de maneira um tanto forçada para mim - que não ando propriamente a visitar médicos todos os dias e cá me vou aguentando. A consulta estava marcada para a A.C.M.P.C., mas ela faltou e eu não queria cometer a indelicadeza de, à última hora, deixar vazio aquele espaço na agenda da doutora. Fui eu o doente, portanto, nesta emergência médica.
A partir daí só me competia falar à médica das minhas queixas. mas no fundo não estava, como não estou há muito tempo, disposto a aceitar medicações, quer dizer, a mascarar a angústia com tratamentos de suavização.
Acho que em matéria psíquica não é disso que se trata, para o doente, mas de o ajudar a encontrar a melhor forma de sair da vida (eutanásia).
Eu sei que, para lá da minha estrutura psicótica, os factores desencadeantes e condicionantes são muitos, porque muitas são as chatices diárias. E muitas, muitas, muitas têm sido as chatices que há não sei quantos anos não têm cessado de me cair em cima (desde que nasci, em boa verdade).
Mas é preciso ser objectivo, positivo, neutral - como quer a ciência médica. E objectivo, positivo, neutral, é reconhecer que os factores condicionantes ou desencadeantes desempenham um papel bastante secundário em relação ao que chamo estrutura depressiva e a doutora chama depressão endógena.
Os factores condicionantes, as chatices, o chicote diário, o ambiente, podem funcionar como agravantes mas podem também funcionar como terapia, na medida em que provocam revolta e, em caso de neurose depressiva, a revolta, ao produzir níveis mais elevados de adrenalina, é de facto uma terapia, capaz de empurrar mais alguns passos para a arena p nado morto, o morto vivo, o zombie que eu sou.
Daqui resulta sem grande significado que a doutora me conte casos piores do que o meu, inclusive o seu. Foi um gesto de extrema delicadeza e cordialidade, sem dúvida, mas para uma nossa amizade futura (e o que eu queria, acima de tudo, era ter pouco ou nenhum futuro). Para o caso em apreço - o doente de um lado e o médico do outro - considero apenas uma manobra de distracção essas confissões pessoais que a doutora me fez da génese da sua própria neurose.
No fundo, o médico (tal como o advogado) quer cumprir o seu dever. O dever do advogado é ganhar causas - como me diz o Dr. F.T.da M. -e o dever do médico é tratar o doente - neste caso, impedir que ele se suicide, como me diz a doutora.
Mas, doutora, o que eu queria mesmo é que me encaminhasse na via do suicídio mais prático e sem dor.
«Dessa pode você estar bem livre» - responde-me ela.
Insisto: «Como ei-de fazer para me livrar disto, com o menor estrilho possível? E da maneira menos dolorosa, para mim e para os meus próximos mais imediatos?
Isto - repito eu - era o que eu queria de si, doutora, na qualidade que manifesta de ser minha amiga.
Não consegui. O suicídio, como todas as poucas coisas que valem verdadeiramente a pena na vida, é para se fazer a sós. A regra de ouro confirma-se (e toda a minha desfilosofia também): estaremos sempre sós, infinitamente sós, quando precisarmos verdadeiramente de ajuda.
Trouxe, portanto, em troca, uma medicação estupenda para me pôr fino num m~es.
Quer dizer: se seguir à risca este tratamento sem dúvida eficaz, dentro de um mês terei conseguido encobrir, mascarar a minha neurose depressiva básica e enganado, com mil e um alibis, com mil e uma desculpas, com mil e um celofanes cor de rosa, a certeza básica, profunda, estrutural, irrecusável, endógena, da chatice sem nome, da burla que é esta farsa, da farsa que é esta burla de viver.
Exacto:a medicina, no seu melhor, ajuda a disfarçar a farsa.
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